Texto de Ricardo Lima, antropólogo e pesquisador do Museu de Folclore Edison Carneiro, extraído do livro "Artesanato, produção e mercado - uma via de mão dupla" publicado pelo Artesol.
Há uma primeira questão que me chama a atenção quando começo a falar de artesanato, e que de certa forma foi citada aqui tanto por Janete Costa quanto por Roberto Rugiero: trata-se da questão da diversidade. O Roberto fala que lhe interessa aquele artesanato artístico. Isso já define bastante a que ele está se referindo, porque a gente tem artesanato tanto no fazer do artesão de jóia, no artista que faz jóias com ouro, brilhante e esmeraldas, quanto no que produz o hippie da calçada de Copacabana e o expositor da feira de Ipanema. Isso tudo é artesanato. Mas entre esses artesanatos e o que produz o cesteiro, o oleiro e o entalhador vão distâncias culturais muito grandes. Enfim, o universo artesanal não é uma realidade homogênea: pressupõe modos de fazer diferentes, estilos de vida diferentes, visões de mundo diferentes e também estéticas diferentes.
Portanto, o que gostaria de deixar afirmado neste momento é a extrema diversidade dos contextos de produção de artesanato no Brasil, diversidade esta que aponta para a necessidade de estarmos sempre relativizando afirmações muito genéricas quando nos referimos a esse campo. Do ponto de vista da produção, existe uma imensa diversidade de estéticas. A gente não pode dizer que o artesanato do Brasil é isso ou aquilo, dada essa diversidade enorme de universo.
Já que este encontro é para discutir a questão da produção e do mercado, devemos voltar nosso olhar também para este segundo pólo do binômio. Na verdade, pensar o artesanato sempre irá pressupor também a análise do fator mercado. E o que vem a ser esse mercado, que a gente trata no singular? É preciso atentar para o nível dessa produção do artesanato, já que o encontro aqui é para discutir a questão da produção e do mercado. Assim como a produção artesanal é múltipla, o que denominamos mercado pressupõe, a meu ver, uma imensa variedade tanto regional quanto cultural, distinções de classes sociais, estilos de vida e visões de mundo. Portanto – e por conseqüência – de estéticas também. Assim, do ponto de vista da recepção da produção artesanal, junto aos consumidores de artesanato, a realidade também é muito diversificada. Não existe uma única estética de recepção dos objetos artesanais, e é para este ponto que estou querendo chamar a atenção.
Quando falo em estética, falo de gosto. Questão bastante polêmica pelo alto grau de subjetividade que implica. Bom que em sua fala Janete já introduziu isso que para mim é um dos grandes nós para os que vêm lidando diretamente com a produção de artesanato. Quero dizer, para os gerentes e agentes do Programa Artesanato Solidário, para mim, que integro esse grupo e ao mesmo tempo que pertenço a uma instituição – o Museu de Folclore, no Rio de Janeiro, que lida com o universo do artesanato popular há muitos anos.
Enfim, é uma grande questão porque quando falo de gosto, imediatamente estou falando de subjetividades. Não há, no plano do gosto, objetividade nenhuma. A gente pode até descobrir determinados padrões, determinados parâmetros que nos informam acerca das escolhas, das preferências de grupos e indivíduos – e a sociologia do gosto está aí fazendo isto. A sociologia vai nos permitir definir determinados universos que orientam as escolhas, mas, no fundo, quando particularizo em maior profundidade as minhas preferências, o meu gosto, portanto, resvalo para o terreno da subjetividade. E aí, é a sabedoria popular que questiona: “O que seria do amarelo se todos gostassem do azul?”.
Por outro lado, na sociedade em que vivemos o gosto está ligado a padrões de fruição e consumo ditados por moda, fortemente influenciado por momentos, por tendências criadas artificialmente pela indústria cultural, pela cultura de massa, pela sociedade de consumo, ou que outro nome queiramos lhe dar.
Quando a gente lida com o artesanato popular, que de certa forma definimos aqui como artesanato tradicional, tudo isso tem implicações extremamente sérias e grandes dentro desse universo. Um exemplo para ficar bem claro: um dos projetos que eu coordeno é o de brinquedos de miriti, de Abaetetuba, cidade do Pará, cuja identidade é fortemente marcada pela produção desses objetos cuja maior venda é feita por ocasião do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém. Numa das reuniões com os artesãos, eu levantei a questão do uso exagerado do verniz cobrindo esses brinquedos. Os brinquedos refletiam como um espelho, algo que não está de acordo com o meu gosto. Eu falei: “Diminuam esse verniz, vocês não acham que ficaria melhor? Voltem a fazer esses brinquedos como vocês faziam.”. Isto porque, em 1986, quando estive pela primeira vez pesquisando aqueles brinquedos, eles praticamente não recebiam qualquer envernizamento. Logo após, uma grande empresa entrou em contato querendo fazer uma encomenda de brinquedos para dar como brinde. Foi marcado um dia para a visita da pessoa que escolheria os modelos que seriam feitos. No dia acertado, todos os artesões compareceram com suas amostras de brinquedos para serem escolhidos. Um artesão não me ouvira e levou seus brinquedos altamente envernizados. Foi ele que ficou com todas as encomendas e os outros voltaram para casa com seus brinquedos de “fino” gosto. Esse caso ilustra bem a impropriedade ao dizermos que o mercado quer isto ou quer aquilo. Afinal, quem é o mercado?
A minha pergunta é justamente essa: até que ponto direcionar uma produção artesanal de cunho tradicional para atender a um determinado segmento do mercado não é submeter a estética particular de recepção, e portanto restringir o universo de venda de determinado pólo e determinada comunidade? Até que ponto não estamos cerceando essa estética primeira, limitando-a a uma única estética de recepção, e portanto podando as possibilidades de abertura dos canais da criação a que Roberto fazia referência? Fico pensando se nosso papel não é providenciar (no sentido de buscar solução) outras questões que são básicas e centrais, e deixar o ponto da estética da produção aberto aos artesãos. Me pergunto se, ao fazê-lo, de repente não surgiram os artistas criativos e inovadores, cuja ausência Rugiero detecta, dentro desse processo, que é um processo tradicional de produção.
Enfim, porque estamos falando de gosto e já que aprecio tanto o popular, tudo isso me faz lembrar o dito: “Quem ama o feio, bonito lhe parece”. Isto, para mim, esclarece perfeitamente a questão da subjetividade do gosto. Adorei ver a Janete falar que o mau gosto é o do outro, que o meu sempre é bom gosto. Isso também recoloca a questão da estética e do gosto, que não pode ser critério para nos referimos à questão do artesanato no País. Não estou falando de um relativismo total graças ao qual eu não tenha gosto. É lógico que eu tenho meu gosto.
Evidente que a minha casa, meu modo de vestir, de ser, de agir, os objetos que me cercam e cuja escolha foi minha, todo o universo a meu redor, e que foi criado por mim, tudo isso foi orientado pelo meu gosto. Mas quando estou lidando com projetos que são comunitários, o meu gosto subjetivo não é critério para ação nenhuma, porque tanto faz o meu gosto, como o gosto do outro. Não posso hierarquizar de maneira nenhuma o olhar sobre uma produção a partir do meu gosto subjetivo.
Algumas ilustrações dão perfeita idéia da gravidade das interferências. A primeira delas é um pote de cerâmica feito em Icoaraci, no Pará (figura 1). Esta localidade, um distrito de Belém, é um importante centro produtor de objetos em barro. Ali, há muitas décadas, produzia-se uma cerâmica tradicional de utilitários para cozinha e para serviço. Essas peças, sem motivos decorativos, eram consumidas basicamente pelo mercado regional. Num determinado momento da história, a cerâmica de Icoaraci incorpora os padrões étnicos transpostos das cerâmicas arqueológicas das regiões de Marajó, Santarém etc, fundamentada em pesquisa feita no acervo do Museu Paraense Emílio Goeidi, e passa a se configurar como um centro de produção desse tipo de objeto. Hoje, Icoaraci é um grande pólo de produção que exporta para todo o País e para o exterior. Na década de 1980 foi introduzida, a partir de um curso, uma outra estética que, no local, passou a ser conhecida como vertente Veredas (figura 2). Essa interferência propunha uma inovação na criatividade dos artesãos, visando "oxigenar" aquela produção local. Aí se tem a comparação entre o que era uma cerâmica com expressiva marca cultural e no que ela se transformou.
Há também a situação de um outro pólo, que é Maragogipinho, na Bahia. Trata-se também de um centro de produção de cerâmica. Neste segundo caso, é patente a tradição portuguesa na louça produzida: (figura 3) são potes, travessas, tigelas, pratos, alguidares, vasos e as famosas moringas em formato de boi e de baiana. Todas essas peças são modeladas em torno, recebem um engobo de cor avermelhada e são pintadas com pigmento de cor branca, formando desenhos de flores, ramos, volutas e arabescos. Também em Maragogipinho, a partir de intervenção externa, foi introduzida a mesma técnica de decoração denominada Veredas, que encontramos em Icoaraci.
Aqui vemos o resultado dessa intervenção (figura 4). E eu pergunto: onde está a identidade desses pólos, agora totalmente perdida, desaparecida por trás da homogeneidade desses produtos? Quem compra esses objetos não saberia nos informar de onde eles procedem. Isso tudo foi produzido a partir de intervenções feitas em nome do mercado. "É isso que o mercado está querendo", "é isso que o mercado consome", "é isso que é importante esses pólos fazerem para obter maior renda".
Com essas intervenções se perde o que para mim é básico como garantia de mercado: a questão do valor agregado a esses produtos. Quando falamos de valor agregado, estamos nos referindo imediatamente à questão de identidade cultural. Na verdade, identidade não é uma palavra vazia, desprovida de significado. Usada num sentido mais imediato, identidade é aquilo que identifica, é o que nos dá a origem, nos dá a procedência de determinado objeto, e que se perde quando você tem esse outro sistema de produção implantado.
Quando falo de identidade, estou me referindo àquilo que Carlos Rodrigues Brandão fala no livrinho O que é folclore - e sem nenhuma estigmatização em cima do termo -, quando ele trata o folclore como um sistema de comunicação, E esse antropólogo diz que "qualquer que seja o tipo de mundo social onde exista, o folclore é sempre uma fala, é uma linguagem que o uso torna coletiva.
O folclore são símbolos, através dele as pessoas dizem o que querem dizer. A mulher poteira que desenha flores num pote de barro, que queima no fundo de quintal sabe disso. Potes servem para guardar água, mas flores nos potes servem para guardar símbolos. Servem para guardar a memória de quem fez, de quem bebe a água e de quem, vendo as flores, lembra de onde veio. E quem é.
Por isso há potes com flores." E por isso é tão problemático você tirar as flores
dos potes e pintar tudo com os borrões da vertente Veredas.
Também não quero dar a impressão de que tudo que estou falando é porque acho que o design popular é invariavelmente maravilhoso, perfeito e sem problemas. Acho que há problemas a serem enfrentados, sim. Estou apenas apontando para algumas questões que julgo serem da maior pertinência e a respeito das quais devemos parar para refletir. Neste sentido, como exemplo, podemos pensar na seguinte questão: o que é artesanal não é só técnica, mas é também valor. Deve-se ter muita sensibilidade para saber onde mexer sem perder o valor cultural agregado que esses objetos têm, porque se há essa perda, eles viram uma mera mercadoria igual a qualquer mercadoria da indústria, e aí vão ser piores porque não serão tão bons quanto o objeto industrial e também já não serão mais tão bons quanto o objeto artesanal original, aquele que trazia envolto em si mesmo a marca de uma cultura; assim transformados, esses objetos ficam totalmente descaracterizados, culturalmente empobrecidos.
Se para mim o problema não está tão centrado na forma do objeto, por outro lado consigo identificar que muitas vezes a função ou a funcionalidade dos objetos artesanais é problemática. É importante que quando eu me deite numa cama e me cubra com uma colcha de algodão, que ela não me faça espirrar demais por soltar pêlos exageradamente. Agora, jamais quero pensar em interferir nos padrões de decoração dessa colcha, nas combinações de cores, e na escolha dos tons, de como se processam os desenhos, toda a sua decoração. Quero poder olhar para ela e reconhecer que foi feita em Berilo seguindo a tradição do Vale do Jequitinhonha e não criar outros padrões que, a despeito de serem bonitos, não me reportam a lugar algum. É importante que quando eu pegue um brinquedo artesanal, eu possa manipulá-lo várias vezes sem que ele se despedace todo na minha mão. Quero um pote de água, que quando eu o encha ele nao vaze, como eram os jarros que a gente encontrou em Irará (BA) (figura 5). Quando se punha água neles, a água vazava através das paredes, e isso eu nao quero. Então, acho que a gente tem que interferir nessa cerâmica como uma política de gestão de artesanato, para corrigir essas coisas.
Embora eu possa até falar: “Ah, mas se eu redesenhar o biquinho deste vaso, ele vai ficar muito melhor”, este vaso, como é, me satisfaz, me basta. Para mim, culturalmente ele tem a forma perfeita. No entanto, ele não me basta quando eu ponho água nele e ele vaza. A gente pode interferir, buscando a solução para isso, investigando aonde está ocorrendo a falha: é um problema do barro? É um problema da modelagem? É um problema da queima? Onde reside o problema?
Pois esse pote não exerce a função para a qual ele foi inicialmente concebido.
O que eu quero é melhorar a qualidade desse objeto tradicional. Ver onde sua funcionalidade precisa ser melhorada e quando precisa ser melhorada. Na forma desse objeto de valor cultural – qualificativo que, a meu ver, é sua garantia de mercado – raramente eu precisava mexer, porque ele tem uma forma consagrada ao longo de décadas. Na verdade, a grande maioria desses objetos já tem sua forma testada pelo tempo, atestada pelo uso de gerações e gerações. Este é o caso, por exemplo, da produção de gamelas, pilões e colheres de pau da comunidade do Bom Sucesso, no município mineiro de Pedras de Maria da Cruz, às margens do rio São Francisco, onde vimos atuando no apoio aos artesãos.
Tendo suas formas aperfeiçoadas pelo uso, consagrados nas cozinhas desde o período do Brasil colonial, esses objetos não devem estar direcionados para atender às determinações da moda, obedecer à última tendência que pede ora as linhas retas e ora a suavidade das curvas. A mesma moda que tende ora para os tons suaves e ora os tons quentes do verão. Isso para mim seria esvaziar esses objetos da importância que eles trazem consigo. Eles são objetos atemporais, perpassam décadas na sua funcionalidade bem resolvida; se mal resolvida, vamos ver o que é possível fazer. E, geralmente quando isto acontece, é decorrência de problemas que estão no plano das relações sociais de produção, os quais nos cabe identificar, para melhor equacioná-los e buscar solução.
Quando falo no tempo, o objeto na relação com o tempo, lembro imediatamente o artigo Ver e usar: arte e artesanato, do ensaísta mexicano Octavio Paz, em que ele estabelece considerações acerca dessa questão que tem se revelado tão presente em nossas discussões. Fazendo correlação entre o objeto de arte, o objeto artesanal e o objeto industrial, Octavio Paz diz que os objetos de arte foram feitos para durar no tempo, para lutar contra o tempo. Esse é o nosso trabalho nos museus, por exemplo, onde estamos tentando, a todo custo, deter o craquelê das telas. O destino dessa classe de objetos, portanto, são as coleções e os museus.
Já o objeto industrial, por outro lado, não está correlacionado com a questão do tempo, pois para ele não há tempo. São objetos que somem com a mesma rapidez com que apareceram, pois seu tempo de uso se esgota antes mesmo que seu tempo físico, cronológico se complete. Então ele é superado pela mudança na moda e seu destino é o lixo, pois já não se usa mais.
No entanto, segundo Octavio Paz, o artesanato “não quer durar milênios nem está possuído pela pressa de morrer logo. Transcorre com os dias, flui conosco, desgasta-se pouco a pouco, não busca a morte nem nega: aceita-a”. Diz ele: “Entre o tempo sem tempo do museu e o tempo acelerado da técnica, o artesanato é a palpitação do tempo humano. É um objeto útil, mas também belo; um objeto que dura, mas que acaba e se resigna a acabar; um objeto parecido mas não idêntico”.
Assim são as colheres de pau feitas em Bom Sucesso que não foram lavradas em prata, no século 18, em Portugal, para durar ao longo dos séculos e que hoje repousam em nossos estojos de veludo, ou nas vitrines de nossos museus.
Por outro lado, também não é a colher de poliuretano injetado, com apoio de alumínio cromado, não tóxica, o top da moda de hoje, e que amanhã terá seu design superado pela colher de polipropileno texturizado, premiada na última feira de Milão. Nossas colheres de pau são feitas para fazer os mingaus e as farofas nas nossas cozinhas, e quando finalmente ficarem velhas, feias e emboloradas, jogue-as no lixo e compre outras, porque inclusive custam muito baratinho.
Portanto, como não há a questão da durabildade eterna que devemos perseguir em nossa intervenção no universo do artesanato tradicional, também devemos identificar o que entendemos por qualidade do produto. Que o produto é esse? O que a gente chama tanto de qualidade? Qualidade não é a durabilidade, como já vimos, e também não é homogeneidade. A homogeneidade pode ser uma características do objeto industrial, mas quase nunca o é objeto artesanal.
Em 1953, escrevendo sobre cerâmica popular, Cecília Meireles dizia: “O mundo feito a máquina não compreende os bordos irregulares do barro, não gosta dos vidrados escorridos desigualmente, não aprecia a boniteza torta das canecas, das jarrinhas sem equilíbrio total”.
Cecília parece estar descrevendo os objetos de Passagem, comunidade do município de Barra, à beira do São Francisco, no interior da Bahia. Os potes lá produzidos manchados, tortos, feios segundo a estética urbano-industrial, rejeitados pelo mercado, mas são, a despeito desses aparentes defeitos, de uma beleza extrema. São potes feitos segundo a técnica de queima a céu aberto, e talvez não existam no Brasil dez comunidades que trabalhem com queima de céu aberto. É o que nos resta de uma tradição indígena de milênios.
E se você depara com essa cerâmica e quer levar esses potes para o mercado, as pessoas, por desconhecimento ou ignorância dizem: “Não, mas isso está com defeito, todo manchado!”. Acho que nos cabe mostrar que isso não é um defeito, é uma marca cultural imensa. Como agentes de um processo, cabe-nos acrescentar a essa peça uma etiqueta, um selo que chame a atenção para o fato de que essa queima é prova de um passado enorme que está por trás do modo de fazer esse objeto. As manchas na peça são marcas de um passado imemorial. Não estou querendo ser preservacionista, não se trata disso. Aliás, chamar-me preservacionista me provoca urticária. A comunidade de Passagem, onde vimos atuando, por exemplo, vem requerendo fornos, a construção de fornos onde queimaria a sua louça. Acho essa reivindicação legítima e deve ser atendida, na medida do possível. Não se trata de impedir a mudança. No entanto, é preciso discutir com essa comunidade; temos que mostrar também para ela que a louça que produz também é bela, que é importante culturalmente para o país. Temos que transformar o local em que vivem num local importante para elas mesmas, para sua auto-estima. É importante que sabia, que se tornem conscientes do valor que possuem. É importante que os moradores de Passagem saibam que são um dos poucos pólos que têm essa riqueza, que é a queima a céu aberto. E com as marcas milenares que o fogo deixa na peça, que a fumaça imprime no barro, agrega-se valor ao produto artesanal feito nessa comunidade. Não temos que lutar contra essas marcas culturais, mas transformá-las em valor agregado, pois é isso que são.
Do ponto de vista do mercado, o que nos cabe? Cabe-nos informar o mercado sobre o valor e a importância de objetos como esses. Isso é informação, é formação de público, é educação de mercado. Então eu vou constituir o público para esses objetos, vou criar um público e não criar o objeto para o público. Vou trabalhar com etiquetas de informação mostrando ao públlico que objeto é esse, mostrado ao público que é um provilégio poder possuir um objeto como esse. Que esse não é um objeto qualquer. Pelo contrário, esse objeto tem uma cara, uma identidade, provém de determinado lugar, foi feito por determinada pessoa e ali, na eitqueta de venda, está o nome de quem fez. Ele não é anônimo, não e descaracterizado, não é despersonalizado.
Portanto, concluindo, me parece que nos cabe é tomar muito cuidado com a interferência que podemos fazer no universo da produção artersanal popular brasileira, especialmente quando falamos do campo da estética, do campo da forma. Preocupa-me a tendência que quer transformar o design tradicional, achando ser sua a primazia do gosto. Precoupa-me a minha prepotência em achar que consegui elaborar uma forma que é melhor resolvida que aquela criada pela inventiva popular. Refiro-me evidentemente à criação no campo estético e não ao plano da funcionalidade. Essa é a grande distinção a fazer. Interfiro no campo funcional porque não quero que o brinquedo se despedace na minha mão, ao primeiro toque.
O campo esético é mera questão de gosto, de “eu gosto” ou “eu não gosto”, “esse objeto me toca” ou “este objeto não me toca” e, se não me toca, certamente tocará a sensibilidade de outros; e eu acho que é legítimo que assim o seja, pois, recorrendo mais uma vez à sabedoria popular, “quem ama o feio, bonito lhe parece”.