“A nossa obrigação é acabar com essa coisa de ligar o artesanato à pobreza, à coisa inferior”
Janete Costa é arquiteta e, em seus projetos de decoração, leva objetos artesanais para ambientes de luxo.
Há quem diga que o artesanato é coisa do passado e vai acabar. O artesanato está em crise? Está chegando perto do fim?
No Brasil, artesanato não é coisa do passado. Enquanto houver pobreza e necessidade, a necessidade de fazer para usar – porque nem todos os lugares do Brasil têm o suficiente na indústria para essa gente pobre consumir –, o artesanato vai continuar existindo. Por exemplo, em muitos lugares, a panela de alumínio não chega à cozinha de certa população. As embalagens, em determinados lugares do Piauí, ainda são todas feitas com palha, com cesta. É mais barato para eles fazerem uma cesta para carregar frutas do que comprar uma caixa. Então enquanto houver essa necessidade e a necessidade também do fazer, como o crochê, o bordado, o artesanato vai existir. As pessoas têm a necessidade não somente de ter, mas de fazer. É uma necessidade inerente ao ser humano, querer fazer as coisas.
Fui a Barcelos, Portugal, fazer uma palestra, e vi que não havia mais aquelas cerâmicas de antigamente, aquelas vendidas nas feiras, tinham acabado. Havia outra coisa – pouca coisa –, mas já muito ligada à indústria, porque eles atingiram um nível econômico em que artesãos não necessitam mais produzir. Mas nós não. Nós temos uma população enorme na miséria, 30% da população ainda está na pobreza. E, muitas vezes, mesmo quando não estão, a única forma de sobrevivência é vendendo coisas na feira. Essa necessidade existe e temos que pegar essa população de artesãos e elevá-la para que ela possa melhorar seu produto e entrar no mercado econômico normal, porque ele ainda é vendido muito barato, já que a grande maioria do artesanato, principalmente no interior do nordeste, é consumida apenas pela própria classe social que o produz. Então é muito barato, quase que um absurdo. Se você intervier ligeiramente neste produto – é o que cabe às pessoas que têm uma noção de desenho e conhecem o mercado global, como eu e outros arquitetos – esse produto, que é feito para consumo próprio, poderá ser consumido também por outros, poderá até ser exportado, e vendido pelo preço justo. Ou seja, pode-se fazer um comércio justo, porque, por enquanto, o comércio de artesanato não é justo, é um comércio de espoliação. Mas os artesãos têm uma necessidade muito grande e precisam produzir.
Há pouco, visitei uma cidade no interior da Paraíba onde havia uma ceramista que fazia uns bonecos, umas mulheres, uma coisa muito bonita. Somente ela fazia, as outras todas só faziam panelas. Aí perguntei: “Por quanto você vende essa esculturinha de barro pequenininha?”. Ela disse: “Vendo essa para fora por R$10,00”. Era um preço, para ela, muito alto. “E a panela?”. “Ah, a panela R$0,50, R$0,80, R$1,00”. Mas a maioria fazia panelas porque vendem mais, vendem para a classe social delas, e a escultura para outra classe, que gosta de arte. Bom, voltando lá, depois, ela disse que vendia bem a escultura e uma parte daquela população que fazia panelas começou a fazer escultura e, hoje, todas fazem. Pode não ser original, o original era dela, mas as outras começaram a fazer e a modificar e, hoje, desistiram de fazer panelas e começaram a fazer essas peças porque vendem melhor. Se você forçar a venda, elas mudam. Eu já tive essa experiência. Quando você vende muito, as pessoas começam a melhorar e começam a fazer outras coisas, pois já não têm a necessidade única de sobrevivência.
Os artesãos vão fazer aquilo que vende mais?
Vão. Mas não podem deixar de fazer os tamboretes, as mesas, os candeeiros. Os objetos de uso, eles têm que fazer. Os brinquedos populares, a esteira, a rede, a tecelagem. Tudo isso vem da necessidade de uso e, a partir disso, eles vão aprimorando. Se começarem a vender por um preço melhor, se você intervier e colocar os objetos no mercado comum das coisas, no mercado de uma outra classe social, eles irão fazer para eles, mas também irão fazer pra vender e viver melhor com seu produto. Este é o nosso trabalho.
Lina Bo Bardi falava isso, que as pessoas faziam artesanato para sua sobrevivência. Ou seja, se não há trabalho rural, faz-se artesanato. Você acrescentou que o artesanato é feito também porque as pessoas das classes sociais mais baixas precisam consumir, isto é, pessoas que não podem comprar uma panela industrializada, compram ou fazem uma panela de barro.
Exatamente. O que não existe, se faz. Os brinquedos de pantifa são uma experiência interessante. Se as crianças querem um brinquedo, mas não podem comprá-lo, elas fazem seu próprio brinquedo – a boneca, a bruxa de pano. A boneca de pano é importantíssima.
Além disso, existe esse mercado, um mercado de identidade, de tradição. As pessoas ainda não conseguem mudar completamente esse fazer. São pessoas que têm um passado e trazem nas mãos essa necessidade do fazer, mesmo quando trabalham em outras coisas.
Já tive a oportunidade de fazer uma pesquisa em Recife e ver que muitos homens foram trabalhar na indústria, mas muitas dessas indústrias, que abriram uma possibilidade de emprego, tiveram que fechar pouco tempo depois. Os trabalhadores não se identificaram, porque ganhavam o salário mínimo quando, às vezes, a produção artesanal deles vendia mais do que isso, além de fazerem o que gostam, da maneira como querem. Na indústria, recebem um salário, mas eles não têm nada a ver com aquilo, não é a sua expressão cultural. Insisti para que todas as indústrias que fossem implantadas tivessem o cuidado de examinar e de pesquisar a vocação de cada lugar. Por exemplo, a vocação do Ceará é a tecelagem, então as fábricas e indústrias de tecelagem do Ceará são muito bem sucedidas. Campina Grande é muito bem sucedida em couro, eles têm uma tradição em couro, então a indústria de sapatos de lá é bem sucedida, vai para frente. Pernambuco é forte em cerâmica, então a indústria de cerâmica de lá está em pé. Ou seja, é uma extensão de sua cultura. Às vezes, se faz uma interrupção cultural dentro do ser humano. É preciso gostar do que se está fazendo.
Em uma mesa-redonda promovida pelo Artesanato Solidário no Instituto Tomie Ohtake, você disse que sua grande preocupação era com a qualidade de vida do artesão, mais do que com o artesanato enquanto atividade. Então vamos imaginar uma empresa alinhada com a vocação do lugar em que ela está, que vá dar um salário maior do que aquilo que o artesão ganha, com férias, décimo terceiro e todos os direitos que o trabalho artesanal por si só não fornece. Nesse sentido, a abertura de empresas pode ser vista como benéfica aos artesãos?
Hoje, as ONGs estão trabalhando em função disso. Na realidade, é interessante que eles tenham essa proteção social. Em países desenvolvidos, como a Suécia, a Dinamarca, em países onde o artesanato é valorizado, o artista se abastece no artesão, ele valoriza o que é feito com a mão para que a indústria mantenha com o artesão o elo de atividade e não perca – não pode perder – essa identidade que é dada pelo artesão, que é primária. O artesão vem e faz a síntese. O artesão tem uma herança cultural, não é verdade? Então eles valorizam o artesão. Uma peça artesanal na Dinamarca, na Suécia – eu conheço muito bem lá – custa dez vezes mais do que uma peça industrial. Aqui, uma peça artesanal custa vinte vezes menos, é o contrário.
Nós não valorizamos o artesanato porque ele ainda é consumido pela classe social onde ele é feito. Poucas pessoas recorrem ao artesanato como utilitário, a maioria prefere colocar na mesa uma cesta industrial do que uma cesta de palha. A população ainda não se identifica com sua própria cultura, com sua própria origem. Uma coisa importantíssima é que nós, arquitetos, designers, intelectuais, pessoas que compreendem, que têm sensibilidade para esse uso, temos que impô-lo para que haja uma mudança de comportamento na sociedade. Não somente é mais bonito, mais interessante e muito mais humano, mas a produção artesanal está também contribuindo para uma parte da sociedade que é carente e que necessita disso. Então temos esse dever de impor, de fazer, de mostrar o que é feito principalmente por essa população menos privilegiada economicamente.
Você falou sobre a possibilidade de interferir nas peças dos artesãos. Corre-se o risco de, com isso, acabar estragando o trabalho deles?
Corre, sem dúvida. Mas esse risco sempre vai existir. O artesão não tem uma cultura forte o suficiente, ele não resiste. O trabalho dele não é resistente como o do índio, que é mais antigo. Não se mexe com o trabalho do índio, porque o índio é muito mais antigo, muito mais velho. Nós só temos 500 aninhos, somos jovens. Então eles são muitos sensíveis ao assédio, principalmente às mudanças. Cabe a nós fazer com que eles não percam essa sua continuidade cultural, mas esse risco eu acho que temos que correr. O objetivo é realmente a identidade, compreender o espírito da tradição, manter, acima de tudo, uma cara brasileira, mas o objetivo maior ainda é tirar a fome deles.
Tenho viajado pelo interior do Brasil, principalmente pelo nordeste, onde existe fome de verdade e pessoas que têm nas mãos uma sabedoria enorme. São pessoas que moram em casas de palha e têm um potencial não utilizado. Cabe a nós colaborar com esse potencial. Mas isso, evidentemente, está melhorando. Agora, 30% da população são pobres, outros já passaram para a classe média, então já houve uma melhora. Mas no interior do Brasil, no Piauí, no Maranhão, na Paraíba, em Pernambuco, no Ceará, na Bahia, ainda existe uma pobreza muito grande. Aqui em São Paulo não, isso já acabou. A tendência é, tomara, que essas pessoas atinjam um nível em que possam ter essa ascensão social. Esse é o ideal. Então nos cabe ajudar essa população a crescer. Se acabar o artesanato, tudo bem, o objetivo principal é mesmo a sobrevivência. Mas ele não acaba. Exemplo disto são os países escandinavos: eles têm um cuidado enorme em manter seu artesanato e, por isso, ele é muito mais valorizado.
Você fala em artistas populares e artesãos, e ainda diferencia artesãos de tradição e artesãos domésticos (Revista Au, out/2007). Como você reconhece e diferencia um de outro? Quais as diferenças de atuação em relação a cada um deles?
O artista popular é aquele que cria. O artesão é aquele que, a partir dessa criação, repete. Muitos artistas populares deixaram de ser artistas populares para se tornarem artesãos. Quando uma peça começa a vender bem, o artista que criou aquela peça vai fazer milhares delas e dividir essa produção com a população em torno. Começam a ser feitas muitas daquelas peças, então ele deixa de ser artista e passa a ser artesão. Mas há também artesãos que passam a ser artistas. Quando um artesão tem uma facilidade criativa, passa a ser artista. Todo artista popular é um artesão e todo artesão pode ser um artista. O artista cria uma peça e quem faz essa peça é o artesão. Por exemplo, o Ulisses, de Minas Gerais. Ele faz uma cerâmica que não se sabe de onde veio, com aquelas cabeças, uma cerâmica antropomorfa. Você não detecta a origem, se é portuguesa, mineira, africana, indígena. Ele tem uma leitura completamente personalizada, mas a vizinhança toda vê que suas peças vendem bem e começa a fazer Ulisses. E, a partir disso, quem faz não é mais um artista popular, é um artesão.
O artesão doméstico é aquele que não necessita viver do seu trabalho, necessita do fazer. É a dona de casa que gosta de bordar, a senhora de idade que faz o crochê ou a renda de bilro. Aí existe uma diferença porque não está imortalizada uma tradição. O ponto cruz, por exemplo, é feito através de receitas de pontos, e grande parte das bordadeiras não cria, copia daqueles folhetos. Elas também fazem parte de uma população de artesãos, só que não estão ligadas diretamente à tradição. Elas não têm, obrigatoriamente, uma mãe que fazia ponto cruz, começaram a fazer porque gostavam. A necessidade do fazer e do criar é uma necessidade do ser humano.
Nesse sentido, seria então com o artesão e não com o artista popular que deveria ser feito o trabalho do designer?
No artista popular não se mexe, ele sabe criar. Intervir numa pessoa que cria é uma arrogância, é um absurdo. Deixe que ele faça à sua maneira.
Sempre se enfatiza a necessidade de valorização do artesanato nas grandes metrópoles e no exterior. E dentro das próprias comunidades? Ele é devidamente valorizado ou ali também é preciso promover a valorização?
A comunidade tem outro olhar. Ela valoriza muito mais uma panela de pressão do que uma panela de barro. Para ela, a panela de pressão é mais importante. E nós usamos a panela de barro não no sentido de cozinhar, mas como forma, como objeto, é outro olhar. E existe também a necessidade da geladeira, do liquidificador. Eles têm essas necessidades e não valorizam tanto os objetos artesanais. Alguns até valorizam, mas grande parte faz porque precisa fazer, pela necessidade do uso, de ganhar dinheiro e sobreviver. A necessidade maior e mais importante é a de sobreviver.
Como fazer uma boa aliança entre designers e artesãos, de modo que estes não constituam simplesmente uma mão-de-obra barata e qualificada para aqueles, que, muitas vezes, se sobressaem como detentores dos créditos pelo projeto? Como você lida com essa questão?
Quando o designer se aproxima do artesanato e do artesão, ele tem que se colocar no mesmo nível, porque ele não tem a capacidade do fazer. Ele sabe criar, mas não sabe fazer. Nessa conversa tem que haver certa humildade. Acho que tem que prevalecer, principalmente, o nome de quem faz, porque nós não temos esse talento. Posso admirar um cesteiro ou uma bordadeira e posso até desenhar alguma coisa, mas não sei fazer. Precisaria de anos para aprender. Desenhar está no mesmo nível do fazer, porque ambos exigem anos de aprendizado.
Essa coisa de cima para baixo é muito ruim e muitas vezes acontece de os designers tomarem para si toda a autoria, como se fossem os artesãos. Acho que é preciso se colocar no devido nível. O Artesanato Solidário, por exemplo, faz um trabalho excelente. Para mim, quem melhor trabalha no Brasil nesse sentido é a Comunidade Solidária, porque eles fazem uma pequena intervenção em algumas comunidades para colocá-los no mercado, mas por determinado tempo. Depois deixam que as pessoas continuem, porque elas não podem ser escravas desse saber intelectual erudito. Temos que ajudar um pouco, mas depois a pessoa segue sozinha. É preciso haver a consciência de que você não é dono, não se apropria do criar do artesão, e que a ajuda deve durar certo tempo, capacitando-os para que eles próprios saibam fazer.
Fiz um trabalho em Garanhuns, mas apenas durante três horas, depois parei e eles deram continuidade. Isso é que é bonito. E dá certo, sempre dá certo. Nunca se pode criar em cima de outra pessoa, ela tem que ser livre. Você forma um determinado grupo, depois se retira e eles continuam. Sua obrigação é a de criar um pólo de venda, é trabalhar na outra ponta, fazer com que eles vendam, divulgar. Acho errada uma intervenção permanente. Tem que ser por pouco tempo, depois você se retira.
Esse seria o “interferir sem ferir”, de que você sempre fala?
É interferir sem ferir e, principalmente, não destruir a auto-estima da população. Quando você interfere demais, a auto-estima deles vai abaixo, porque se vêem como subalternos. Não se pode ser autoritário. É preciso colaborar, mas nunca se limitar a mudar o desenho e pronto. Eles têm que participar. Só assim há continuidade.
Visitei uma comunidade de cesteiros no Rio de Janeiro e havia uma artesã muito interessante que disse: “Olha, o importante para mim é não perder minha auto-estima; quero fazer aquilo que eu sei, não preciso de mudanças, preciso que venda, que seja valorizado”. Temos que ajudar na ponta da venda, fazendo um comércio justo, pois o comércio do artesanato é completamente arbitrário, injusto, não valorizado, terrivelmente explorado. Nossa obrigação é acabar com essa coisa de associar o artesanato à pobreza, à coisa inferior. O milionário, o rico, não usa e não valoriza o artesanato de jeito nenhum. Ele está no mundo de ouro e não acha interessante. Eu acho exatamente o contrário.
Como promover essa valorização? É preciso educar o mercado?
Você mesmo está promovendo. Está comunicando. Com o trabalho da Renata Mellão, o trabalho da Adélia Borges, o trabalho do Artesanato Solidário e outros nomes, isso está sendo feito. Dentro do possível. É preciso primeiro formar uma mídia para que essas pessoas compreendam, não é verdade? Nós estamos fazendo isto. Eu faço há 50 anos. O trabalho de Renata Mellão é excelente e acho que ela vai projetar muitos artesãos à medida que ela valoriza o trabalho deles e faz com que não encerrem o trabalho neles mesmos. É importante que se dê a oportunidade de o artesanato chegar até o design e que o design venha se abastecer no artesanato. Ela tem feito esse trabalho muito bem e faz aquilo que eu gostaria que fosse feito. Está dando continuidade, formando pessoas, fazendo palestras, entrevistas, publicando, ou seja, está trabalhando em torno de um mesmo tema com muita sabedoria e com entendimento para isto.
Em alguns de meus projetos em casas de milionários, cheias de obras de arte, ao final, eu colocava um pote popular, para a dona do imóvel reagir imediatamente. Um pote lindo, antigo, que ela não tirava do lugar, porque ele estava tão bem colocado!
Então você começa a fazer com que essas pessoas tenham uma relação com o objeto, porque eu acho – uma idéia que nem sei se cabe na entrevista – que a arte não é só para ser vista. Não é algo que se apresenta esteticamente pela forma, pela proporção. Ela tem um conteúdo muito maior, um conteúdo interior, do seu objetivo. Às vezes pego algum objeto de arte que, para mim, não tem valor. Uma peça de artesanato popular tem um valor duplo, porque ela pode ser bonita e, ao mesmo tempo, trazer dentro dela uma mensagem de beleza, uma beleza de tradição, que vem do passado, da necessidade de eles fazerem, da maneira como se faz.
O artista popular se valoriza, não importa se toda a população fará igual. Ele não tem essa preocupação do individual, tem a preocupação do coletivo. Minha visão da arte é a de que ela tem que ter conteúdo semântico e sentimento. Ela me transporta e eu quero saber quem fez aquilo.
Por que a elite brasileira ainda não se interessa pela produção artesanal?
A elite viaja muito, vai ver o salão de Milão. Há muita influência externa e outros fatores. Mas alguns já valorizam, alguns têm várias coleções de arte popular. Há pessoas nos grandes centros intelectuais que gostam e podem consumir. Mas são poucos, muito poucos. Podia ser mais.
Em seus projetos de arquitetura de interiores, você costuma levar peças artesanais para dentro de instituições como hotéis, casas, enfim. Ao colocar as peças em outros contextos, você consegue abrir portas para o artesanato?
Exatamente. E essas peças dialogam perfeitamente com o ambiente. Elas têm diálogo até com o contemporâneo. A última produção do artesanato popular de Alagoas tem um diálogo permanente com a arte contemporânea. Porque, comparando com 50, 60 anos atrás, eles já estão em outro contexto, mais contemporâneo, embora continuem retratando seu grupo social. Sua produção ainda é uma resposta do seu grupo social, mas com o conhecimento do urbano. Já estão fazendo carro, já colocaram um relógio em uma mulher. Eles se aproximaram do urbano, já conhecem as cidades, a capital, então não podem deixar de levar isto em conta, não podem deixar de absorver essa realidade. Absorvem de uma forma diferente, mas absorvem.
O homem é uma esponja, por onde ele passa, vai incorporando as influências. Com a globalização, com essa história de todo mundo conhecer todo mundo, o homem tem a necessidade de se mostrar. Hoje, a população de um país precisa exibir a sua identidade. Voltou-se à necessidade de ser não ser igual a todo mundo, de se auto-valorizar. É uma forma também de auto-estima social, de valorizar o que é seu.
O que poderíamos mostrar como elemento de identidade brasileira e agregar nos objetos produzidos aqui? Qual é a cara do Brasil?
É muito difícil. É muito complicado porque a cara do Brasil tem que ser histórica culturalmente, ao mesmo tempo em que tem que ter a tecnologia. Mas o ideal seria se pudéssemos não abandonar o que é nosso, porque as pessoas se desenvolvem e começam a abandonar o que vem de baixo, o que vem da própria cultura.
A cara brasileira não é um pote de barro, uma cesta de palha, a cara brasileira é muito mais do que isso, ela tem as coisas que absorve do resto do mundo – e ninguém deixa de absorver, todo mundo absorve e aprende. Mas também não podemos discriminar essas coisas que são feitas pela cultura popular, que ainda está presa na terra. É difícil saber qual é a cara brasileira, mas dá para identificar. Já se identifica perfeitamente a cara da Índia, identifica-se a cara japonesa. O Japão evoluiu enormemente na tecnologia e no desenho, mas você identifica uma peça japonesa, uma roupa japonesa. Por exemplo, a roupa do Issey Miyake, um grande costureiro, é de uma tecnologia e de uma moda que atinge o mundo inteiro, e se percebe que é japonesa. Mas nós ainda estamos buscando essa cara, estamos buscando, tentando, valorizando isso e aquilo. E com muita dificuldade, porque quando se lida com jovens imaturos, eles não querem essa cara, querem algo com uma aura de poder, de luxo, de riqueza. E quanto mais ela se afasta de seu conteúdo histórico, mais se aproxima do vulgar. Desloca-se todo o seu conteúdo identitário na ilusão de estar crescendo, mas não está. A identidade tem que crescer com a história do lugar. É uma história dentro de cada um. Não se pode também fazer como os intelectuais que não admitem nada de fora. É evidente que é preciso acrescentar, mas não podemos nos desligar, por causa das novas referências, da nossa origem, da nossa história, do nosso passado.
Visitei a casa do Luis Barragán, no México. Quando se entra lá, você fica tão emocionado que dá vontade de chorar, porque é a cara do México com o mundo inteiro ali dentro. O mundo inteiro está presente, mas a cara é do México, você percebe que é mexicano. Em algumas casas brasileiras, você percebe a cara do Brasil em um mobiliário antigo, tradicional, misturado com coisas contemporâneas. É fundamental que não haja rejeição por tudo o que é nosso, porque a maior parte das pessoas rejeita o que é nosso e passa a gostar só do que é do outro. Faz parte de uma população que despreza as próprias coisas.
Não pode haver rejeição pelo que é nosso, nem enclausuramento, fechando-se para tudo o que é de fora?
Exatamente. É preciso conciliar, até mesmo para valorizar o que é nosso. Só se sabe valorizar o que é seu quando se conhece o resto. Se você não conhecer o mundo, não valoriza o que é do seu país. Eu passei a compreender e a valorizar muito mais isto, depois que comecei a viajar.
Recuperando um pouco da sua historia, como é que você se envolveu nessa área? De onde veio seu interesse por todas essas questões?
Nasci em Garanhuns. Meus primeiros brinquedos foram panelas de barro e bruxas de pano. Saí de Garanhuns e comecei a estudar, fui morar no Rio de Janeiro. Minha infância e meu passado ficaram dentro de mim e compreendi que não era pobreza, pelo contrário. Saí do pote para a geladeira. Eu usava pote, quartinha, bruxa de pano, e saí para a boneca de louça, para a geladeira, mas aquilo da minha vivência ficou dentro de mim. É como comida. Você pode ter o que tiver na frente, mas o que comeu na sua infância, o que sua mãe fez ou sua avó, é mais forte, você gosta muito mais, não é verdade? Então aquilo ficou dentro de mim, eu não rejeitei. O mais importante foi eu não ter rejeitado aquilo. Fui uma menina pobre, de classe média mais para pobre, mas adorava aquelas coisas. Quando fui morar no Rio, aquilo do meu passado foi crescendo e mudando de tamanho. Eu me lembro de uma peça de cerâmica que minha avó tinha e que quebrou. E eu guardei na minha cabeça a imagem daquela peça, mas uma peça muito maior do que era na realidade, ela foi crescendo, comecei a idealizar. E então comecei a valorizar muito mais. As coisas de Caruaru e de Garanhuns nunca saíram da minha vida, nunca.
Eu agora estou num momento muito importante. Apesar de estar doente, estou trabalhando. Vou fazer o museu de arte popular de Minas Gerais. Era tudo o que eu queria na vida. Fechei o contrato anteontem. Será um grande museu. A montagem é toda contemporânea, valorizando a arte popular.
Você já fez muita coisa. Conheceu diversas comunidades, realizou uma série de projetos, dedicou a vida inteira para esses trabalhos. O que você ainda quer fazer? O que ficou faltando?
Estou com 73 anos, não estou bem de saúde, estou lutando para sobreviver. Neste momento, não estou querendo fazer as coisas eu mesma, quero influenciar pessoas para que façam. Quero reunir jovens que possam dar continuidade. Quero muito reunir pessoas, levar para o interior e formar comunidades que façam esse trabalho. Em Pernambuco e no Ceará eu já consegui. Muita gente que compreendeu essa atitude, que é profissional, e ao mesmo tempo social, e ao mesmo tempo humana, e ao mesmo tempo bonita e verdadeira. E essas pessoas compreenderam que o trabalho delas não deve se encerrar nem começar com elas, todos devem fazer. É necessário que ninguém encerre o trabalho em si próprio, que dê oportunidade aos outros, pois, na realidade, somos humanos e em algum momento vamos morrer. É necessário que outros possam dar continuidade ao nosso trabalho.