Você teve uma trajetória pessoal ligada à cultura popular e à arte. Sempre cita a influência de sua irmã. Conte um pouco dessa trajetória e de como foi essa relação pessoal com a cultura popular e o artesanato.
Quando menina, minha irmã fundou, no Rio de Janeiro, uma escolinha de artes para crianças, a Escolinha de Arte Girassol. Ela teve uma participação expressiva no movimento de arte-educação no Rio. Por esta razão, tive a felicidade de ter tido uma dupla educação: a educação formal das escolas e a educação que minha irmã me possibilitou nesse espaço que ela criou em Ipanema. Nesse período, por volta dos anos de 1960/1970, minha irmã transformou a escola em um espaço freqüentado por artistas plásticos, intelectuais e também pessoas muito ligadas à cultura e arte popular. Então, desde criança, sempre tive isso muito presente na minha vida, esse exercício do olhar, de perceber o valor desse tipo de produção, o valor da criatividade na construção do indivíduo, o valor da riqueza cultural e da identidade brasileira.
Você foi à Rocinha quando ainda era estudante. Quais as origens dessa relação? De socióloga à consultora da comunidade: como foi o processo?
Entrei na Rocinha em 1981. Na verdade, quando decidi pegar esse caminho, escolhi a Rocinha porque desde menina tinha lembranças de lá. São Conrado, na época em que eu era garota, não tinha nenhum prédio, tinha bares e cabanas para tomar água de coco. Minha mãe gostava de me levar lá e, no caminho, eu já ficava muito curiosa com a Rocinha. No início dos anos de 1960, o Rio de Janeiro tinha problemas com o abastecimento de água, especialmente no verão. Eu me lembro de, menina, ir com o meu pai a uma fonte de água muito próxima da Rocinha. E me lembro que ficava olhando, curiosa. Queria chega mais perto, conhecer. Aos 22 anos, quando decidi iniciar um trabalho – que na verdade eu nem sabia o que poderia ser –, optei pela Rocinha por essa curiosidade de chegar mais perto, de me aproximar. Cheguei lá com a intenção de conhecer as pessoas. Lembro-me de que, na época, os amigos da minha irmã criticavam muito os chamados “pacotões”, os programas de governo que chegavam sem a menor relação com as pessoas e com a cultura da comunidade; simplesmente caíam de pára-quedas sem a menor noção do interesse das pessoas, da vocação do lugar, da riqueza cultural local. Como isto já era uma coisa muito implantada na minha cabeça, quis me esvaziar de mim mesma e deixar que o meu olho percebesse o lugar, as pessoas, que o meu ouvido percebesse as histórias, os interesses das pessoas. Meu maior exercício era me esvaziar do que eu pudesse querer fazer, porque, para mim, a grande questão não era o eu queria fazer, mas sim descobrir o que poderíamos vir a fazer juntos e, a partir disto, construir um caminho.
Você vem de uma família de classe média e construiu toda sua trajetória numa favela do Rio de Janeiro, trabalhando com pessoas que têm uma formação e uma condição de vida muito diferentes da sua. Como este contato repercutiu na sua vida? Quais as transformações que sentiu na própria vida pessoal?
Com certeza, minha visão de mundo mudou completamente, meu horizonte se alargou com a minha experiência na Rocinha. O exercício de olhar e de escutar é muito mais sensível e intenso do que, na realidade, a prática do dia-a-dia. Precisamos, no mínimo, relativizar nossas referências e valores, para então perceber o outro naquilo que ele tem de valor, de cultura, de identidade. E, na verdade, esse é um exercício permanente. É essa troca que venho buscando até hoje.
Quando cheguei na Rocinha, eu ainda dava aulas de arte-educação na escola da minha irmã, sendo que todos os sábados me dedicava voluntariamente à construção da minha relação com a comunidade. Cheguei através da empregada de uma amiga, que infelizmente já faleceu. Ela me apresentou a outras vizinhas e amigas que, por sua vez, me apresentaram a outras vizinhas e amigas. Aos poucos, fui construindo uma rede social na Rua Um da Rocinha, onde estamos até hoje. A cada sábado, eu ampliava essa rede de relação minha com as mulheres e das mulheres comigo. Visitando as casas delas, pude perceber o paninho de crochê na mesa, o pano de retalhos para dividir os ambientes da casa, e comecei a notar que isso, em alguns casos, era uma constante. Foi então que começamos a conversar sobre onde elas tinham aprendido a fazer o crochê, o trabalho de emenda de retalhos, o nozinho, o fuxico. Sempre tinha uma relação com o lugar de onde tinham vindo e, quando começavam a me contar desse fazer, elas se transformavam. O rosto e o olhar ficavam com mais luz. Elas falavam do lugar de onde tinham vindo, da mãe, da tia ou da vizinha querida que tinha ensinado o fazer artesanal. Isso me ajudou a perceber que esse fazer tinha e tem uma relação com a cultura de cada uma das mulheres e de todos nós, porque é parte da cultura brasileira. Fiquei fascinada porque, na verdade, esse fazer tinha e continua tendo uma relação afetiva, relacionada ao local de origem e da vida familiar. Tenho enorme interesse em contribuir na reconstrução da relação do indivíduo com o trabalho que, no geral, a industrialização destruiu.
A origem nordestina era um fator fundamental na constituição da identidade dessas mulheres. Hoje, como está isso? As mulheres ainda mantêm essa relação forte com as origens?
Isso permanece no sentido de que as artesãs da COOPA-ROCA não são pessoas que exclusivamente produzem em escala coisas criadas por terceiros. Elas também são parte do processo de construção dessas peças. Nós trabalhamos as oficinas que eu chamo de “Toró de Palpite”, onde elas trazem referências e contribuições nas diferentes técnicas artesanais da COOPA-ROCA. A partir dessas referências que são dadas por elas é que eu entro para afinar a interseção entre as artesãs e os nossos “parceiros comerciais”. É essa ponte que busco construir o tempo todo, não excluindo e nem minimizando o papel da artesã nesse processo de construção, porque senão vamos virar uma fábrica. Não é essa a nossa proposta e nem a nossa missão.
Conte um pouco sobre o trabalho da COOPA-ROCA. Quando e como começou? Quando passou a ser uma cooperativa e como foi esse processo? O projeto já tem mais de vinte anos. Como ele evoluiu durante todo esse tempo?
Cheguei à Rocinha em 1981 e, em 1987, a COOPA-ROCA foi legalizada – Cooperativa de Trabalho Artesanal e de Costura da Rocinha Ltda. A missão da COOPA-ROCA é gerar oportunidades para as mulheres trabalharem em suas casas e, dessa forma, participarem do orçamento de suas famílias sem se ausentarem do cuidado dos filhos e das atividades domésticas. Desde o início, trabalhamos com retalhos porque era a única coisa que tínhamos: as sobras do corte industrial de confecções, além de uma vontade enorme de organizar e estruturar a produção para avançar, crescer, expandir resultados e impactos sociais. No ano 2000, com a exposição REtalhar, convidamos estilistas e designers a desenvolver produtos a partir das técnicas artesanais da COOPA-ROCA. Com este evento, surgiu o modelo que chamamos de “parcerias comerciais”. Foi muito importante construir este caminho para fortalecer a missão da cooperativa. Ao trabalhar com as “parcerias comerciais”, geramos produção em escala e, desta maneira, ampliamos o volume de trabalho para as mulheres e também o número de artesãs na cooperativa.
Eu já tinha percebido que, sozinhas, dificilmente geraríamos escala e, como não tínhamos recursos, também seria muito difícil desenvolver produtos com a qualidade necessária para se alcançar um mercado mais exigente. Então, considerando todos estes aspectos, foi importante criar as “parcerias comerciais” justamente para gerar produção em escala, envolver um número maior de artesãs, valorizar a produção e alcançar uma qualidade que conquistasse mercados exigentes.
Como eu já disse, as parcerias comerciais foram iniciadas em 2000, resultado da primeira edição da exposição REtalhar, quando começamos a trabalhar com Carlos Miele, da M. Officer, entre outros. A produção em escala inviabiliza o trabalho de reutilização e reciclagem de materiais, então passamos a comprar a matéria-prima como, por exemplo, o fio para fazer o crochê, para bordar. Muitos disseram: “Puxa, mas era ótimo trabalhar com a reutilização de materiais”. Concordo, mas vale lembrar que meu compromisso é com a missão da cooperativa, nosso compromisso é com a artesã da COOPA-ROCA. Continuamos trabalhando com as mesmas técnicas artesanais têxteis, mas umas produzem volumes muito maiores do que outras, como o bordado e o crochê, ao contrário do fuxico, do patchwork e do nozinho, que ultimamente são produzidos apenas para projetos pontuais, seja para o artista plástico Ernesto Neto ou para peças decorativas de designers ou arquitetos.
Como é o trabalho de criação? De onde surgem as idéias? Como elas são discutidas? No caso dos projetos encomendados, que envolvem designers ou artistas plásticos, como é feito o processo? Há algum diálogo com as mulheres da cooperativa, no sentido de elas também sugerirem interferências no projeto do designer?
O trabalho cumpre várias etapas. Trabalhamos com fotos de referência ou algum material específico com o qual precisamos desenvolver propostas; organizamos as oficinas de “Toró de Palpite”, que motivam o desenvolvimento do processo artesanal, e estimulamos permanentemente os processos criativos através das oficinas, do desenvolvimento dos produtos comerciais e das peças para desfiles e exposições. Eu também participo do desenvolvimento e da produção de todos os protótipos e produtos da COOPA-ROCA. Meu papel é verificar o que as artesãs desenvolveram a partir do “briefing”, ou mesmo contribuir para o encaminhamento do processo de produção, estruturando etapas e métodos.
Quais as possibilidades que o artesanato traz à comunidade da favela da Rocinha? No início, muitas artesãs tinham outras ocupações, desde empregos como o de secretária ou mesmo como dona de casa, e faziam o artesanato nas horas vagas. Hoje o artesanato passou a ser emprego, primeira ocupação?
Hoje temos em torno de 100 artesãs na COOPA-ROCA. Mas como falei, em algumas técnicas não conseguimos dar um ritmo de produção com um fluxo tão permanente como o do crochê e o do bordado. Hoje, a crocheteira da COOPA-ROCA trabalha os 12 meses do ano e a bordadeira trabalha de 6 a 8 meses por ano. A artesã do fuxico trabalha menos, a do nozinho bem menos e a do patchwork só bem pontualmente mesmo. A COOPA-ROCA é a primeira atividade para a artesã do crochê.
No momento, estou trabalhando novas estratégias para gerar novos modelos de negócios. A meta é que a COOPA-ROCA tenha condição de, paralelamente ao modelo de parcerias comerciais, também desenvolver produtos com a própria logomarca. Nossa intenção é a de que as artesãs de todas as técnicas da cooperativa tenham uma produção mais contínua. Neste sentido, não podemos ficar dependendo das ordens de produção dos nossos parceiros comerciais. Sem dúvida, eles têm um papel muito importante para a COOPA-ROCA, mas, no meu entender, a cooperativa precisa voltar a se apropriar da produção de sua marca para imprimir certo ritmo às diferentes técnicas artesanais têxteis de domínio das artesãs.
As variações de volume em relação às diferentes técnicas artesanais imprimem relações e compromissos distintos com relação às artesãs e à cooperativa. É óbvio que a relação entre a artesã do crochê que trabalha 12 meses no ano e a cooperativa é muito diferente da relação da artesã do nozinho, que produz numa escala muito menor. A artesã que está em produção freqüenta a cooperativa semanalmente, seja para entregar a produção, seja para pegar o material para trabalhar.
Temos casos de uma mudança visível no comportamento, na atitude e na vida da mulher artesã da COOPA-ROCA. O grau de impacto da cooperativa na vida da artesã está relacionado à produção, gestão democrática e transparente, remuneração justa. Todo o sistema começa com a produção da artesã, que impulsiona a organização coletiva, o trabalho e os múltiplos desdobramentos. Por esta razão, a necessidade de ampliar o mercado permanentemente.
Hoje em dia, tenho muita vontade de desenvolver um projeto para medir nossos impactos, para ter esses indicadores mais à mão. A minha vinda para São Paulo [no dia anterior à entrevista] foi para um evento sobre inovações no terceiro setor, uma conferência do WDI (William Davidson Institute), da University of Michigan Business School. Hoje, um dos grandes temas do terceiro setor é justamente buscar estratégias para gerar ações que impactem na vida das pessoas e das organizações e que não reproduzam o lugar-comum da filantropia, da assistência social e do clientelismo que, a meu ver, não são ações transformadoras, no sentido de que não há sustentação, não há a conquista de uma autonomia nem individual, nem das organizações.
Mesmo considerando o valor da busca por uma nova atitude no terceiro setor, precisamos tomar muito cuidado para não reproduzir o discurso das empresas. As lógicas são diferentes. A empresa privada está focada no lucro e o terceiro setor trabalha para melhorar a qualidade de vida das pessoas. Outra questão que também vale comentar refere-se ao discurso das quantidades, da capacitação de “trocentas” pessoas em não sei quantas comunidades. Para quem está na base e com a mão na massa como eu, verifico a inconsistência da informação. Afinal, quais impactos estamos buscando?
O projeto parece ser algo que nasceu e cresceu lá dentro mesmo, com um foco na comunidade, de valorização de saberes e de identidades. Conte um pouco sobre isso. Como a comunidade recebeu o projeto e quais foram as transformações que aconteceram nesse sentido? De que modo os trabalhos influem na auto-estima da comunidade?
A COOPA-ROCA promove várias atividades para as artesãs, tanto para o entendimento e o fortalecimento do papel de cada uma delas na cooperativa e vice-versa, como atividades para o fortalecimento da artesã, mulher cidadã contemporânea. Já visitamos o museu de Arte Naïf, fomos ao Jardim Botânico, à escola de artes visuais do Parque Lage, organizamos idas ao cinema, ao Instituto Moreira Salles. Muitas mulheres nunca tinham ido ao cinema.
De uma maneira geral, as artesãs da COOPA-ROCA pouco se deslocam pela cidade. O Jardim Botânico está ao lado da Rocinha e, no entanto, elas nunca tinham ido lá. Trabalhamos para ampliar o horizonte das artesãs em vários sentidos, inclusive o da cidadania, do pertencimento, da liberdade de ir e vir. São construções de pontes permanentes, no processo de organização coletiva nos diferentes espaços da cidade, não só nos passeios como também nos eventos da COOPA-ROCA. As artesãs participam das exposições e desfiles, justamente para que percebam que aquilo que elas fazem tem um valor cultural, o valor da beleza, porque as pessoas admiram a produção de cada uma delas. O reconhecimento do trabalho realizado fortalece a construção de um sentido sobre quem somos hoje, aqui, neste mundo, seja na construção do conhecimento dentro da cooperativa, nas relações que a cooperativa constrói com os centros culturais, seja nos desfiles e/ou exposições, como essa relação da cooperativa com a cidade do Rio de Janeiro. Ir ao Jardim Botânico, por exemplo, é uma coisa muito especial porque todas elas vieram do Nordeste, com vivência e memória de grandes espaços naturais. São essas experiências que procuramos trazer para enriquecer o universo de cada uma delas.
Por trabalhar com moda, a COOPA-ROCA tem grande visibilidade. E a Rocinha está sempre junto na divulgação da nossa criatividade, originalidade, realizações e conquistas.
Hoje vocês têm parcerias não só para os produtos da COOPA-ROCA, mas também para projetos de capacitação profissional e ampliação da atuação da cooperativa. Qual foi a importância do estabelecimento das parcerias na divulgação e melhoramento do trabalho na Rocinha?
Para o trabalho da COOPA-ROCA, sempre persegui o desafio de andarmos com nossas próprias pernas. Primeiro, para fugir do assistencialismo e do clientelismo, que para mim são como vírus, não contribuem em nada para a transformação social. E depois para conquistar a sustentabilidade para a cooperativa a partir da produção em escala, promovendo trabalho para um número maior de artesãs.
As atividades da COOPA-ROCA tiveram projetos e convênios muito pontuais. Em 1988, fizemos um convênio com a Secretaria da Indústria, Comércio, Ciência e Tecnologia, com a Light e com a Coordenadoria Estadual de Desenvolvimento Econômico e Social para reformar a casinha que compramos para a cooperativa com recursos do financiamento do BNCC (Banco Nacional de Crédito Cooperativo), transformando a sede da cooperativa em um pequeno prédio de três andares.
Entre 1998 e 2000, as parcerias com o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), o Comunidade Solidária e a Unesco possibilitaram a realização do projeto “Nova Geração COOPA-ROCA”, com atividades de iniciação profissional nas técnicas artesanais têxteis para jovens da comunidade, trabalhando também a educação sexual e o apoio nas atividades da escola formal. Mas este projeto foi interrompido em função do crescimento do volume de produção, a partir do modelo de “parcerias comerciais” adotado em 2001.
Também tivemos uma parceria com a Fundação Avina, de 2004 a 2006, para capacitar as artesãs e a cooperativa na expansão de mercados.
Vale informar que a COOPA-ROCA é auto-sustentável desde 2001, com autonomia para definir suas estratégias e articulações, sem dívida no banco e com os impostos em dia.
A COOPA-ROCA também teve inúmeros parceiros – na grande maioria, empresas privadas – para a realização de seus eventos, que sempre foram estratégicos, tanto as exposições como os desfiles. Reconhecemos todos os nossos parceiros e a importância de se construir alianças nos diferentes setores da vida pública e privada. Aproveito para agradecer o apoio e o network do Lead International Program/Rockfeller Foundation, da Ashoka e da Fundação Avina.
A COOPA-ROCA funciona como uma organização quase que empresarial, mas o ambiente também parece ter uma horizontalidade de relações, encarado como uma conquista compartilhada. Como funciona a estrutura da cooperativa? Há diferenças de relações na prática e na estrutura hierárquica formal?
A gestão da COOPA-ROCA é compartilhada entre a diretoria e a equipe da cooperativa, formada por três moças da comunidade, responsáveis pela gerência do setor administrativo-financeiro, gerência do setor de produção e controle de qualidade. Eu faço a coordenação artística e executiva: acompanho os protótipos, a gestão da cooperativa, penso as estratégias, articulo os parceiros e os eventos. Vez por outra, temos uma consultora financeira que desenvolve sistemas e planilhas para termos uma gestão transparente, uma gestão eficiente. É muito importante que essa parte seja muito bem trabalhada, porque esse setor gerencial é que traz saúde para a organização. Não adianta só desenvolver produtos de qualidade e ações sociais transformadoras se a saúde da cooperativa não estiver bem cuidada.
Vocês têm um projeto voltado para o público jovem da Rocinha. Como os jovens recebem isso? A relação com o fazer artesanal também é bem absorvida entre eles? Há diferenças de apropriação deste fazer entre o público jovem?
Esse projeto foi muito interessante até para que eu conhecesse melhor a dinâmica dos jovens da comunidade. Tivemos uma boa procura da parte deles, talvez por trabalharmos com moda, um setor que seduz. Procuramos não só trazer as referências das técnicas artesanais têxteis, que é a alma da COOPA-ROCA, mas também trabalhar a questão da educação sexual. A Rocinha tem um dos maiores índices de gravidez na adolescência no município do Rio de Janeiro, infelizmente, por total falta de informação. No período do “Nova Geração COOPA-ROCA”, as aulas de educação sexual ocorriam às sextas-feiras e, no final, distribuíamos camisinhas. Foi um trabalho muito útil para as meninas conhecerem o corpo, discutir o impacto da maternidade na vida da mulher e a importância do planejamento da gravidez. Tivemos um resultado muito positivo.
Com o início do modelo de “parceria comercial” no ano 2000, felizmente, a produção cresceu muito. Até então, pela manhã, tínhamos as atividades com as jovens do “Nova Geração COOPA-ROCA” e, à tarde, trabalhávamos com as artesãs. Com o crescimento da produção, não só tivemos de capacitar mais mulheres, como a produção demandou mais gerência e o trabalho administrativo cresceu. Todas essas atividades passaram a ocupar todas as salas em todos os horários. E, de novo, de olho na missão da cooperativa, conseguimos optar, minimizando a dor dessa opção. Mesmo assim doeu. A opção foi interromper as atividades do projeto “Nova Geração COOPA-ROCA”, mas com o compromisso de buscar estratégias para construir uma nova sede para a cooperativa. No momento que tivermos a nova sede, o atual prédio será direcionado exclusivamente para o “Nova Geração COOPA-ROCA”, com atividades de iniciação profissional nas técnicas artesanais têxteis para as jovens da Rocinha.
O projeto de construção da nova sede da COOPA-ROCA é um movimento da cooperativa que começou em 2001. Neste mesmo ano, consegui trazer o Carlos Miele para esta proposta. Foi ele quem doou os recursos para a COOPA-ROCA comprar um terreno na Rocinha− terreno este que, desde então, com a força de todos os anjos e santos, conseguimos manter intacto. E então começou nossa longa jornada para a construção da nova sede da COOPA-ROCA.
No final de 2002, eleito o presidente Lula, encaminhei a proposta para o Ministério da Cultura. A análise e aprovação demoraram mais de ano. Quando foi aprovada, foi liberada a captação de recursos para a primeira fase, relacionada ao trabalho de arquitetos, calculistas e engenheiros. O prédio terá cinco andares e aproximadamente 1.000 m². As instalações ampliarão toda a estrutura de gestão e produção da cooperativa. Inclusive haverá um andar para a parte industrial, para também nos fortalecer na nova estratégia de absorção da etapa industrial têxtil para expandir escala. Teremos ainda meio andar voltado para a saúde da mulher. Trabalharemos com uma equipe de fisioterapeutas, porque muitas das artesãs machucam o pulso com o crochê. Como sou adepta da yoga, também quero trazer a yoga, o alongamento, a acupuntura. E, além disto, todos os conhecimentos da cultura popular, a medicina preventiva através das ervas, do conhecimento tradicional de culturas muito antigas. Muitas artesãs conhecem a força e o poder do boldo, do capim-limão, assim como dominam outros tipos de conhecimentos da medicina preventiva. Vamos trazer isso para a cooperativa para, de novo, fortalecer a identidade, a cultura, e reforçar a relação da saúde e da felicidade com o trabalho.
Há algum tipo de divisão sexual do trabalho? Os homens também participam dos trabalhos? Tendo em vista o papel do homem na família dentro de uma favela e lembrando que muitas famílias têm a mulher como base da estrutura familiar, como é essa relação com a figura masculina na cooperativa?
Na Rocinha, a grande maioria dos homens são nordestinos e, muitas vezes, machistas. Eu também tinha curiosidade em relação aos homens e, na época em que tivemos a parceria da Avina, propus fazermos duas atividades com as artesãs e seus maridos.
Em 2005 e 2006, passamos uma tarde jogando futebol, pingue-pongue, tomando banho de rio e compartilhando um churrasco. Nessa tarde muito agradável, aproveitei para perguntar o que era a COOPA-ROCA para elas e para eles. Descobri que eles têm uma relação de respeito e gostam da COOPA-ROCA, porque através dessa relação da mulher com a cooperativa, ela trabalha em casa e, assim, acompanha o filho, cuida do trabalho doméstico, ao mesmo tempo em que produz, sendo que essa produção complementará o orçamento da família. Eles ficam felizes com a COOPA-ROCA, apesar de muitas vezes serem machistas. Para os machistas, ter a mulher trabalhando em casa é uma coisa muito confortável. Isso foi percebido na fala deles: “Ah, gosto muito que minha mulher fique em casa, ela cuida da casa e trabalha, então é muito bom”. As falas passam por isso também.
Assim, pude conhecer o que se passa na cabeça deles e as manifestações foram muito positivas – não sei se por quererem “fazer média” comigo ou se de fato veio do coração. Guardo o registro desses momentos em que tenho uma aproximação maior para escutar, conhecer a impressão de cada uma sobre a cooperativa – e, neste caso, dos homens também. Digo a elas, repito muitas vezes: “Preciso escutá-las!”.
A COOPA-ROCA tem hoje trabalhos que unem artesanato com moda, artes plásticas e design. Como é essa aliança? Você acha que é possível expandir para outras comunidades essa vocação? Você vê esse diálogo como algo bem sucedido em todas essas áreas?
Temos demanda de muitos grupos de artesãs, grupos de mulheres de vários estados, de várias regiões do Brasil. Porém, preciso considerar que os desafios da COOPA-ROCA já são suficientes para a estrutura que temos, com apoios muito pontuais. Para atuar em uma área maior, em outros grupos, outras regiões, preciso trabalhar uma estratégia muito mais complexa. Tenho interesse em ampliar impactos, mas para tanto vou precisar estruturar estratégias e equipe. A relação da COOPA-ROCA com a moda e o design qualificou o produto e o mercado. São parcerias de alto impacto e transformação.
O projeto das luminárias Cristal de Luz foi o primeiro que você assinou como designer. Tem vontade de fazer outros projetos nesse sentido, talvez até firmar um trabalho como designer fora da cooperativa?
Fico muito encabulada com isso, talvez porque seja confuso para mim. Participo de muitos setores da cooperativa. Acho que isso é confuso para mim e para as pessoas que veem e tentam entender o meu trabalho. Costumam me confundir com a COOPA-ROCA e eu mesma também me confundo. Não sei onde começa e onde acaba a minha pessoa e a COOPA-ROCA. Embolou tudo. Trabalho para fortalecer a cooperativa, para que ela tenha uma estrutura saudável e para que seja auto-sustentável, que avance cada vez mais no mercado, ampliando gradativamente seu volume de produção e o número de suas artesãs. Por tudo isto é que estamos articulando parceiros para a construção da nova sede, além de novas estratégias de negócios. Não estou correndo atrás de fortalecer o meu nome assinando os trabalhos, tanto que construí o modelo de “parcerias comerciais”. Acho que o meu nome já está muito associado ao da COOPA-ROCA, não preciso buscar um caminho para fortalecer isso.
No caso das luminárias, elas aconteceram nas minhas mãos. Elas já estavam dentro de mim. Fui montar um trabalho com o Ernesto Neto e dei de cara com a bola de plástico. Na mesma hora, disse: “Gente, eu preciso dessa bola!”. O Ernesto me deu a bola e, assim, fiz a primeira luminária, que foi a Cristal de Luz. Coloquei-a na minha casa, porque não tinha pretensão nenhuma com aquilo, a não ser gostar de olhar. Mas minhas irmãs, meus amigos e todos que iam à minha casa gostavam dela. Comecei a me dar conta de que aquilo podia acontecer como produto. No ano passado, na exposição REtalhar no CCBB Rio, a equipe responsável pelo projeto cenográfico propôs abrir a exposição com as luminárias. De início, uma crise se plantou em mim: “Como vou para a REtalhar levando uma peça assinada por mim?”. Por fim, empurrada pelos amigos, decidi levar as minhas luminárias para a exposição. A partir da Cristal de Luz, comecei a fazer vários modelos com as artesãs. Descobri que as pessoas realmente gostam das bolas. Adorava visitar a exposição, ficar escondida e ver a expressão delas ao entrar na sala com 30 luminárias de 50 cm e 38 cm. Ficavam com olhar de criança. Quando provocamos esse olhar nas pessoas, percebo que acertamos, porque é uma reação espontânea, que vem do coração. E o produto “pluft”, pulou no meu colo.
Ao final da exposição, minha amiga Regina Kato, dona da loja Fernando Jaeger, no Rio, me ofereceu para colocar as bolas na loja. Deixamos em exposição e as pessoas começaram a comprar.
Agora houve o 1° Prêmio Objeto Brasileiro e pensei em colocar a bola, porque faz sentido dentro desse caminho que estamos procurando, de retomar a fase em que tínhamos a marca da COOPA-ROCA. Tudo bem, fiz a bola e ela tem o meu nome. Essa é mais uma etapa, é mais uma conquista, mas o que eu quero mesmo é que a COOPA-ROCA construa o prédio, amplie mercados tanto no Brasil como no exterior, porque assim a cooperativa terá capacidade de envolver cada vez mais um número maior de mulheres. E, com isto, quero que a COOPA-ROCA se torne uma referência nacional para aqueles que, de alguma maneira, estiverem envolvidos com o desenvolvimento de grupos de produção artesanal.