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ARTIGO

UM BALANÇO DEZESSEIS ANOS DEPOIS - LINA BO BARDI

Publicado por A CASA em 29 de Maio de 2009
Por Lina Bo Bardi (arquiteta)

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Qual a situação de um país de estrutura capitalista dependente, onde a revolução nacional democrática-burguesa não conseguiu se processar, que entra na industrialização com restos de estruturas oligárquico-nacionais?

O Brasil entra em último na história da industrialização de marco ocidental, portador de elementos da pré-história e da África, rico de seiva popular. Todas as contradições do grande equívoco ocidental se apresentam contemporaneamente, ou em tempo curto, no seu processo de modernização, com os traços violentos de uma situação falimentar. Um processo que nas nações industrializadas demorou séculos para se processar, leva aqui poucos anos. A industrialização abrupta não planificada, estruturalmente importada, leva o país à experiência de um incontrolável acontecimento natural, e não de um processo criado pelos homens. Os marcos sinistros da especulação imobiliária, o não-planejamento habitacional-popular, a proliferação especulativa do desenho industrial – gadgets, objetos – na maioria supérfulos – pesam na situação cultural do país, criando gravíssimos entraves, impossibilitando o desenvolvimento de uma verdadeira cultura autóctone. Uma tomada de consciência coletiva é necessária, qualquer divagação é um delírio na hora atual. A desculturação está em curso. Se o economista e o sociólogo podem diagnosticar com despreendimento, o artista deve agir, além de ligado ao intelectual, como parte ligada ao povo ativo.

O reexame da história recente do país impõe. O balanço da civilização brasileira “popular” é necessário, mesmo se pobre, à luz da alta cultura. Este balanço não é o balanço do folklore, sempre paternalisticamente amparado pela cultura elevada, é o balanço “visto do outro lado”, o balanço participante. É o Aleijadinho e a cultura brasileira antes da Missão Francesa. É o nordestino do couro e das latas vazias, é o habitante das vilas, é o negro e o índio. Uma massa que inventa, que traz uma contribuição indigesta, seca, dura de digerir.

Esta urgência, este não poder esperar mais, é a base real do trabalho do artista brasileiro, uma realidade que não precisa de estímulos artificiais, uma fartura cultural ao alcance das mãos, uma riqueza antropológica única, com acontecimentos históricos trágicos e fundamentais. O Brasil se industrializou, a nova realidade precisa ser aceita para ser estudada. A volta a corpos sociais extintos é impossível, a criação de centros artesanais, o retorno a um artesanato como antídoto a uma industrialização estranha aos princípios culturais do país é errada. Porque o artesanato como corpo social nunca existiu no Brasil, o que existiu foi uma imigração rala de artesãos ibéricos ou italianos e, no século XIX, manufaturadas. O que existe é um pré-artesanato doméstico esparso, artesanato nunca.

O levantamento cultural do pré-artesanato brasileiro poderia ter sido feito antes do país enveredar pelo caminho do capitalismo dependente, quando uma revolução democrático-burguesa era ainda possível. Neste caso, as opções culturais no campo do Desenho Industrial poderiam ter sido outras, mais aderentes às necessidades reais do país (mesmo se pobres, bem mais pobres que as opções culturais da China e da Finlândia). O Brasil tinha chegado num ‘bívio’. Escolheu a finesse. 

A arte não é tão inocente: a grande tentativa de fazer do Desenho Industrial a fôrça regeneradora de toda uma sociedade faliu e transformou-se na mais estarrecedora denúncia da perversidade de todo um sistema. A tomada de consciência coletiva de mais de um quarto da população mundial, aquela que acreditou no progresso ilimitado já começou. A desmistificação do design como arma de um sistema, a procura antropológica no campo das artes contra a procura estética, tem informado todo o desenvolvimento da cultura artística do ocidente, desde a antiguidade até às vanguardas, está em curso, num debate lúcido que exclui das situações romântico-artesanais às visões de Ruskin e Morris: um reexame da história recente do “fazer” nas artes. Não uma recusa em bloco, mas um cuidadoso processo de revisão. O esforço contra a hegemonia tecnológica que sucede no ocidente, e o ‘complexo de inferioridade tecnológico’ no campo das artes, esbarram na estrutura de um sistema: o problema é fundamentalmente político-econômico. A regeneração através da arte, credo da Bauhaus, revelou-se mera utopia, equívoco cultural ou tranqüilizante das consciências dos que não precisam. A metástase de sua incontrolável proliferação arrastou consigo as conquistas básicas do Movimento Moderno, transformando sua grande idéia fundamental – a Planificação – no equívoco utópico da “intelligentzia” tecnocrática, que esvaziou, com sua falência, a “racionalidade” posta contra a “emocionalidade”, num fetichismo de modelos abstratos que encara como iguais o mundo das cifras e o mundo dos homens. 

Se o problema é fundamentalmente político-econômico, a tarefa do “atuante” no campo do “desenho” é, apesar de tudo, fundamental. É aquilo que Brecht chamava “a capacidade de dizer não”. A liberdade do artista foi sempre “individual”, mas a verdadeira liberdade só pode ser coletiva. Uma liberdade ciente da responsabilidade social, que derrube as fronteiras da estética, campo de concentração da civilização ocidental; uma liberdade ligada às limitações e às grandes conquistas da Prática Científica (Prática Científica, não tecnologia decaída em tecnocracia). Ao suicídio romântico do “não-planejamento”, reação ao fracasso tecnocrático, é urgente contrapor a grande tarefa do Planejamento Ambiental, desde o urbanismo e a arquitetura, até o desenho industrial e as outras manifestações culturais. Uma reintegração, uma unificação simplificada dos fatores componentes da cultura. (Lina Bo Bardi)

Texto cedido pelo Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, São Paulo, SP (www.institutobardi.com.br)

 

Texto inserido com o apoio da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo - Programa de Ação Cultural - 2008.


Fonte: BARDI, Lina Bo. Tempos de Grossura. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi,



Bibliografia Associada:

Tempos de Grossura: o design no impasse