A cultura está relegada aos livros que pouca gente lê; da cultura destacaram-se as regras de vida a ela intimamente ligadas. Ao intelectual possuidor de uma eloquência estéril e cavilosa, que tudo critica e tudo justifica, se contrapõe ao leitor de “Seleções” que procura uma norma, uma clarificação em resumos superficiais, ou o abandonado ao acaso da vida. Um criticismo cosmopolita superficial, com finalidade de si próprio, tomou o lugar da cultura útil ao homem, substituindo-a por uma pseudocultura, que faz brilhar através de uma luz refletida somente o literato erudito. A solução dos problemas reais dos diversos países foi substituída por uma panacéia universal distribuída com incredulidade e indiferença. A linguagem especializada filosófica ou crítica disfarça o vazio ou a ausência de pensamento e, apesar de que a falta de uma cultura útil seja aceita, esse problema continua sendo um problema. E a ciência em antecipação, sobre as capacidades de controle humano dos problemas científicos, põe a interrogação do fim da humanidade.
Porque a um diagnóstico tão frio da doença da sociedade contemporânea não corresponde uma efetiva capacidade de solução do problema? Porque à cultura abstrata, metafísica, cosmopolita não se substituem as diversas culturas capazes de resolver os problemas dos vários países que, reunidos, formem o grande concerto da cultura mundial? Por que ao literato não se substitui ainda o novo humanista, com bases técnicas, capazes de resolver e entender os problemas humanos? Entre o literato caviloso e eloqüente, o crítico de arte ou o poeta metafísico incompreensível, o cientista e o técnico isolado, está a massa dos homens que olha com desânimo os problemas da existência real, abandonados pela cultura.
Treze anos depois de Segunda Guerra Mundial, passada a ilusão de se poder mudar logo, por meio de uma imposição violenta, o estado de coisas que parecia anacrônico, na frente da ciência e da lúcida capacidade crítica, nós perguntamos ainda como encontrar uma solução para que a maioria dos homens seja provida do mínimo necessário para viver, possua uma casa, não ria em face de um quadro ou de uma escultura moderna, não proteste contra a música, a poesia, a arquitetura, não demonstre a sua incompreensão em face da máquina, expressão da nossa época, servindo-se apenas dela como de uma necessidade imposta, não zombe da figura do filósofo, sinônimo de isolamento e extravagância. Não falamos aqui da compreensão esnobe que aceita os problemas somente porque são apenas fora do comum, posição da classe informada e a par das coisas que não compreende, somente porque são “úteis á crônica social”. Parte dos homens, assediada pelos problemas econômicos, não tem o tempo necessário para se dedicar a decifrar enigmas, cuja chave não possui; a outra parte, abaixo economicamente da média normal, não se pode preocupar com um problema que não está no raio de suas necessidades imediatas e do qual não suspeita da existência. Essa parte da humanidade, levada pelas necessidades, a resolver por si mesma o próprio problema existencial e não possuindo esta pseudocultura, tem a força necessária ao desenvolvimento de uma nova e verdadeira cultura.
Essa força latente existe em alto grau no Brasil, onde uma forma primordial de civilização primitiva, (não no sentido de ingênua, e sim composta de elementos essenciais, reais e concretos) coincide com as formas mais avançadas do pensamento moderno. Empresa extremamente delicada é a imersão nesta corrente profunda e vital das capacidades críticas e históricas contemporâneas, sem as quais não pode existir desenvolvimento coerente e moderno de uma civilização. Importante é não impor violentamente o problema histórico-crítico, mas apenas aceitar as realidades existentes, levando em conta todas as correntes, inclusive as espúrias, modificando-lhe e aceitando-lhe, gradativamente, conduzindo uma ação política efetiva, tomando conhecimento de que a falência dos esforços precedentes foi devida às posições de vanguarda ou “igrejinhas” que, excluindo a realidade existente, combatia na abstração, obtendo por conseqüência medíocres resultados.
Salvaguardar ao máximo as forças genuínas do país, procurando ao mesmo tempo estar ao corrente do desenvolvimento internacional, será a base da nova ação cultural, procurando, acima de tudo, não diminuir ou elementarizar os problemas, apresentando-os ao povo como um alimento insosso e desvitalizado; não eliminar uma linguagem que é especializada e difícil mas que existe, interpretar e avaliar essa corrente; e sobretudo será útil lembrar as palavras de um filósofo da praxe “Não se curvem ao falar com as massas, senhores intelectuais, endireitem as costas”.
[Crônicas de arte, de história, de cultura,
de cultura da vida. Arquitetura. Pintura. Música. Artes Visuais”. Página
dominical do Diário de Notícias (Salvador, BA), n 1, 7 set. 1958. Transcrito a
partir do original por Eduardo Rosseti e Luiz Carlos de Laurentiz.]
Texto cedido pelo Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, São Paulo, SP (www.institutobardi.com.br)