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A CASA E O MUNDO

ENTREVISTA

MARCELO MANZATTI

Publicado por A CASA em 13 de Julho de 2008
Por Lígia Azevedo

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"A rede é a via mais revolucionária e contemporânea de articular pessoas"

 Marcelo Manzatti é antropólogo, consultor de projetos sobre cultura popular, coordena a Rede das Culturas Populares e o Boletim Famaliá


 O que significa Famaliá, o nome de sua produtora?

Famaliá é uma corruptela de “familiar”. É um tipo de diabinho, como se fosse um demônio particular, que as pessoas criavam. Foi uma tradição medieval européia que veio para o Brasil. No século XVI, várias pessoas aqui cultuavam esse pequeno diabo. Ele é como um saci, muito ligado à idéia do saci, de um ser que faz parte da natureza e ajuda as pessoas a resolverem os problemas do dia-a-dia. Encontrei isto em Urucuia, região noroeste de Minas Gerais. Estive lá fazendo um trabalho sobre a música regional local por alguns anos, e conheci pessoas que falavam disto com naturalidade. Fui pesquisar e encontrei essa referência que achei muito interessante. Fiz um disco desse trabalho que se chama Famaliá e, a partir daí, meu trabalho ficou bastante conhecido e resolvi usar esta marca. Por isso até o símbolo do Boletim que eu edito é um diabinho na garrafa. Na novela O rei do gado, um dos atores criava um desses. Nessa época, essa história do Famaliá ficou bem famosa, mas depois desapareceu. Acho que um dos motivos é porque o formato do saci, que veio do cruzamento com histórias africanas, é mais popular do que essa versão européia. Isso vai se diluindo ao longo do tempo na mente das pessoas. E ninguém mais é tão religioso assim, porque para acreditar nisto tinha que ser católico. À medida que a sociedade vai mudando, isto vai sendo esquecido.

 

De onde vem a sua relação com a cultura popular?

Qualquer brasileiro que se preze, principalmente vindo das classes populares – que nasça num contexto social de classe média baixa, de classe baixa ou mesmo de classe média – tem muito contato com as expressões da cultura popular em seu cotidiano. Eu, como vim do interior de São Paulo, de uma cidade chamada Penápolis, no oeste do Estado, uma região pobre, cresci informado dessas tradições, desse jeito de ver o mundo.

Na universidade, no curso de Ciências Sociais, tive a oportunidade de conhecer o professor Carlos Rodrigues Brandão, antropólogo e educador, um dos maiores conhecedores de cultura popular no Brasil. Fiz um trabalho com ele na matéria Métodos e Técnicas de Pesquisa. Ele orientava trabalhos de iniciação científica, e propus uma pesquisa que seria orientada por ele. Depois, fui também orientado pelo professor José Guilherme Magnani e, a partir daí, fui ficando nesse campo da pesquisa da cultura popular tradicional, onde estou até hoje – desde 1990.

Comecei por aí, na academia, depois fui aprofundando, fiz várias pesquisas nesse sentido. Em 1992, conheci Paulo Dias e, junto com ele e outras pessoas, acabamos fundando um grupo chamado Cachuera, que depois se transformou em uma associação cultural, que hoje é de grande referência nesse universo. Além da parte acadêmica, fui desenvolvendo um trabalho, na sociedade civil, de documentação e ações variadas. Essa relação foi se estabelecendo e hoje tenho praticamente a minha vida inteira ligada à cultura popular.

 

O que é cultura popular?

Podemos tentar definir termo por termo. Obviamente que, vindo da antropologia, temos um leque de opções teóricas que tentam definir o que seja cultura, porque a antropologia é esse segmento que tem como proposta de análise o homem e a vida humana, enfocando a cultura. Há vários teóricos maravilhosos nesse campo. Prefiro as opções teóricas mais voltadas para a hermenêutica, como as de Clifford Geertz, e outros teóricos que trabalham a cultura como produção de símbolos e significados.

O adjetivo popular é que é o problema. Definir cultura já é difícil, e estou aqui fazendo uma tentativa de definição para poder dar alguma baliza, mas quando se coloca este adjetivo popular ao lado, criam-se vários problemas. O primeiro é que, em outra área do conhecimento – a comunicação – cultura popular significa uma coisa completamente diferente daquilo com que eu trabalho. Para a comunicação, cultura popular é o produto gerado pelos meios de comunicação de massa, como as novelas e os jornais. Isso é considerado cultura popular por ser consumido em larga escala pela população, ou por conseguir culminar no corpo da sociedade, respeitar a lógica de mercado e ter uma série de procedimentos que a indústria cultural cria.

Em antropologia, quando falamos em cultura popular, estamos pensando na questão sociológica, porque este conceito é prático. Quando se fala em popular, não se está falando em uma lista de manifestações culturais, como se cultura popular fosse só literatura de cordel, artesanato, congada, folia de reis. Não é uma categoria estética. Este adjetivo popular é uma categoria sociológica, que se refere à produção de cultura em um determinado segmento da sociedade menos privilegiado em dotes materiais, mais excluído e que tem menos acesso aos recursos que a sociedade como um todo produz. Estamos falando da produção de cultura que se dá nas classes populares, nas classes baixas. Por conta disto, uma série de preconceitos e de olhares enviesados é lançada a essa produção. Tem gente até que não acredita que essas classes sejam capazes de produzir cultura, entendendo cultura como o senso comum entende, como arte, sinônimo da alta produção intelectual, da cultura produzida nos espaços consagrados da sociedade como, por exemplo, a academia ou os espaços culturais da elite, museus, galerias e escolas de arte.

Quando dizemos que o povo ou as pessoas mais humildes, materialmente falando, são dotadas de uma capacidade de produção de cultura tanto quanto qualquer outro ser humano, independentemente de sua condição material, estamos afirmando que todos são dotados dessa capacidade, e é por isso que acreditamos na humanidade. Quando se assume isto, passa-se a localizar melhor essa produção de cultura e ver quais os padrões que a dificuldade material, a fragilidade econômica, geram, se elas deslocam algum sentido, se dificultam a circulação de bens. Como se sabe, toda a população mais humilde está bloqueada. O acesso dela é muito menor, seja à saúde, à universidade e certamente aos espaços mais consagrados da arte e da cultura. Então sua cultura não é legitimada. Antigamente, havia um discurso de exaltação da cultura popular como uma coisa muito rica, um grande remanso de onde iríamos beber uma água muito saudável e que bebendo daquela fonte é que iríamos produzir a verdadeira cultura. O modernismo todo pensou na cultura popular a partir desse modelo. Não queriam fazer a cultura popular exatamente como ela é, porque aquilo é muito rústico, pobre, desprovido de teoria, de polimento. Então bebiam naquela fonte para retrabalhar aquilo a partir de outras referências da cultura erudita e de massas, e produzir uma “arte superior”, uma arte “verdadeiramente brasileira”.

Há pessoas que não aceitam tão bem a idéia da determinação da cultura pela economia. Quando falo em cultura popular, acredito que este conceito ainda valha. É uma visão marxista de pensar que a estrutura material determina a superestrutura, o campo das idéias. Muitos têm dificuldade em aceitar isto. Sou bastante marxista; ainda acredito que essa divisão nos fornece alguma ferramenta para entender melhor a produção que se dá nesses lugares, mesmo que depois ela seja capturada pela cultura de massa ou pela própria cultura erudita e seja retrabalhada. Acho importante entender a dinâmica própria da cultura popular por conta desses bloqueios que os pobres, subalternos e desfavorecidos de modo geral têm na sociedade brasileira e nas sociedades como um todo, porque toda sociedade tem essa camada desprivilegiada que produz cultura.

Tem gente que prefere usar esse termo no plural, culturas populares, como o Néstor García Canclini, um teórico argentino radicado no México bastante lido hoje – é uma grande referência. Ele pensa, como o Antonio Gramsci, um autor marxista, que a unidade e os padrões da cultura hegemônica se formam porque ela está nos lugares de poder e, a partir do sistema de difusão, que são os meios de comunicação de massa e o aparato do Estado, ela consegue penetração, assegurando o seu lugar. Já as culturas populares ficam isoladas. Existe em um determinado lugar um tipo de manifestação semelhante a outra, mas elas não se comunicam. O candomblé, por exemplo; no Brasil você tem o tambor de Minas, no Maranhão, que é um tipo de candomblé; o Batuque, no Rio Grande do Sul; candomblé queto, candomblé angola. Muitos deles não conseguem nem se comunicar e trocar entre si, por causa do distanciamento geográfico. Dentro de uma mesma expressão cultural – a religiosidade afro – há uma centena de variantes dessas práticas sem um acordo geral. Acho bem interessante esse conceito de culturas populares. Acho-o preferível, até por considerar que, muitas vezes, essa diversidade não é advinda de uma capacidade sobrenatural que o povo tem. Existe um discurso laudatório com a idéia de que o povo é uma fonte inesgotável de criação. Muitas vezes, não é. Se as pessoas tivessem a oportunidade de conversar mais, talvez chegassem a modelos mais duráveis e essa diversidade toda se reduzisse um pouco. Como não existe esta possibilidade, cada grande criador, no lugar em que mora, gera um modelo novo que vai recebendo adesões onde há uma dificuldade comum de expressão. Essa variedade é tão grande que não se consegue abarcar sua extensão.

 

Interações entre cultura erudita e cultura popular e, junto com isso, o diálogo entre as diferentes classes sociais, não devem ocorrer?

As classes se relacionam. O problema principal não é nem se relacionar, porque quanto mais relacionamento há, mais rico fica, quanto mais trocas, melhor. O problema é que, quando a classe popular se relaciona com a classe média ou alta, ela se relaciona numa condição de desigualdade, de inferioridade de condições. O que a camada popular traz para o jogo, o que ela leva para o diálogo, é considerado menor em relação ao que as outras classes apresentam, o que faz com que ela sempre saia perdendo: ou é expropriada, no sentido de que as coisas boas que ela tem são retiradas do contexto original e transformadas em produto pela cultura de massa, ou suas produções são refinadas pela cultura erudita. A questão toda é essa e vai ser sempre: enquanto não acabar a desigualdade social, não vai haver uma briga justa, um diálogo de iguais. E a questão do poder é importante para entendermos que é uma cultura de dominados.

 

Há exemplos de como e onde isso ocorre?

Acho que o carnaval é, talvez, o maior exemplo que se pode dar, porque é a maior festa popular do Brasil. O carnaval era uma festa principalmente da elite, um entrudo de festas nas quais só quem tinha muito dinheiro ia, porque tinha condições de folgar nesse período carnavalesco. Normalmente acreditamos ser o contrário, uma festa de origem popular, mas na verdade era uma festa de elite, vinda da tradição européia. Portugal e Espanha têm essa idéia do entrudo, que é o nosso modelo, e na Itália e na França, há o baile de máscaras. Por conta da nossa dependência cultural em relação à Europa, importamos esses modelos e passamos a praticá-los aqui.

Na medida em que o tempo foi passando, o povo foi se apropriando dessas comemorações e introduzindo nessa festa o que era seu. Um desses elementos é o samba. O samba é uma tradição musical e poética que vem dos batuques africanos e que foi retrabalhado no contexto da escravidão no Brasil, um contexto de desigualdade. Era uma música diferente do modelo que a elite dominante queria implantar, não era uma música considerada boa, era vista como feia. Tinha uma musicalidade, um tipo de dança e um jogo corporal completamente discriminados. Era vista como lúbrica, lasciva, muito fora do pretendido. Mas, por uma série de casualidades de relações, o carnaval foi virando a festa oficial do Brasil. O Estado passou a adotar a festa, decretar feriado, investir nela e tudo passou a girar em torno disso. A própria elite, hoje, está muito interessada em participar. O que acontece? O povo, que entra com o seu repertório e configura várias expressões que se tornam características do carnaval, é expropriado da festa.

Hoje, a escola de samba é o símbolo maior da expropriação do samba do povo por outra classe social. Hoje, os cargos mais importantes das escolas não são ocupados por membros da favela, da comunidade, são ocupados por membros da elite que vão lá fazer a gestão financeira. Os cargos de carnavalesco, que planeja o desfile, e da diretoria, que comanda todo destaque grandioso, estão fora do controle das camadas populares. Há alguns segmentos ainda sob seu controle, como a bateria e a ala das baianas. Ali se têm redutos da cultura popular tradicional, com uma continuidade de evolução de uma cultura que, lá de trás, do batuque africano, passa pela senzala e chega hoje às quadras das escolas de samba. Mas é um jogo. E quem ganha mais com isto, a Rede Globo ou o sambista? É o Estado que arrecada impostos, é o empresário da rede hoteleira, ou é o favelado? Se você analisar o carnaval, vai perceber o que estou falando. Os grandes artífices daquela expressão cultural ocupam lugares marginais ou até nem podem ocupar lugar nenhum, são retirados do sistema em nome de uma lógica de mercado. Quem é focado pelas lentes das câmeras nos desfiles são as estrelas da Globo, as socialites, as celebridades, e não o sambista, aquele que trabalhou na quadra da escola o ano inteiro.

 

Existe uma alternativa para acabar com essa relação desigual? As políticas públicas seriam uma via?

A saída é a luta social, a luta política, a transformação da sociedade e a redução das desigualdades. Não tem outra saída. Isso não quer dizer que, numa posição de mais igualdade, aqueles símbolos culturais vão se impor. Eu acredito na luta para que essa desigualdade se atenue, diminua, e desapareça, mas não sabemos que produto será gerado se isso acontecer.

Agora, com o governo Lula, há uma série de iniciativas do governo federal de fortalecimento, de disponibilização de recursos financeiros, de se colocar num primeiro plano questões que antes não estavam, como a questão dos índios, dos quilombolas e a cultura popular. Ao se colocar na linha de frente inúmeros excluídos da sociedade brasileira, gera-se uma reação muito violenta de reforço da exclusão. Estamos no olho do furacão nessa luta. Temos um governo popular que, por mais problemático que seja, adota políticas de transformação dessa desigualdade. A desigualdade entre os salários, por exemplo, diminuiu 7%, o que faz com que as classes C e D dêem um salto e se aproximem das classes B e A. Então o pessoal que não ia ao shopping começa a ir, encontrando a classe B, que já estava lá, e começam os conflitos. Outro exemplo: todos começam a comprar carros e o trânsito vira um inferno. Isso são coisas do dia-a-dia que não são vistas como processo de transformação social.

Em termos de políticas públicas, se eu assumi um conceito de cultura popular como o que expus no começo, assumo que é preciso se fazer dois tipos de política: uma política cultural propriamente dita, de desenvolvimento da cultura, mas também uma política social associada a essa política cultural. Não adianta achar que pelo fato de eu dar uma viola nova para alguém da roça para que ele toque catira, a catira vai se desenvolver. Não adianta, se o indivíduo estiver com a saúde fraca, com o salário atrasado, se a mulher dele for alcoólatra, o filho cooptado pelo tráfico de drogas. Há um rodamoinho de problemas que o aflige e, mesmo que se faça uma boa política pública cultural, aquilo não resolve. É preciso que isto venha acompanhado de um sem número de ações de política pública no campo social: melhorar a saúde, o acesso à educação, promover uma série de situações que vão fazer o indivíduo levantar a cabeça e dizer: “Agora vou fazer minha reza, meu artesanato, tocar viola”, enfim, se auto-determinar. Temos que ter políticas diversas.

 

Como você avalia as políticas públicas que tem sido feitas atualmente?

No nível macro, as políticas atuais têm tido sucesso e estão surtindo efeito. O rebuliço está sendo feito na sociedade como um todo; as pessoas mais desfavorecidas estão vivendo melhor e estão buscando espaços que antes não tinham dentro dessa sociedade. Muitos estão querendo entrar na universidade, foi preciso criar o Pró-Uni, por exemplo, uma ação federal de acesso a bolsas para se estudar em universidades particulares. Ali havia muitas vagas ociosas e os cursos custavam valores que as pessoas não conseguiam pagar. Por outro lado, essas universidades recebiam benefício do Estado para poder se manter. Então resolveu-se tentar ocupar esses lugares com pessoas que não podem pagar. Foi uma luta, uma briga danada, muitos espernearam, perderam privilégios e uma grande parcela perdeu o lugar. Depois saíram os resultados do aproveitamento desses alunos incorporados e foi fantástico. Mesmo tendo um histórico escolar formal muito pior do que o daqueles vindos de escolas particulares, o desempenho deles foi altíssimo, na média muito superior ao dos que já estavam lá. Isto é, por exemplo, uma política pública importante: o acesso à universidade.

No caso da cultura e da cultura popular, deve-se analisar os três níveis: governo federal, estadual, e municipal. As melhores ações que vejo são as do governo federal. Por exemplo, a implantação da política do patrimônio imaterial, que vinha lá de Mário de Andrade, lá de trás, com as primeiras conceituações do que seria isso, a idéia de que uma música também é um patrimônio. Não a música no papel, na partitura, mas a música cantada pelo povo na rua, ou um acarajé, ou a Feira de Caruaru. Esses bens todos estão sendo inventariados. E segue-se um processo. Para se inventariar, é preciso levantar todas as referências que existem sobre aquele bem, e fazer o pedido para que ele entre no livro. Ou seja, pede-se ao Estado que reconheça que aquele bem é importante para a cultura brasileira de modo geral. A partir daí, o Estado assume a responsabilidade de proteger e fomentar aquela manifestação cultural. Cria-se, então, a coisa mais importante em termos de política, que é o plano de salvaguarda. Ou seja, de repente, tombo as lamparinas de querosene e vou criar uma série de ações e projetos para fortalecer a produção e o uso daquele item. E isto acontece em relação a qualquer bem que venha a ser tombado – na realidade, o pessoal usa a expressão “bens tombados” erroneamente, o patrimônio imaterial não é tombado, é registrado. Essa política que acontece no âmbito do Iphan é muito importante. Isto vem se acelerando, se desenvolvendo. A quantidade de bens registrados já é muito grande.

Há também uma série de políticas sendo feitas no nível das culturas indígenas. Uma série de ações que, muitas vezes, nem partem do executivo, mas sim do legislativo, como a questão das línguas indígenas. Além do português, termos cerca de 150 línguas indígenas no Brasil. Fora outras, como, por exemplo, os dialetos de imigrantes pomeranos, os dialetos ciganos. É um patrimônio cultural fantástico. Inúmeras línguas sendo faladas é um patrimônio cultural importante de ser preservado e fomentado. Só que elas estão morrendo. Para que sejam preservadas, é preciso uma série de ações: aumentar o número de falantes, produzir registros e estudos.

Hoje, está sendo construída toda uma estratégia para a defesa das línguas indígenas. Há o Prêmio Culturas Indígenas, um projeto no qual eu trabalho. Foi a primeira vez que se criou um edital próprio para indígenas, que não acessavam os recursos do Ministério da Cultura, como a Lei Rouanet. Embora estas sejam formas bem estruturadas para nós, para os índios são coisas completamente impossíveis de se acessar, dado o nível de burocracia e do conhecimento técnico exigidos para se apresentar uma proposta. Assim, os índios demandaram a criação desse prêmio, que aceita até inscrições orais. Ainda não é possível aceitar inscrição na língua original, porque não se tem a quantidade suficiente de tradutores, mas eles podem responder às perguntas do formulário oralmente e a demanda chega ao Estado.

O Estado nunca se relaciona com as pessoas diretamente, é sempre via papel. Quem domina a escrita tem um acesso melhor ao Estado. Como as populações indígenas, mesmo sabendo escrever, não dominam tão bem este meio, a oralidade é, para eles, o grande meio de comunicação, a forma primordial que usam para se comunicar. Então, é um ganho fantástico na abertura de clareiras que vão consolidar e perpetuar a presença de populações que antes não eram atendidas pelo Estado. Como ação política, existe também a demarcação das terras indígenas e quilombolas.

O projeto, por exemplo, dos Pontos de Cultura é uma idéia muito simples e ao mesmo tempo muito genial. Parte do princípio de que construir um centro cultural em todas as comunidades que ainda não o têm demoraria séculos e demandaria grande investimento econômico. Se não tenho tanto tempo e tantos recursos, faço o quê? Aproveito a quadra de uma escola de samba, um terreiro de candomblé, um curral de bumba-meu-boi ou qualquer outro espaço tradicional onde já se realize alguma manifestação cultural. Simplesmente chego com alguma capacitação e alguns recursos financeiros e dinamizo o espaço, dou poder àquelas pessoas que estavam completamente excluídas de qualquer segmento sob o ponto de vista cultural. Chego com uma estrutura mínima e capacito os jovens para serem multiplicadores daquela experiência. Isto vai mexendo de forma tão profunda em tudo, que gera um resultado que não vamos ver agora, mas só daqui a muitos anos. As sementes estão todas ali, e vão brotar lá de baixo.

 

Você tem o trabalho da Rede de Culturas Populares. Quais as idéias da Rede e o seu potencial como forma de organização?

Por definição a rede é isto: uma estrutura de relacionamento informal, horizontal, que não tem níveis de relacionamento entre cargos, como de presidente etc. Simplesmente você cria elos de conexão entre as pessoas. No nosso caso, são elos muito frágeis, porque trabalhamos só com a internet e a maioria das pessoas que queremos atingir é de excluídos digitais. Não queremos colocar em rede só aqueles que têm acesso à internet, queremos avançar para outras ferramentas que façam com que as pessoas se comuniquem e facilitem as trocas, porque, muitas vezes, só se precisa disto, que as pessoas consigam falar. Como elas não podem falar através dos meios de comunicação, vão falar por outras vias. E a forma da rede é a via mais revolucionária e contemporânea de articular pessoas.

Nossa Rede de Culturas Populares tem 2800 pessoas permanentemente interconectadas. O fato de estarem juntas não quer dizer que dali vá sair alguma coisa boa. Elas têm que, em conjunto, criar ações em rede. Por exemplo, algo a que chamamos de Observatório de Políticas Públicas. Isto ainda não funcionou, mas consistiria em muitas pessoas, ao mesmo tempo, acompanhando a implementação e a elaboração de políticas públicas para aquele segmento. Eu fiquei acompanhando a Comissão de Educação e Cultura dentro do Congresso, outros iriam acompanhar a Fundação Palmares, outros a prefeitura de seu município e assim por diante. Descobri que dentro do Congresso existe a Comissão de Direitos Humanos e Minorias, que tem uma atuação mais importante que a de Educação e Cultura para a área de culturas populares. Eu não sabia disto. Só fiquei sabendo por ter feito esse acompanhamento do processo legislativo, de se impor leis e garantir direitos. É muito complicado e muito lento. Se não soubermos como funciona, se não ocuparmos espaços e não cobrarmos uma resposta, eles não vão fazer nada. Isso seria uma ação em rede através da qual poderíamos contribuir, elaborando relatórios anuais, divulgando esses relatórios e cobrando das autoridades o que fazer. Já traria uma qualidade muito grande para as políticas públicas que existem hoje e precisam ser melhoradas.

Outro exemplo do que aconteceu: na Bahia, em áreas que se valorizaram muito nos últimos anos, os terreiros de candomblé estavam sendo destruídos pela especulação imobiliária. As empreiteiras iam lá, com o apoio do Estado, e destruíam aquelas áreas. Isto gerou uma movimentação muito grande, houve abaixo-assinado e, embora, as pessoas não tenham conseguido reaver os terreiros que já tinham sido destruídos, conseguiram brecar o processo. Esta é uma ação em rede importante. Muitas vezes, se não se tem poder para reverter a situação, pode-se, ao menos, neutralizar os prejuízos que resultariam do seu progresso.

Acho que a rede é a estratégia mais estável hoje em dia, por isto estamos investindo nisso – vamos fazer agora o nosso novo encontro em julho. Criamos a Rede em 2007, no Seminário Nacional de Políticas Públicas para as Culturas Populares, em Brasília. Para não sair de lá sem uma estrutura mínima, ali foi criado o básico. Nomeamos alguns moderadores, facilitadores, mas não deu tempo de discutir profundamente alguns aspectos: quais seriam as ferramentas, qual o orçamento esperado, como vamos mobilizar mais pessoas. Ali não foi feita esta discussão, ela será feita agora. Então, esperamos sair deste novo encontro com mais qualidade e mais diretrizes para construir a nossa rede.

 

Como o brasileiro se relaciona com a música em seus afazeres cotidianos, como, por exemplo, o fazer artesanal?

Em várias culturas do mundo, a música é muito importante. Acho que a África é nossa grande fonte para essa relação com a música. Talvez um pouco também a cultura indígena. Mas na África, por exemplo, a palavra é entendida como uma força. Quando pronuncio uma idéia, o simples fato de dizê-la faz com que eu mova as forças que vão fazer aquela idéia se concretizar; proferir uma palavra já é um movimento para tornar aquele pensamento concreto. Assim, falar é algo a ser feito com cuidado. Devemos falar pouco, mas falar pensado, falar só o que realmente vai gerar um efeito benéfico. Se eu falar alguma bobagem aqui, isso pode gerar conseqüências nefastas. O canto é uma organização da fala. A poesia, a rima, o cantar, dão mais força ainda ao poder da fala. Então é muito comum no cotidiano africano se cantar enquanto se faz qualquer coisa. Quando vão tecer, canta-se uma música, quando vão entrar no mato, canta-se outra, para as energias naturais que controlam aquele espaço. Cantar faz parte do cotidiano deles e acho que herdamos isto – o cantar é uma presença constante na cultura brasileira –, apesar de toda a transformação que existe, e que vai diluindo esses espaços. Se considerarmos, por exemplo, o canto de trabalho, ele está desaparecendo gradativamente, porque os ambientes de trabalho estão cada vez mais competitivos e organizados a partir da lógica capitalista de produção. As pessoas vão deixando de praticá-lo e ele vai desaparecendo. Todos também estão se tornando mais individualistas, produzindo mais voltados para si, com as baias tão separadinhas! Com isso, esses hábitos vão se perdendo.

 

O que é cultura popular em termos de música?

Dentro daquele conceito que expus, eu diria que toda e qualquer produção que se dê dentro desses ambientes populares poderia ser chamada de música popular brasileira. Desde um samba que se toca num bar até a música caipira.

Os meios de comunicação de massa são muito poderosos e estão muito presentes. Na medida em que essas expressões vão sendo capturadas pela lógica dos meios de comunicação de massa, elas passam a ser produzidas em série, com o intuito de vender, de gerar produtos. Vai-se perdendo o contexto original de produção daquilo e torna-se uma outra espécie de popular, o popular da comunicação de massa. É uma lógica completamente distinta, é outro processo. Pode-se até ter o funk como uma produção de música, poesia e dança popular com um significado “x” para a comunidade, mas na medida em que isso vai passando para outras camadas e vai sendo difundido pelos meios de comunicação de massa, esse significado vai se alterando, se transformando. Quem passa a dominar isso não é mais aquele que produz, aquele que dança, mas aquele que vende. É ele quem determina em que espaço aquilo vai tocar, a que horas vai tocar, qual vai ser a cor da capa do disco.

Música popular é tudo o que é produzido pelos meios populares. Podem-se até ter músicas hoje populares que em determinado momento eram músicas eruditas. A quadrilha, por exemplo. Quem dança quadrilha é o povão, mas originalmente era um gênero de música erudito, tocado nos salões da elite. A música foi se popularizando, a elite deixou de dançar e o povo continuou dançando. É possível haver esses movimentos de cima pra baixo, de baixo para cima e até coisas que são geradas dentro mesmo dos meios de comunicação de massa, pela própria lógica interna dali.

Comecei a fazer um mapeamento para catalogar as expressões musicais populares no Brasil, quando coordenava uma pesquisa na Associação Cachuera, e chegamos a mais de 350. Se nos aprofundarmos, poderemos chegar a mais de 500, cada uma com seu sotaque regional, sua peculiaridade. Tomemos o boi do Maranhão como exemplo: ele tem sete ou oito sotaques, diferentes tipos de música, de movimentos, de poesia. Uma expressão pode ser multiplicada em seis, sete. Soma cada música boa daquele que produz de 5 a 10 marchas novas por ano e multiplica pelos milhares de bois que há no Maranhão a cada festa junina. São mais de cinco mil músicas novas por ano. É uma coisa fantástica! E isso não vai para os meios de comunicação, não toca no rádio, toca para uma parcela muito restrita da população que não consegue entrar nessa lógica da comunicação de massa. Podemos pensar em tudo o que é produzido no carnaval e em outros acontecimentos do ano, a quantidade de produção é muito grande.

 

Há diferentes relações com a cultura popular dentro de contextos urbanos ou rurais? Como funciona a questão da apropriação e de trânsito entre esses locais?

Temos formas de expressão que são próprias de um contexto ou outro. Pensemos, por exemplo, no mutirão. É uma forma de trabalho coletivo num sistema de troca de favores, um ajudando o outro na realização das tarefas mais difíceis de serem feitas. A colheita, por exemplo. Ela tem que ser feita naquela hora, naquela época, senão a produção se perde. Se você percebe que o outro está atrasado, que não vai conseguir colher, reúne os amigos e todos juntos ajudam-no a terminar a colheita. Aquilo vira uma festa, é uma sociabilidade própria do mundo rural. Na medida em que as pessoas vão saindo da zona rural, o mutirão vai desaparecendo, vai se transformando, vai se reduzindo, fica mais diluído. Mas essas pessoas vêm morar na periferia da cidade e têm que construir, bater a laje da casa. E fazem o quê? Mutirão. Chamam os vizinhos para fazer a laje e terminam em galinhada, feijoada, samba. Isso é feito no mesmo esquema do campo: o dono da casa oferece uma comida especial para os que ajudaram e eles confraternizam no final do dia. De um ambiente para outro, tem uma passagem com perdas e ganhos, mas existe uma continuidade, uma dinâmica própria.

Há coisas que não conseguem ter continuidade. O berrante, por exemplo. Com o berrante, se produziu uma série de músicas e formas de comunicação super complexas, próprias do meio rural. Conforme foram-se criando fazendas, estradas, as estradas foram sendo asfaltadas, gerando um fluxo de tráfego e foi ficando perigoso transportar o gado solto, o berrante foi perdendo sua função e, hoje, desapareceu como instrumento de trabalho ou instrumento musical, de comunicação. Isto não tem mais volta, não tem como recuperar esta forma de expressão.

Por outro lado, vê-se um movimento contrário. Hoje, o Brasil é um dos maiores produtores de alimentos do mundo e isto é fruto da tecnologia e dos investimentos que foram canalizados para a área rural. Existe uma carga muito grande de investimento técnico e tecnológico no setor agrícola, então você vai encontrar, na zona rural, a presença de um contexto urbano diferente. A tecnologia permite que as pessoas tenham acesso ao que é produzido lá e, ao mesmo tempo, a produtos do contexto urbano, que são da cidade, mas que têm como chegar até lá. É preciso analisar caso a caso, porque uma coisa é sair de um contexto do sertão nordestino e passar para uma capital de estado como Recife, outra é passar de uma cidade do interior de Minas Gerais para Belo Horizonte. São contextos muito diferentes com dinâmicas também diferentes.

No caso da Festa do Divino em São Luis do Paraitinga, você vai ver que vai ter uma história de transformação da cidade. São Luiz era uma cidade típica do interior, muito pobre, e ganha uma qualidade diferente das outras por ser uma estância turística. Você ganha uma série de recursos da Prefeitura e da Secretaria de Cultura para sustentar aquelas festas. O festival de marchinhas, por exemplo, já tem 20 anos, isso faz com que a cada ano aquilo vá crescendo cada vez mais. Isso faz com que tenha uma lógica de fazer com que seja evento que atraia um turista selecionado, não é um turista de massa. Eles fazem uma peneira ali, que é uma peneira infelizmente econômica. Para entrar na cidade, por exemplo, você paga uma taxa para parar seu carro. De cara, todos os que já não têm aquela grana para parar o carro deixam de ir simplesmente. E aí vai passar só ao público que tem poder financeiro o acesso àquele carnaval, com aquela qualidade. Mas acontece também de os grupos que se apresentam lá serem de São Paulo. Na festa do Divino eles estão tendo muito conflito com a Igreja. Porque é uma festa religiosa, uma série de costumes da festa estão ligados diretamente à estrutura da Igreja. O padre que está lá pode não aceitar um monte de coisas e a estrutura da festa é atacada. A Folia pára de girar, quando fazem uma arrecadação imensa de comida a Igreja se apropria da comida e eles não têm como atender aos grupos que vêm de fora para a cidade, por exemplo.