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A CASA E O MUNDO


ENTREVISTA

GLAUCIA AMARAL E LIANA BLOISI

Publicado por A CASA em 14 de Novembro de 2008
Por Daniel Douek e Lígia Azevedo

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“Hoje você já não é mais a fulana. Você veste Prada, Galliano, ou Herchcovitch”

 

Gláucia Amaral e Liana Bloisi desenvolvem trabalhos em artewear.

 



 

Qual a relação de vocês com o artwear?

Liana: Não vim da área da moda, mas trabalho com design têxtil e artesanal. Venho trabalhando há muitos anos com o artwear, que hoje em dia tratamos como moda conceitual, e que não é nada mais do que uma concepção de moda mais elaborada, mais hand made, que enfatiza a importância do feito à mão e da expressão mais livre. Acabei de fazer um trabalho com um pessoal da Paraíba usando teares manuais bem primários, que lá se chamam teares de pau. Os limites desses teares de pau nos dão a possibilidade de fazer coisas completamente inusitadas. Por sua deficiência, eles se tornam interessantes, porque como seus limites são muito estreitos, usa-se uma criação muito maior em cima disso, e é possível usar texturas, porque os batimentos são bastante lentos. É algo completamente primário e manual e, realmente, os resultados são ótimos.

Levamos essas texturas e esses relevos para a moda, transpondo para o corpo esses tecidos que são colocados em decoração. Além disto, esse trabalho não é produzido em grande quantidade, como o design, às vezes, requer. Esse trabalho é feito em edições menores, com um contexto muito mais elaborado e uma expressão completamente livre. Embora seja livre, essa roupa tem que servir ao corpo e tem que funcionar, isto é, deve ser portável, passível de ser usada. Esse conceito, que antigamente era chamado de artwear e de wearable, começou nos anos de 1970 nos EUA e teve um boom nos anos de 1980. Hoje em dia, ele se espalhou pelo mundo como moda conceitual. Na realidade, são peças especiais com pequenas edições e que, no fim, começam a se encontrar com a alta costura, que está começando a deixar de existir. É aquela coisa feita à mão, mais elaborada. Alguns países tratam isso por outros nomes.

Gláucia: Acho que esse trabalho que se denominou artwear em determinado momento é uma coisa muito mais antiga, porque as mulheres faziam as suas roupas quando não existia o prêt-à-porter. A alta costura existe desde o fim do século 19, mas eram as pequenas costureiras e as mulheres em geral que faziam tudo: bordavam, enfeitavam, faziam rendas. Nunca fizemos uma pesquisa profunda sobre isso, mas, na minha cabeça, essa história de artwear vem mais de 1960, 1968, do tempo dos hippies, que retomaram muito essa coisa – claro que, muitas vezes, sem requinte. Faziam peças com lã, pintavam, faziam tai dai. Era uma produção menos elaborada no sentido da criação, mas elaborada no sentido do trabalho artesanal.

Minha ligação com esse tipo de trabalho vem de muito antes, porque minha avó fazia as minhas coisas, minha mãe bordava, eu comecei a fazer também e, de repente, integrei-me nesse movimento e fiz várias exposições aqui em São Paulo e fora do Brasil. Mas acho que isso sempre existiu. Como a Liana diz, hoje não há só esse aspecto da própria roupa conceitual, mas as roupinhas prêt-à-porter são também muito mais enfeitadas, há essa ideia do enfeite, do trabalho em cima da roupa. Hoje todo mundo borda, todo mundo enfeita a sua roupa, o panorama se ampliou. Acho uma maravilha retomar essa ideia da customização. De repente, inventam palavras para determinadas coisas que sempre existiram, só para dizer que aquilo é moderno.

A alta costura, claro, sempre foi artesanal. Com a crise, as peças muito individualizadas e muito elaboradas vão ficar cada vez mais difíceis. E, mesmo agora, as roupas não são exclusivas. Quando se fala que um costureiro faz uma pequena quantidade de certo modelo, são 300 peças. Você chega numa festa e encontra duas pessoas usando o mesmo vestido, duas pessoas que pagaram fortunas pelo mesmo modelo pensando que é único. No nosso trabalho não. No nosso trabalho, cada peça tem suas técnicas diferentes que desenvolvemos individualmente, olhando para revistas antigas, vendo o que acontece no mundo. Cada uma tem uma forma diferente de se trabalhar.

Fui fazer um trabalho com renda, porque renda é uma forma de expressão muito brasileira e quis trabalhar por esse caminho. Pesquisei e descobri que existiam rendas narrativas, rendas russas que contam o cotidiano do rei: “Naquele dia, o rei saiu de manhã, tomou o barco etc.”. Havia, em renda, todas as imagens de o que o rei tinha feito naquele dia. E isso era usado em uma roupa ou em um lençol. Então o trabalho manual também tem este aspecto de traduzir o cotidiano.

Pelo menos até agora, meu trabalho mais importante está ligado à pesquisa e à curadoria de exposições ligadas principalmente à área têxtil. A primeira exposição que fizemos nesse sentido foi Os Modos da Moda, em que contávamos a história da moda no Brasil. Havia quadros, objetos, tinha de tudo, e, para cada época, se contextualizava o cenário em que aquela roupa estava. Depois, houve uma outra sobre roupas de criança, que era lúdica, para as crianças enxergarem como se vestem e por que se vestem assim pelo mundo afora. Recentemente, fizemos uma exposição sobre por que as pessoas se vestem de determinado jeito, o que elas querem demonstrar quando se vestem.

Adoraríamos fazer mais dessas mostras para discutir essa temática, porque falar é uma coisa, mas apresentar visualmente é muito mais forte, apesar de atingir menos pessoas. Se bem que hoje se atinge bastante, as pessoas vêm, participam. Gosto dessa história de tentar escolher determinados temas e ir fundo nisso, achar um jeito de mostrar. Até gostaria de me dedicar mais a essa história de roupa individualizada.

Liana: E de corpo. É preciso entender o corpo de uma maneira mais eficiente, sem abusar dele, sem deixar que uma mercadologia se torne tão forte a ponto de apagar a sua individualidade. Isso é básico.

Gláucia: E isso era o que falávamos na exposição Com que roupa eu vou? Às vezes você tem um corpo que não tem nada a ver com as roupas que a moda propõe e, mesmo assim, você usa aquilo. Fica absolutamente ridículo. Em vez de enfeitar, te estropia. É muito importante perceber de que jeito você é, como você está, qual a sua cor.

Liana: Na procura de manter a individualidade e preservar esse corpo que é seu, é onde acho que se encontra a maior ideia do design, não somente quanto à multiplicidade e à funcionalidade, mas também para estar pertinente com a pessoa, deixar que ela seja ela própria e não mais alguém que o mercado impôs.

Gláucia: Acho o contrário do que você disse. O design é uma coisa distante da pessoa, é feito para todo mundo. Cada um é que tem que perceber se aquele design tem a ver com ele.

Liana: Mas se você souber fazer o design, você consegue transmitir a escolha, a seleção, e a funcionalidade. É como escolher um prato onde se vai ter o prazer de comer. É um design criado em série, mas em que se fará uma seleção, uma escolha. E também na maneira de usá-lo.

Gláucia: Acho que isso é educar o olhar. Essa é uma grande preocupação minha. É preciso educar o olhar, para a pessoa se ver e perceber como ela está, se a bunda é desse tamanho, se o peito é daquele, se a roupa está aqui ou ali. A pessoa tem que saber olhar e ver se aquilo combina com ela. Por exemplo, se alguém coloca em casa um lustre de cristal Chandelier e o apartamento for pequeno, não condiz. Então acho fundamental – e acho que é uma preocupação de todas nós – que as pessoas olhem e percebam o que aquilo é, porque não adianta o designer fazer um trabalho ótimo se a pessoa escolhe outro que não tem a ver com ela. Por mais que o designer se esforce, não consegue atingir todo mundo.

Liana: Nenhum de nós consegue atingir todo mundo, mas acho importante contribuir para personalizar o indivíduo nesse caos em que o individual está se dissipando cada vez mais. Hoje você segue o mercado. É a globalização. O mercado da moda faz grandes projetos econômicos dentro da moda, principalmente em alguns países, e a torna mais acessível, mas, ao mesmo tempo, a individualidade vai por água abaixo. A moda uniformiza e, além de uniformizar, despersonaliza, porque sempre se está com uma grife ou outra. Você já não é mais a fulana. Você veste Prada, Galliano, Herchcovitch. Sociologicamente falando, é lógico que o jovem se atrela melhor às tribos, até por uma questão de proteção, porque ainda está inseguro. Mas, por outro lado, quando se vai chegando a uma certa razão, é preciso haver discernimento quanto ao corpo e o que lhe faz bem, em todos os sentidos, estética e fisicamente. Essa ideia de conhecer o corpo e escolher o melhor para ele é uma corrente que hoje está muito forte. Foi aí que apareceram os personal stylists, que nada mais são do que alguém que vai ajudá-lo a se achar.

Gláucia: O que é um absurdo, porque aí a pessoa contrata um e sai vestida como ele manda. Na maioria das vezes, o personal não tem a preocupação de explicar para aquela pessoa, porque é ele que entende. Ele, inclusive, diz para ela onde comprar, porque também está ganhando do lugar onde vende, o que é um lado macabro.

Liana: É uma deficiência do mercado, mas, hoje em dia, é uma grande tendência. Qualquer pessoa que tenha uma vida pública – políticos, executivos – tem um personal stylist para decidir o que é melhor para a sua imagem.

Gláucia: E todos ficam iguais. A única que é uma maravilha no momento é a Michelle Obama. Vocês já viram as roupas dela? As cores? É bem interessante. Tenho uma amiga muito engraçada que vive para cima e para baixo nos Estados Unidos e só compra roupa em lojas de negros, porque é muito mais engraçado. As cores e formas são mais engraçadas. A Michelle é incrível. Numa hora ela estava de roxo, na outra de amarelo, no dia do debate de vermelho, com uma roupa cubana. Ela vai do jeito dela.

Já a Marisa é um horror, ela era muito mais interessante antes. É politicamente incorreto, mas temos que falar. Como temos experiência não podemos concordar com tudo. Mas uma coisa importante que nem eu nem você falamos é sobre a força da moda como mercado e como emprego. No Brasil, há dez anos – e acho que continua –, a moda era a maior fonte de emprego. Uma das maiores indústrias é a da moda.

Liana: Na França também. E a Índia está se debruçando sobre a moda e o têxtil com uma fome imensa, porque eles têm uma produção diversificada e ainda muito primária dentro de certas comunidades. Acontece algo parecido aqui no Brasil. As comunidades têm um trabalho que salvaguarda a criação. É importante trazer essa memória ativa e fazer com que ela se torne um meio de sobrevivência para os grupos. Trabalho com design artesanal, tanto com o Renato Imbroisi como sozinha, em vários projetos, com comunidades do Brasil inteiro. E vemos a riqueza que eles nem sabem que têm. Depois que interferimos, eles desabrocham e começam até a se colocar ativamente, a ter um cuidado com quem produz, a querer um preço melhor. Várias instituições estão muito empenhadas nesse movimento. É o momento de se colocar, porque nos outros países também há muita procura por essas raízes.

Gláucia: Lembro-me da primeira vez em que fui a uma conferência na Europa, em 1968, e um francês disse: “A Europa morreu, ela não é mais nada”. Ou seja, não tem mais energia. A energia tem que vir de outros países, em todos os sentidos.

Liana: E a inspiração vem sempre de outro lugar e é muito calcada nas etnias. É por isto que digo que a moda acaba englobando os conceitos de moda conceitual e de artwear, porque ambos bebem na mesma fonte, ou seja, nos africanos, nos indígenas, nos indianos, em toda a Ásia, nos japoneses. No fim, essas origens distintas acabam se re-entrelaçando, exatamente por causa da globalização.

Gláucia: E também não é só uma questão de ir em busca do desenho. É, inclusive, de estar lá. Por exemplo, Lesage, o maior bordador francês, hoje tem um ateliê na Índia, os hindus bordam para ele. É preciso desenvolver aqui no Brasil também uma mão-de-obra melhor, mais aprimorada, porque esse pessoal que está fora do mercado faz do jeito que quer. Esse trabalho que a Liana e o Renato Imbroisi realizam, esse trabalho de designer, de alguém que tem um olhar, melhora o nível do trabalho dessas pessoas.

Liana: Sinto que nós os ajudamos a se colocarem com mais liberdade, elaborando um produto tecnicamente viável, com qualidade e funcionalidade. Com isto, a peça deixa de ser apenas o artesanato espontâneo, ela tem um condutor que a ajusta um pouco na multiplicidade. O resultado é completamente diferente do artesanato espontâneo, que é outra coisa e faz parte das artes populares.

Gláucia: Por muito tempo, trabalhei nessa área de artesanato geral, não só ligado ao têxtil. O conceito de artesanato definia que este era a reprodução do artesanato popular tradicional. As pessoas repetiam aquilo que a vida inteira foi feito. E isso é o que o design está fazendo voltar, para que seja uma coisa que realmente funcione, que as pessoas conheçam, queiram e comprem. Claro que existe uma grande diferença entre um artesão sem qualquer laivo artístico e aquele que é artesão e artista. O artista coloca sua visão de um jeito muito individual enquanto que o artesão repete. Esse trabalho é interessante por isto, porque não se tem a certeza de que todo mundo vá se soltar e fazer alguma coisa de boa qualidade, que venda. É importante vender, para eles melhorarem de vida e o artesanato continuar existindo.

Liana: Nos últimos anos, tenho tido exemplos de lugares em que chego e vejo que o artesanato vai desaparecer. Então fazemos um diagnóstico e recomendamos uma estratégia para aquele local. Às vezes tem um artesão que faz e outros que são seguidores deste um, mas não têm sua qualidade nem sua criatividade. Colocamos isto no diagnóstico e, com a ajuda de instituições, conseguimos dar apoio a este um e colocar jovens em treinamento junto a ele, fazendo com que haja esse repasse.

Gláucia: Isso é exatamente o que era o mestre na Antiguidade; Michelangelo e Da Vinci, por exemplo, tinham seus ateliês e alunos que iam lá para aprender e ajudar a fazer aquelas obras imensas. É a função do mestre: transmitir o que sabe para seus discípulos, uma atitude muito interessante que precisamos retomar.

 

Gláucia, você já disse que nunca imaginou fazer uma exposição com peças de roupa, uma vez que não as enxergava como arte. Hoje, isso mudou. Como foi essa virada?

Gláucia: Isto é um problema meu com a arte. Nessa época, todo mundo dizia que era artista, e era mentira. Eu tinha certo pudor em dizer “Ah, sou artista”. Acho que não se pode dizer que é artista, os outros é que têm que dizer isso, reconhecer seu trabalho. Naquele momento, no Brasil, nosso trabalho não era reconhecido como arte e eu não queria atribuir toda essa importância a ele. Se bem que era um trabalho importante, tanto era que o Pietro Maria Bardi me chamou para fazer uma exposição, o que foi uma sugestão muito boa. Depois fizemos outra exposição maior lá mesmo e continuaríamos fazendo se ele estivesse lá, porque ele tinha uma cabeça maravilhosa. Mas eu evitava por causa disso, por causa dessa ideia do artista ser alguém “sentado nas nuvens”. Eu achava ridículo.

Minha formação mais importante foi o meu trabalho, e eu via que o meu público, que eram os comerciários, não entendia arte. Hoje já se entende mais, porque começaram a sair esses livrinhos de arte, vendidos em bancas de jornal, que todo mundo compra, tem arte nas escolas, ação educativa nas exposições. Hoje, para certo grupo, principalmente aqui em São Paulo, há muito mais informação sobre arte do que tinha antes, tanto que todos vão à Bienal. Essa é minha história com a arte.

Quero fazer alguma coisa em que as pessoas participem. Não vou ficar sentada em uma nuvem, acho isso ridículo. Você vira Deus? É mentira. E, muitas vezes, a pessoa nem era artista, porque ficava copiando, reproduzindo o que ouvia, seguindo o caminho de alguém. Muitas vezes era isso que acontecia e ainda acontece. Eu achava isso o fim. Até hoje, não falo que sou artista, porque acho muita pretensão dizer “Sou artista”. Discutimos isso várias vezes.

Liana: Na época, esse movimento provocou uma discussão em vários grupos e até entre os próprios artistas, que muitas vezes compravam nossas peças para se vestir. Até hoje temos esse tipo de apoio. Eles achavam que nossas roupas lhes davam uma liberdade maior.

Gláucia: Achavam que tinham um bom nível, que traduziam alguma coisa mais elaborada, e não só artesanal. A diferença do artesão para o artista é que o artesão fica na repetição, fazendo bem feito. O artista não, ele parte para se colocar e, às vezes, dá certo.

 

Vocês falaram sobre como o mercado e a indústria da moda impõem um determinado padrão às pessoas. No trabalho de vocês, inclusive, há uma luta contra isso, uma vez que buscam criar peças exclusivas e inserem nas roupas referências mais ligadas à tradição. No entanto, a indústria e o mercado conseguiram, de certa forma, baratear o preço das roupas. Com R$10,00 você compra uma camiseta, por exemplo.

Liana: Acho importantíssimo isso que você disse. O mercado tem um lado que inibe e tem um lado que toca pra frente, expande, dá sobrevivência e torna possível. Você falou no “tornar possível”. O “tornar possível” vem até por intermédio do design. Hoje em dia, a camiseta é um ícone de design, como o jeans virou um ícone de design através da indústria. Esse projeto mesmo que eu estava fazendo é atrelado à indústria. Quando vou desenvolver alguma coisa, meu pensamento é manter a qualidade, mas focar na multiplicidade e no “tornar possível”, que é o barateamento do que se está fazendo, para que fique acessível a várias pessoas, a vários locais.

Gláucia: O maior responsável pelo barateamento que se tem hoje é a China. O que acontece? A peça é criada em Paris, em Nova York ou em Milão, aí alguém vai lá, fotografa com a maquininha dele, leva para a oficininha dele, ou para uma grande oficinona distribuída em mil oficininhas, reproduz, e o camelô vende aqui. Aliás, pusemos isso na exposição Com que Roupa Eu Vou?. Você entra e tem uma brincadeira: a primeira coisa que se vê são os camelôs. Você entra em loja com peças de todas as marcas, mas não foi aquelas marcas que fizeram ou que mandaram fazer. Existe esse aspecto da mão de obra mais barata.

Liana: Isso tem um lado tricky também. “Tornar possível” leva a um desgaste e a uma agressividade que passa para o meio ambiente e nós estamos pagando o preço. O “tornar possível” tem também suas nuances. A moda foi deglutida, de seis em seis meses é preciso inventar algo novo para vender. Isso é loucura. Ninguém sabe mais o que é bom, o que é médio, dentro de uma estética. É você inventando, inventando, inventando, inventando.

Gláucia: E é um copiando do outro também.

Liana: Também. A tecnologia também tornou isso possível, permitindo a produção em grandes quantidades e por meios bem mais econômicos, principalmente em alguns países. Algumas pessoas restringem o comprar demais, cada vez elas compram melhor e menos, atitude que nunca foi nossa característica aqui no Brasil. Na Europa é assim, nos EUA, que também motivou esse desgaste total de mercado, não.

Gláucia: É o capitalismo, né? O responsável pelo mundo estar indo por água abaixo é o capitalismo.

Liana: O capitalismo selvagem.

Gláucia: Que é o que estamos vivendo. Veja a mídia, a mídia é outro terror que espalha tudo, certo e errado, sem peneirar, e as pessoas vão entrando nessa sem nem saber por quê.

Liana: Outro dia me disseram: “Ah, vamos montar um grupo que trabalhe com capim dourado”. E eu respondi: “Mas como? Esse lugar não tem capim dourado, culturalmente não tem nada a ver com o capim dourado, o perfil da cidade não tem nada a ver com o capim dourado”. Como é que fizeram a proposta para esse lugar se, primeiro, a maior parte do capim dourado é do Tocantins e Mato Grosso? E ainda tem uma coisa: o capim dourado só dá uma vez por ano. Ou seja, produzir muitas artesanias de capim dourado vai ser prejudicial ao próprio capim dourado. Qual é a única saída para o capim dourado? Talvez entrar para esses produtos mais exclusivos, mais elaborados em termos de design, mais bem finalizados, em que se coloca um preço maior, porque se for para ter preço competitivo, você acaba com o capim dourado. Às vezes uma pessoa resolve: “Vou fazer capim dourado aqui”. Baseado em que se vai fazer capim dourado lá?

 

O caso do capim dourado chamou muito nossa atenção. De repente, muita gente começou a trabalhar com esse material e a fazer tudo quanto é tipo de coisa. Justamente por ter sido uma atividade interessante e que deu certo por um tempo, o negócio se generalizou e colocou em risco o próprio material. Isso sem falar na qualidade das peças que começaram a ser produzidas.

Gláucia Amaral: Mas sabe o que é isso? Isso é outro aspecto muito grave hoje. As pessoas não têm formação, informação e nem a competência de pesquisar. E começam a querer fazer tudo, falar de tudo. É um absurdo.

Liana: O capim dourado está sob meu olho negro. Tenho visto tanta barbaridade! Uma vez me chamaram em Brasília para que eu opinasse sobre algumas peças de artesanato. Era uma comunidade de Goiânia atrelada à Brasília, ao Sebrae-DF, e havia peças de capim dourado. O que eu vi foi aquela palha maravilhosa completamente desinformada do que é a sua melhor performance. Todo material – o capim, a bananeira, o plástico – tem uma performance que deve ser respeitada. Tudo tem uma condução. E aí, de repente, você estrangula isso, pela forma como faz uma determinada bolsa, por exemplo. Você vem e destrói, mata, coloca um zíper amarelo, quando o capim é dourado. O que é isso? É o total assassinato do capim dourado. E, muitas vezes, é isso que vai para o exterior. Depois reclamam que o cliente não quer comprar. É obvio que não deve comprar, porque o que foi feito foi uma matança. Ao invés de pegar essa forma e respeitar aquilo que o capim pode dar, ele é simplesmente transformado em outra coisa.

Gláucia: Mas é a velha história: porque vende bem, as pessoas querem. Mas a pessoa não tem nenhuma informação, nenhuma preocupação em respeitar a forma.

Liana: É aí que acho que entra a arte, esse respeito estético às coisas. O capim, nas dunas, tem um formato que o próprio vento da duna dá. Isso tem que ser respeitado. Uma pessoa que não tem um pouco de arte, formação, sentimento, vai lá e acaba com isso. É uma questão até de sentimento. Tem gente que tem um talento nato, chega lá e faz uma maravilha.

Gláucia: A experiência é aquilo que você disse sobre o homem medieval, que enxerga as coisas como um todo. É preciso ter uma experiência como um todo, da forma, de como trabalhar com os materiais. Não só com aquele material. Se você tem isso, consegue fazer um bom trabalho.

Liana: Acho que tudo o que se faz pode ter arte de alguma forma. Para você fazer uma comida bem feita, tem que ter esse respeito pelo aroma, o sabor, os condimentos. Essa sutileza é uma arte. É como você pegar um capim dourado e respeitar a forma como ele estava na natureza e se colocar. Aí não é somente a artesania, mas existe um pouco de sensibilidade artística em quem está fazendo. Mas para se chegar a isso, é preciso experiência, cultura, informação, a preservação da palha, porque a maior parte da palha brasileira não é tratada, dá bicho, solta pó.

Gláucia: A madeira também.

Liana: Isso tudo vem da tecnologia do design. Essa é a parte racional. E a outra parte, que eu considero artística, vem da sensibilidade e do próprio gesto em relação ao material, a cada coisa que se faz.

 

Estamos em um momento de possibilidades tecnológicas tão grandes que um dia alguém vai fazer um material sintético que imite o capim dourado.

Liana: É a reprodução, no século XXI, do que existe na natureza e que tem que ser preservado. É também criar uma tecnologia que consiga preservar o capim dourado com essa limitação de ser colhido só uma vez por ano.

Gláucia: Há muitos anos, vi em Belém do Pará uns cocares indígenas maravilhosos. De repente, vi um cocar feito de um material que não eram as penas. O próprio índio tinha feito de um plástico que desfiava fininho e que parecia uma pena. Da mesma forma, há pouco tempo, comprei um colar de conchas que não eram conchas, era lata. Não é só uma questão de tecnologia, mas também da sensibilidade de quem faz. O índio sabe fazer aquilo, mas também sabe que, se continuar arrancando as penas dos pássaros, eles não vão se reproduzir, vão morrer. Para vender, ele acha uma forma de fazer.

Isso não se limita a uma pesquisa tecnológica, é também um resultado da imaginação. A verdade é que tudo tem que ter equilíbrio. Se você abandona o equilíbrio, aquilo desaparece. É a experiência. Quando você trabalha muito tempo com várias coisas do mesmo universo, você sabe se adequar. Talvez se essa bolsa de capim dourado não tivesse esse zíper, a forma nem fosse tão ruim. Mas é que se faz uma coisa totalmente díspar e esdrúxula. É tudo uma questão de saber onde está o equilíbrio. Se daqui pra cá não dá, vá procurar outra coisa. As pessoas não querem buscar isso. Está na moda, está vendendo, elas querem fazer.

 

Por um lado, queremos educar o mercado para consumir produtos feitos com materiais naturais, mas, por outro, isso gera diversos problemas. Falamos do capim dourado, mas há uma série de outros exemplos. No Espírito Santo, uma comunidade que trabalha com barro está preocupada com o esgotamento desse material. No Mato Grosso, artesãos que faziam violas com certas madeiras e as cordas com tripas de animais, agora, por motivos óbvios, são obrigados a substituir as tripas pelo fio de náilon e devem utilizar uma madeira específica.

Liana: Acho que é necessário um equilibro. Precisamos fazer essa dosagem em tudo, para trabalhar de uma forma que não seja perniciosa. E é possível também incentivar um lado maravilhoso, buscando essas coisas que estão esquecidas e colocando a pessoa certa para trazê-las à tona no urbano. Isso é criar mercado.

Nós também estamos criando um mercado, estamos criando mercado para a própria artwear, um mercado mais atento a esse fazer à mão, aos bordados, a uma estética diferenciada, particular. Um termo bom de se usar é “ser particular”. Não precisa ser maravilhoso, mas tocar alguém, de forma que a pessoa diga “Gostaria de colocar isso em mim”. Miguel Ângelo [Michelangelo], com toda sua inventividade, também criou um mercado, ampliou o mercado de arte da sua época. Aí entram os patrocinadores que, naquela época, eram chamados de mecenas.

Gláucia: Mas os de hoje chegam no meio do caminho e dizem “Não quero mais fazer, não vou mais fazer por causa da crise”.

 

É possível dizer que, no trabalho de vocês, tanto na questão dos materiais como na questão do próprio corpo, há uma busca em fazer esse diálogo equilibrado e adequado dos dois lados?

Liana: Acho que isso é que é um bom produto ou uma roupa eficiente. É o que une tudo: a estética, o conforto, a preservação.

Gláucia: E, no nosso trabalho de wearable, que acho um conceito velho, quando estou produzindo tenho que ver uma série de fatores. O meu tempo, por exemplo, porque tenho que ter uma produção não só para a venda, mas também para mostrar. Quando você vai participar de um evento, tem que ter uma certa quantidade de peças. Nesse momento, o que estou fazendo? O que eu posso fazer. Geralmente, você desenvolve uma técnica de acordo com as possibilidades disponíveis na sua cidade. Não posso, aqui em São Paulo, querer bordar com capim dourado, nem buriti. Até poderia, mas fica caro. Então usamos linha, lã e tecidos vendidos aqui. Não dá para eu tecer, porque levaria muito tempo e eu teria que ter um atelier imenso. Você sempre tem que fazer algo dentro das possibilidades da sua região.

Liana: O material que usamos é um material caro, porque é bom, é permanente. Nossa proposta não é a de criar uma tendência de moda. Ela pode até estar na moda, mas não necessariamente. São roupas atemporais, para qualquer época. Se um dia você está sentindo frio, coloca aquela roupa, se está triste coloca uma roupa mais alegre. Ela vai vestir. Essa roupa persiste.

Gláucia: Não é só o que fazemos hoje. Seria bom se tivéssemos aquelas roupas feitas nos anos de 1920, aqueles bordados e tecidos maravilhosos, para usar. É esse tipo de trabalho que digo que a vida inteira existiu.

Liana: É uma artesania da moda. Não estou falando só na alta costura.

Gláucia: Mas acho que sempre teve isso: as roupas bem elaboradas, bem costuradas, gostosas de usar. Sempre houve certas roupas muito especiais e é isso que queremos fazer ainda hoje.

Liana: E algo que permaneça. O preço que se paga, acho que nem é o da moda, porque hoje os preços da moda são exorbitantes, por uma marca, uma mercadologia, uma imagem. São peças muito difíceis de serem colocadas pelos grandes conglomerados de moda, que estão comprando cada vez mais e se tornando grandes multinacionais. Mas eu também não vejo nada de errado nisso, porque a tecnologia também abre um campo, pode fazer qualquer coisa, como o capim dourado tecnológico por um preço acessível. Agora, para se chegar lá, tem que ser um produto em grande quantidade, que precise de um mercado expandido para que se possa vender. Se não tiver imagem, como eles vão vender toneladas de calças jeans? É um mal necessário e anda tudo junto. E se tiver um equilíbrio, é ótimo.

Gláucia: Pessoalmente, acho isso muito ruim, acho que estamos tomando uma direção errada.

Liana: Quando falamos em equilíbrio, me lembro do algodão colorido, uma atividade que acompanho há uns sete anos. Estava conversando com uma menina que mexe com têxtil e ela me disse que não vai mais fazer esse trabalho. E perguntou para mim: “Você não acha que isso é uma modinha e logo vai deixar de existir?”. E eu disse que não. Primeiro por ser um produto necessário, por causa de todos os problemas alérgicos da população. Segundo, o próprio mercado europeu quer fazer produtos particulares para fazer frente a essa voracidade e compulsão pelas coisas. Terceiro, ele não vai deixar de existir porque agora a briga é alimento ou combustível.

Converso com diversas pessoas, em várias comunidades, para verificar, também, a condição econômica, porque quando se vai auxiliar um empresariado na cadeia artesanal da tecelagem à mão, vai se lidar com micro empresários. Hoje em dia, ninguém tem fábricas macro, e as máquinas também dispensam as pessoas. Então é uma cadeia bastante complicada. E tenho que parar para pensar e não falar bobagem, porque é muito fácil falar bobagem. A bobagem chega porque às vezes você não parou para fazer um raciocínio mais lógico.

Esse algodão é colhido à mão, o manuseio dele é diferente e, além de ser ecologicamente correto, é completamente isento de pesticidas. Não tem nada. Só é lavado com água quente, é a única coisa que ele leva. Ao mesmo tempo, não se consegue ter a produção que o mercado quer, porque ao lado dele tem alguém plantando soja. O que acabou com o algodão, que aquecia até a bolsa da Inglaterra, foi a peste e, a partir dos anos de 1950, a competição com a soja. A soja era muito mais fácil de ser cultivada e tuda a produção era vendida. O Brasil é um dos maiores fornecedores de soja do mundo. Ou seja, são tantos os intrincados! Você tem que viver a vida para ter prazeres, não para ficar louco ou angustiado. Dentro do possível, no dia-a-dia, você deve tentar fazer o que consegue.

Gláucia: Às vezes, no dia-a-dia, estou fazendo um trabalho sem pensar muito. Estou pensando no que quero fazer, que forma é aquela, que coisa é aquela que eu quero colocar ali. Se tenho um material, eu coloco, senão, procuro outro. É o prazer da criação. E tomara que alguém goste. Não só para comprar, mas para divulgar esse aspecto de cada um pensar no que usa, como faz e para que faz. Esse lado mais poético. Não se pode ser assim tão rígido.

Liana: E não pensar em vender. Quando tínhamos exposição, é claro que fazíamos peças mais elaboradas, mas privilegiamos a criação totalmente livre. Nos anos de 1980, comecei a trabalhar com PVC, porque aquilo pra mim era um desafio. Era tubo que passa por dentro da parede. Eu trabalhava desde o mais fino até o mais grosso, quase mangueira, e elaborei uma exposição inteira com isso. No começo, é lógico que todo mundo achava estranhíssimo. Crochetei, fiz tricô com aquilo. Era um desafio. Primeiro, porque eu achava plástico super cafona. Por achar cafona, eu achava que você nunca poderia ir a uma festa com plástico. Ao mesmo tempo, tinha essa coisa da tecnologia e do desafio, de pegar uma coisa que corre dentro da parede e tornar aquilo uma coisa estética. E deu super certo, fiz uma exposição na Pinacoteca, em Brasília, na Alemanha. E essa exposição foi em cima do que seria uma tecnologia com um uso artístico e viável. Tenho casacos, bolsas que você pode usar a qualquer hora.

Gláucia: Nessa história de criar peças que as pessoas não usam, vou sempre pelos desenhos. Bordo muitos insetos nas roupas, porque é preciso procurar formas que não tenham muito a ver com aquilo que as pessoas acham que se põe em uma roupa. Tenho um vestido de noiva com um véu que conta uma história de literatura de cordel. Nenhuma noiva vai querer usar, mas você tem que procurar fazer coisas mais originais, menos usuais, para que as pessoas vejam que tudo pode ficar esteticamente belo.

Liana: Esses plásticos eram impressionantes. Comecei a levar para todos os cantos. No Japão foi incrível. Fiz exposição, vendi. Então entrei em outro material, que é o cobre. Os metais sempre estiveram no homem, nas roupas da Idade Média e tudo o mais. E o cobre, particularmente, é um metal que ajuda o corpo. Ele ajusta sua pressão arterial, tanto que pessoas que têm pressão alta usam pulseiras de cobre. São metais que, para mim, foram um desafio, como foi o plástico. Não usei o plástico porque achava bonito, mas como um desafio, para torná-lo bonito. E realmente você não acredita como fica esse plástico iluminado.

Depois, com um projeto de Gláucia no SESC, criamos uma roupa para uma performática com fibra óptica. Foi a primeira vez que se usava fibra ótica aqui. Não foi fácil, porque a fibra ótica é só condutora, não gera luz, mas era possível. Tive que esconder, num lugar do corpo, uma pequena pilha que gerava toda a luz da roupa. Entrei em contato com o iluminador da exposição e ele me ajudou a criar isso. Ao mesmo tempo em que me fascina pegar uma pedra e conseguir colocar na roupa, me fascina pegar uma fibra ótica, ou um plástico que é tubulação, para colocar na roupa. Fora os reciclados, que hoje em dia estão sendo muito procurados, porque são considerados ajudas ecológicas. Se permanecerem no planeta, sendo usados ativamente, deixarão de ser lixo, formando montanhas de plástico. Tem gente que me procura pedindo para fazer uma ação em cima de um determinado reciclado. Por exemplo, em Brasília fizemos um trabalho com banners de rua. Bolsas com banners que são ecologicamente corretas, não porque sejam feitas de material natural, mas porque reutilizam materiais que seriam lixo.