Eu vou convidar para participar da mesa o Milton Guran. Ele é antropólogo e fotógrafo curador da exposição. Doutorou-se em Antropologia na França. É Mestre em comunicação social e também fez MBA. Ele foi fotógrafo no Museu do Índio no Rio de Janeiro e atualmente é coordenador geral da Foto Rio, um encontro internacional de fotografia do Rio de Janeiro.
Tenho a honra de convidar a participar da mesa Mutuá Mehinako Kuikuro, que é professor e presidente da Associação Indígena Kuikuro do alto Xingu. Formou-se na primeira turma de terceiro grau indígena da Universidade Estadual do Mato Grosso, com concentração em Lingüística, e foi agraciado pelo Programa Internacional de Bolsas de pós-graduação da Fundação Ford - Instituto Carlos Chagas. Iniciou mestrado em antropologia no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
O professor Carlos Alberto Cerqueira Lemos, colaborador do Museu há muitos anos. Formado em Arquitetura pela Faculdade de Arquitetura do Mackenzie. Atualmente é professor titular de pós-graduação do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Desenvolveu atividades ligadas ao projeto de edifícios e de urbanizações e dedicou-se, sobretudo, à docência e pesquisa histórica referente à arquitetura paulista e as origens da morada no Brasil. Foi o curador da primeira edição do projeto Casas do Brasil aqui do Museu da Casa Brasileira.
O projeto Casas do Brasil é um projeto de documentação anual sobre as diferentes formas de morar no Brasil e contribui para a formação de um inventário que permite novas abordagens sobre o acervo do MCB.
É uma satisfação apresentar esse ano o tema Casa xinguana, ampliando horizontes sobre a visão de arquitetura desse Museu, dedicado às questões do morar no Brasil, considerando as dimensões antropológica e sociológica, e observando as diferentes escalas entre casa, território e objeto. Apresentar esse tipo de habitação praticada, ainda hoje, por técnicas que podemos dizer sofisticadas ao aproveitar os recursos disponíveis na construção de um abrigo seguro, confortável e em perfeita adequação dos seus materiais e suas funções.
Temos aqui um exemplo vivo de solução arquitetônica que permanece útil ao atual visual do Xingu. Celebramos aqui essa cultura através de seus espaços de convívio visando a um posicionamento digno na sociedade nacional e mundial como memória fundamental do conhecimento conquistado pelo trabalho do homem. Eu gostaria, de passar a palavra para ao curador, o fotógrafo Milton Guran.
Milton Guran abre a palestra:
Muito obrigado a todos pela presença aqui hoje. Eu quero particularmente agradecer ao Museu da Casa Brasileira, por levar adiante esse projeto e por ter me dado a oportunidade de trabalhar nessa parceria. Queria agradecer também ao meu amigo Mutuá Mehinako Kuikuro. Para nós todos é um privilégio contar com a presença dele aqui, com toda segurança uma importante liderança Kuikuro por sua trajetória como professor indígena, formado pela primeira turma do curso superior, atualmente engajado num projeto de pesquisa de mestrado num dos mais prestigiados cursos de Antropologia do País, o do Museu Nacional, estudando a própria língua dele. Eu vou falar, pois talvez ele mesmo não fale, pela sua modéstia.
Mutuá é neto de Narro, uma das principais lideranças Kuikuro da virada do século XX para o século XXI. Na segunda metade do século XX, os Kuikuro viveram numa situação extremamente difícil, de adaptação e de afirmação da cultura. E Narro foi uma voz importante para levar os Kuikuro adiante e, junto com eles, os demais povos do Xingu. Eu tive a honra e o privilégio de conhecer pessoalmente o Narro, que figura em uma das fotografias dessa exposição.
Registro esse depoimento a título de introdução para depois passar a palavra ao meu amigo Mutuá e ao professor Carlos Lemos, que vai nos ajudar, com certeza, a compreender essa arquitetura. Ter Carlos Lemos conosco também é um privilégio para nós. Então nesse momento que é tão bom, vou procurar ser breve, para apenas situar esse trabalho que está aí nessas três salas.
Nessa exposição nós temos dois momentos. Um, em que se jogou a festa do Jawari, em julho de 78, e logo a seguir, em agosto, foi o Kwarup, na aldeia Kuikuro. Ou seja, o Jawari na aldeia Kamaiurá e o Kwarup na aldeia Kuikuro. E essas fotos fazem parte desses dois momentos.
Foi o meu primeiro contato com uma população indígena. Eu nunca tinha estado numa aldeia. Na ocasião, o diretor do Parque Nacional do Xingu era o professor Olimpo Serra e ele me encontrou absolutamente perdido no meio daquele grupo de índios, no meio daquela situação toda. Ele colocou a mão no meu ombro e disse assim:
“Guran, não se preocupe, é assim mesmo. Ninguém fica igual depois de ter passado por aqui. Então isso que você está vivendo é assim mesmo, Calma!!! Calma porque você está vivendo uma transformação definitiva”.
E, realmente, isso mudou a minha vida, porque me colocou diante da alteridade, que era uma coisa que para mim que não existia. A alteridade para mim era o baiano, o paulista (já que eu sou carioca), o pernambucano, o gaúcho. Mas ali eu estava diante da alteridade radical e aí eu compreendi na prática uma coisa que nós sabemos de boca e de ouvido, mas que vivenciamos pouco: existem infinitas maneiras de se viver nesse planeta, e aqui, nesse País, onde se falam duzentas línguas diferentes, existem pelo menos duzentas maneiras de viver neste planeta. E a nossa, ou seja, de uma sociedade de 180 milhões de habitantes que falam português, talvez não seja a melhor em todos os pontos e em todos os sentidos. Talvez, os falantes dessas duzentas línguas, que somam setecentos mil, tenham alternativas culturais, alternativas de ocupação do espaço, alternativas de relação pessoal e alternativa de compreensão do mundo que sejam mais eficazes para nos tornar felizes e garantir o funcionamento desse planeta por mais tempo. E foi com isso que eu simplesmente fui confrontado. O que eu trago para vocês aqui [exposição] é o resultado dessa confrontação.
Eu acho que as fotos são, sobretudo, acolhedoras. Elas mostram como eu, branco, estranho, fui acolhido por esses indivíduos. E claro, elas mostram também como eu soube acolher, dentro de mim, essa nova realidade. Eu me sinto orgulhoso. Sou obrigado a dizer que é chato ficar orgulhoso, porque é pecado, mas enfim, o que posso dizer? Eu fico orgulhoso quando o Mutuá vem aqui e diz: “Eu gostei muito”. Porque antes dessa exposição ir para a parede, o Mutuá viu as fotos, e os Kuikuro também viram as fotos.
Essa exposição tem uma parceria importantíssima, do professor Carlos Fausto, que é um estudioso dos povos indígenas da Amazônia, e nos últimos anos tem se dedicado aos Kuikuro.
Esse material passou por vários filtros. O primeiro deles é o homem branco, carioca, urbanóide, que cai nesse outro “planeta”. Esse primeiro filtro é o mesmo filtro dos Kuikuro, que recebem esse indivíduo e assim se produz um diálogo. Essa exposição foi sendo filtrada através dos anos. Trinta dessas quarenta e seis fotos nunca foram ampliadas. Dormiram em estado de negativo por trinta anos.
A exposição foi depois filtrada pelo Carlos Fausto. Escolhemos juntos as fotografias e em diálogo com o Giancarlo e a equipe do Museu. Esse material foi enviado para a aldeia Kuikuro, avaliado e identificado. A leitura dos Kuikuro enriqueceu a nossa, enriqueceu as legendas que o Carlos Fausto preparou. E, finalmente, hoje o Mutuá olhou e disse: “Eu achei muito bom”.
Portanto, nós estamos diante de um produto, de uma visão, que é o diálogo desse encontro de culturas e que nos diz muitas coisas. Quando eu estive na aldeia dos Kuikuros, eles eram cem indivíduos que viviam em apenas uma aldeia. Hoje, eu perguntei ao Mutuá, no avião, quantos alunos há na escola Kuikuro. São noventa e seis crianças. A população geral dos Kuikuros chegou a seiscentos indivíduos. Não é nada, não é? É um prédio de apartamentos. Só que, em trinta anos, eles multiplicaram por seis a população. Multiplicaram por três as aldeias. Passaram de uma aldeia para três. Nesse mesmo período a população indígena do Brasil passou de cento e oitenta mil pra setecentos mil indivíduos. Continua muito difícil para os povos indígenas. Dificílimo. Nós agora estamos vivendo um momento crucial e decisivo com a discussão no Supremo Tribunal Federal sobre o tipo de reserva e de demarcação que está sendo feita em Raposa e em Deserto do Sol. Elas estão sendo contestadas. Vivemos um momento decisivo, pois não sabemos qual será a decisão do Supremo Tribunal Federal.
Mas vivemos em uma situação, ao longo desses anos, em que realmente a cultura indígena foi se impondo e sendo cada vez mais respeitada. O diálogo entre a sociedade envolvente e o saber indígena foi sendo mais apurado e o respeito às populações indígenas foi se tornando uma obrigação, ao invés de ser apenas uma regra jurídica. Ainda existe muita arbitrariedade, situações que beiram o genocídio. Mas a mortalidade infantil nas aldeias diminuiu muito. As ações genocidas por parte de setores mais violentos da sociedade nacional, também vêm sendo contidas, o que propiciou esse aumento demográfico dos povos indígenas.
Eu vejo essa nossa exposição, aqui nesse Museu, que é a mais importante instituição cultural a tratar da arquitetura brasileira e da casa brasileira, acolhendo a Casa Xinguana, muito mais do que acolhendo o meu trabalho, muito mais do que acolhendo o trabalho do Carlos Fausto, mas abrindo um canal de diálogo, com essa matriz. Vejo isso como mais um aspecto e exemplo positivo desse importante diálogo, que é o único caminho, não para salvar os povos indígenas, mas para nos salvar.
Temos que entender que é o abraço do afogado. Ao fazermos desaparecer centenas de línguas, nós perdemos. Cada cultura indígena que é preservada, cada diálogo que se estabelece dentro dessa diversidade cultural, ajuda, salva e nos enriquece. O que é extremamente positivo, para mim, é estar aqui e poder contar, ainda por cima com o curso do professor Carlos Lemos que é uma referência para todos nós. Não só da arquitetura pura e simples, mas da arquitetura como a base física e operacional de uma cultura, de uma sociedade.
Então essas são as idéias que eu queria colocar para continuar o debate. O Mutuá vai nos falar sobre a cultura Kuikuro, então eu passo a palavra para ele. Muito obrigado.
Mutuá Mehinako Kuikuro, se apresenta:
Primeiro, boa noite a todos.
Meu nome é Mutuá Mehinako Kuikuro, eu sou professor da aldeia, filho de mãe Kuikuro e de pai Mehinako. Meu pai fala uma língua diferente da Kuikuro, porque no Xingu há quatorze grupos indígenas diferentes. As línguas são também diferentes.
Primeiro eu quero agradecer a Milton Guran pelo convite e ao diretor do Museu, Giancarlo.
Fico muito feliz de estar aqui com vocês vendo as fotografias que têm trinta anos. Quando o Milton Guran passou por lá eu não tinha nascido ainda. Agora eu estou aqui vendo as fotografias. Vi a fotografia do meu avô e minha irmã mais velha, ainda pequenininha. Eu fico muito feliz de estar vendo fotos do meu avô, uma das pessoas que foi aprender português no alto Xingu, uma grande referência para mim. Com ele que eu aprendi e conheci nossa cultura. Depois me interessei em estudar e conhecer, para conhecer outro mundo, que eu não conhecia. Agora estou vendo, vivenciando com essas coisas do mundo do branco e ao mesmo tempo levando a minha cultura, minha história, pra frente.
Agora eu gostaria apresentar um pequeno vídeo, para dar uma idéia pra vocês de como é a aldeia.
[Apresentação do documentário “Cineastas Indígenas – Kuikuro” – Extras “Kuhi Ikugu- Os Kuikuros se apresentam”, 07:00 min.]
É nessa aldeia que eu moro. Dá para ver como ela é, como é construída a casa, como é a aldeia, formato de círculo, e dá pra ver como as pessoas vivem ali dentro dela.
Hoje em dia a gente ainda constrói as casas, uma casa tradicional, com cobertura feita de sapé. A gente constrói uma casa, depende do tamanho da família. Se tiver muitas famílias, com quinze ou vinte pessoas, a gente constrói uma casa grande. Se forem morar cinco ou seis pessoas, construímos uma pequena. Assim a gente vai construindo a nossa casa. Depende do tamanho da família.
Uma aldeia em círculo, em volta do círculo tem as casas, em que cada família mora na sua casa. Dentro da aldeia tem uma “casa dos homens”, onde a gente guarda as flautas sagradas e outras representações dos rituais, máscaras e outras coisas também. Nessa casa dos homens, as mulheres não podem entrar porque não podem ver a flauta sagrada. Cada cultura tem sua regra e tem que se respeitar a regra cultural. Cada grupo tem seu modo de viver, diferente de outra aldeia. Na região do alto Xingu vivem nove grupos indígenas, Kalapalo, Matipu, Kamaiurá, Yawalapiti..., que falam línguas diferentes e a gente não entende.
A casa dos homens é especialmente construída para guardar as flautas, onde os homens reúnem a liderança da aldeia para discutir problemas da aldeia, organizar as festas e trabalho coletivo da comunidade.
Quando a gente constrói uma casa, a família ajuda a construir. As mulheres não participam da construção. E, dependendo do tamanho da casa, levam de um mês a três meses para terminar. Normalmente o dono da casa é pai da família. As pessoas importantes que foram na construção e ele é o responsável na casa. Dentro da casa, cada um tem seu espaço pra guardar as coisas, dormir e viver ali. A cozinha é sempre feita na parte atrás da casa. Cada um vive ali cozinhando as coisas, fazendo seu trabalho cotidiano.
Tem uma casa especial para cacique. A casa do chefe, que é construída pela comunidade. A comunidade tem que se reunir para construir uma casa grande para o chefe, que é especial. Escolhem uma madeira especial também, que a gente chama de Kwarup. É feito também para representar o espírito, a alma do chefe morto, porque essa madeira é especial para nosso povo. As histórias dos mais velhos contam que esse tronco de Kwarup foi aquele que o nosso criador escolheu para fazer escultura e transformar-se em mulher. Essa mulher se transformou em ser humano. Aí depois gerou dois filhos gêmeos que a gente chama Taugi e Aulukumã [grafia não confirmada] e que são as pessoas que foram responsáveis pela criação do nosso mundo. Para isso que a gente escolhe essa madeira especial para a construção da casa do chefe e a casa dos homens.
A nossa cultura a gente valoriza, e também, ao mesmo tempo, fica pressionado pela cultura da sociedade branca. Cada vez mais chegam coisas novas para dentro da comunidade. Isso atrapalha muito o desenvolvimento da cultura, mas mesmo assim a gente tenta. Os mais velhos ficam preocupados quando essas coisas novas chegam dentro da aldeia. Mesmo assim a gente desenvolve a nossa cultura dentro da comunidade, sempre fazendo as festas, fazendo atividade cotidiana junto da comunidade: o trabalho da roça, o trabalho da construção da casa que às vezes é feito junto com a festa do Taquara e outros rituais dentro da comunidade. O dono da festa fica alimentando as pessoas que estão trabalhando, dando peixe e outros alimentos que a gente consome. Vendo aqui a casa da foto tirada há trinta anos atrás, essa casa ainda continua existindo na região do alto Xingu. Na cultura do alto Xingu é quase tudo igual. O Kwarup é uma das festas importantes no alto Xingu, a gente se reúne quando tem festa. A gente manda os mensageiros para convidar gente de outras aldeias. No dia da festa todo mundo se junta. Faz uma festa grande, importante para nosso povo. É onde se apresentam os campeões da luta de Uka-Uka. Cada grupo tem seu campeão de luta que se enfrentam no dia da festa. Depois da festa, às vezes, tem casamento. A exposição mostra um casamento que teve há trinta anos atrás.
No casamento, normalmente a mulher vai buscar a rede do noivo e leva pra casa dela. Ela vai ficar lá, ajudando sogro, sogra, os cunhados, vai trabalhando para a família da esposa. Isso está mostrado aí na foto. Essa fotografia é muito importante para lembrar as coisas passadas, e apesar de ser passado, hoje está presente aqui, está mostrado e todo mundo está vendo. Eu estou vendo a fotografia que foi tirada antes de eu nascer e fico muito feliz de ver essas coisas. Uma coisa que eu não vi e agora eu estou vendo, isso que é muito importante para nossa cultura, mostrar para nós, eu como jovem vendo as coisas que já foram há muitos anos atrás. Isso me faz muito feliz de estar vendo, e para eu poder ver, aprender como é que foram as coisas passadas. Eu estou muito satisfeito com essas coisas. E eu posso mostrar para as outras pessoas que não conhecem. Essa exposição é importante para mostrar para a maioria dos brasileiros e para as pessoas que nunca conheceram, nunca foram na aldeia, nunca conheceram como é a nossa vida dentro da comunidade.
Quando eu era criança, eu achava que todo mundo conhecia o Xingu. O Xingu todo mundo conhece no Brasil. E depois quando comecei a crescer e ver, todo mundo fica me perguntando. Aonde eu ando todo mundo pergunta: de onde você é? Eu sou do Xingu. Qual a sua etnia, seu grupo, qual a sua língua? Você fala Tupi? Eu não. É que no Brasil existem várias línguas indígenas diferentes. Ai eu penso: Ah! Eu achava que todo mundo conhecia Xingu, todo mundo conhecia os índios. Já que todo mundo não me conhece, conhece meu grupo, grupos indígenas, coisa e tal, vou ensinando as pessoas. Não vou falar pra eles: “sou Mehinako Kuikuro, falo língua Aruak e Karib”. Começo a falar para as pessoas que tem várias línguas indígenas no Brasil, e vários grupos diferentes vivendo sua cultura diferente, comendo seu alimento diferente. Assim começam a entender essas coisas.
Fico muito contente de falar para as pessoas, eu sou Kuikuro Mehinako, falo duas línguas indígenas ao mesmo tempo. Agora tem as fotografias aqui para vocês verem, para vocês conhecerem como é nosso povo, como é nossa habitação dentro da comunidade.
Então eu finalizo a minha palavra aqui. Muito obrigado pela atenção.
Carlos Lemos começa sua apresentação:
Boa noite. Realmente eu fiquei muito contente de ter sido convidado pelo Giancarlo para participar dessa mesa, porque eu fui curador, orientei as primeiras exposições nessa instituição sobre a casa brasileira.
Foram casas rurais, casas do nordeste, casas modestas, mas a maioria delas a gente já vinha analisando, sobretudo a culinária com a presença indígena.
Com essa exposição de agora, com as fotos do Guran, eu tenho que retomar esse tema e mostrar até que ponto a gente pode ver o índio no cotidiano da gente, não só no cotidiano do paulistano, mas no cotidiano do povo. Realmente, o índio ainda está presente, sobretudo no cardápio. Também, como já foi dito aqui, as várias etnias e as várias línguas espalhadas pelo Brasil não permitem que a gente generalize coisas. Fazendo a história da arquitetura e da habitação brasileira, temos que ver as nuances pertencentes aos habitantes e a cada região do Brasil. O Brasil, como sempre digo, no fundo é um grande arquipélago de ilhas culturais. A presença indígena relevante hoje em dia não é somente essa que está guardada, resguardada no Xingu, mas é a de todo o mundo Guaianaz antigo, todos os Guaranis antigos, os Carijós antigos, que praticamente já desapareceram como uma presença física, mas ainda estão presentes no cotidiano, como falei.
Vou falar coisas a respeito daquilo que eu conheço, a respeito de São Paulo e que, podemos dizer com certeza, é em relação ao Brasil.
Aqui, na notícia desse casamento, vemos que a noiva foi buscar na casa da sogra a rede do noivo, marido dela. Isso é muito importante, porque na verdade, as nossas primeiras populações miscigenadas em São Paulo, foram em uma região mameluca com excelência. A gente tem que entender que em São Paulo, no cotidiano, até os finais do século XVIII, nas cidades do interior, se falava o linguajar tupi, o tupi-guarani mas, enfim, o hábito desapareceu. Mas isso foi somente há duzentos anos atrás. Em quinhentos anos de história, tivemos trezentos anos de uma sociedade altamente miscigenada. O paulista de quatrocentos anos sempre se vangloria de descender de João Ramalho, de Tibiriçá, etc. Ele não sabe que toda sua genealogia foi passível de ser codificada, feita e refeita, graças ao hábito notívago dos mamelucos de registrarem as suas ascendências, não de seus pais, ainda menos os portugueses que fizeram parte dessa miscigenação, mas ela é feita através do nome das mães.
Saiu há uns anos atrás, há poucos anos, quatro ou cinco anos, um livro muito importante do Jorge Caldeira que trata do padre Guilherme Pompeu de Almeida. Ele deixou uma genealogia feita dentro de seus diários. Foi um dos primeiros milionários residentes. A genealogia que ele fez é com o nome das mães. A única maneira de conhecer a família dele é através das mães e dos tios, que inclusive o pai do mameluco era necessariamente irmão dos cunhados, e com eles faziam negócios, construções, madeiras juntos. Essa sociedade mameluca foi surgindo porque girava em torno de um clima de hostilidade, sempre permanente, entre os padres que queriam transformar todos os índios em anjos e os colonos que queriam capturar os índios, justamente para que trabalhassem em suas propriedades com o fruto de fazer coisas para exportar, via Santos, para o resto do mundo.
O engraçado é que os mamelucos sempre estavam construindo. O mameluco escravizava muito. A casa paulista se definiu nesse ambiente, bem diferente da casa do índio. E como que uma índia, que era sempre a chefe de uma família? Nesse livro e em outros também, sobre a história de São Paulo, você vai ficar sabendo que houve uma guerra enorme, fratricida, grande, entre os índios e os Camargo, mas quem dirigia e quem mandava, quem resolvia os problemas dessa guerra, que teve muitos crimes, muitos assassinatos, eram as mulheres. Quando o filho de uma delas foi preso por ter participado de um desses assassinatos, foi mandado para Santos e de Santos foi de navio para Salvador. Ela acompanhou o navio por terra, desceu o Paraíba inteiro e, quando chegou no Rio de Janeiro, soube que o filho já tinha sido assassinado a bala. Foi quando ela voltou.
Vocês vêem que esse mundo feminino é que dirigia a casa primeira, que era de taipa de pilão. Não houve registro nenhum de como essas famílias mamelucas habitavam a casa. Qual era o problema de necessidades daquela casa? A casa freqüentemente dependia do quintal. Metade das atividades domésticas era feita fora. A casa era um abrigo debaixo do telhado contra as intempéries e protegida por cercas e muros altos. Vocês vêem a dificuldade da vida nas fazendas naqueles tempos. Foi descoberto, há muito tempo, um mapa da capitania de São Vicente. Esse mapa está guardado em Madri e ilustra a cidade de São Paulo com suas igrejas, suas casas etc. E à volta dela mostra casas de fazenda cercadas de muro de taipa de pilão nos quatro cantos e acessíveis apenas por escadas removíveis. Era um clima de medo que existia também dos índios verdadeiros hostilizando os portugueses e seus descendentes mamelucos, que entravam ocupando suas terras. E essas casas, geridas pelas mulheres duma forma arquitetônica portuguesa, como eram usadas? A taipa de pilão foi trazida pelos padres e pelos primeiros colonos-índios de São Vicente. Paredes de terra socada, plantas quadradas, retangulares, com uma divisão praticamente comum a quase todas elas. Uma grande sala central, rodeada de pequenos cômodos.
No município de Cotia tem uma casa chamada a Casa do Padre Inácio, lindíssima. Uma das obras primas da arquitetura brasileira no sentido verdadeiro da palavra, no que diz respeito à qualidade arquitetônica. Nessa casa, a gente entra na sala e tem uma semi-obscuridade, uma luminosidade de luar, vamos dizer assim. Os cômodos a sua volta, todos, cada um tem a sua janela. Agora, essa sala, no fundo é uma reprodução da oca, da casa indígena, da sala, do espaço indígena. Eu, uma vez, até brincando, escrevi um prefácio de um livro. Fiz uma introdução que diz: “Na casa bandeirista, talvez, quem é que diz que não! quem sabe! todo mundo dormisse na sala e os cômodos da periferia [no entrono da sala] fossem locais de trabalho, onde há a necessidade de luz”.
Mais tarde me veio outro texto de alguém, acho que foi o próprio Lúcio Costa, que disse que essa hipótese também não era desprezível. A verdade é que realmente nós não temos documentos, registros, bibliografia, sobretudo bibliografia relativa à casa dos três primeiros séculos, a casa paulista.
Mas essa casa foi resolvida, de taipa de pilão, mas obedecendo, vamos dizer assim, às condições climáticas de São Paulo que é uma região em que, em grande parte do ano, os dias são quentes e as noites são frescas. Nesse tempo em que estamos passando agora em agosto, sempre se repete, entra ano, sai ano, sempre metade do ano desse jeito. Noites muito frias com dias quentes.
A taipa de pilão é excelente para esse caso porque ela capta o ar, a energia radiante do sol, o calor, de modo que a noite essa parede quente aquece os dormitórios. Até essa repetição sistemática durante duzentos e cinqüenta anos, nós temos casas ditas bandeiristas, com a mesma planta, a mesma técnica de fatura, que vem desde o século XVI, final dos 1500, e vai até o começo do século XIX. Quase trezentos e cinqüenta anos, no mínimo, de repetição. Então é como a gente chama de uma arquitetura para-vernacular. Essa arquitetura para-vernacular significa que é quase uma arquitetura vernacular. Arquitetura vernacular, como vocês sabem, é aquela feita por uma sociedade isolada durante séculos, durante gerações e gerações. Casa vernacular é a casa do índio. Quem é que ensinou o índio a fazer a casa desse jeito. Não vamos nem pensar em escola de arquitetura, em engenheiros, pensando já há três, quatro mil anos atrás. Um dia um índio amanheceu e pensou, hoje vou fazer minha casa e faz daquele jeito? Evidentemente essa casa vernacular foi vagarosamente sendo aprendida como teria de ser. E o índio fazendo essa casa, tava se defendendo do que? Por que ele estava fazendo aquela casa? Aquela casa estava sendo feita, na verdade, como um grande invólucro selecionador e protetor das condições climáticas, antes de tudo. O que ele tava querendo, como todos os povos primitivos, era uma casa confortável e constante durante o ano. Uma casa sempre a mesma. Deve ter aprendido muito, evidentemente, fazendo um grande tablado ou grande trançado coberto de palhas, fazendo sombra e ficando atrás da sombra. Depois imaginou esse painel de dois lados, até que verificou que fincando paus no chão e curvando a ponta deles e os amarrando lá em cima, teria a possibilidade de um espaço côncavo, passível de ser coberto com palha.
Cada povo, no fundo, consegue o mesmo conforto ambiental através de técnicas e materiais diferentes. No mundo inteiro, os povos primitivos sempre tiveram a sua residência, e todos com a mesma nota, que diz respeito ao conforto. Veja os esquimós, por exemplo. Qual é o recurso da natureza dos esquimós, o que eles têm? Além de gelo, neve foca e urso branco. O iglu tem o mesmo conforto da casa indígena, absolutamente o mesmo. Como que eles conseguiram isso? Temperatura ambiente de menos 30, 40, 50 graus centígrados. Mas eles aprenderam que cortando a neve recém caída, recém compactada, fazendo blocos e organizando uma estrutura curva a partir de um arco simples eles constituíram a abóboda coberta com essa neve que no fundo tem qual temperatura? Zero graus, que é a temperatura em que a água se congela. Portanto, dentro da casa dele, já tem zero graus. Já ganhou! De cinqüenta caiu para zero. É um lucro extraordinário. Depois, forrando essa abóbada com gelo, peles de foca e acendendo uma luzinha no foco da curva, a temperatura chega à normalidade e ele, talvez não tinha pensado nisso, mas o esquimó dorme sem roupa em casa.
Enfim, cada um tem uma solução arquitetônica. A do índio é essa, a partir de camadas de palha, que garantem uma temperatura perfeita. E não precisa de janelas, porque aquela fresta lá de cima, já permite uma iluminação que garante primeiramente a inteligibilidade do espaço. A posição das redes. A rede do homem em cima, a rede da mulher embaixo, das crianças, o lugar de fazer o foguinho. A fumaça sempre sai certinha por cima. Há poucos mosquitos. Os mosquitos não gostam de escuro. Só o pernilongo paulistano gosta, mas o mosquito do sertão não gosta muito de escuro, não vai. Enfim, dentro dessa casa, na porta há luz próxima, na porta dos fundos, metade dentro, metade fora. Na cozinha, a comida é basicamente feita com base na farinha de mandioca.
Então todo aquele equipamento, referente à fartura da farinha de mandioca é reproduzido até hoje no nosso cotidiano. Até hoje ainda se rala a mandioca, se espreme em máquinas apropriadas, mas em casas particulares do sertão, em casas particulares do vale do Ribeira, e vários lugares que ainda o progresso ainda não chegou integralmente, usa-se até hoje o tipiti prensado para tirar o suco da mandioca e se obter a matéria-prima que é a fécula desidratada.
Houve casos, do mesmo modo que o mameluco construiu uma raça híbrida, metade índia, metade portuguesa, todos os equipamentos também se adaptaram meio a meio. O português viu o índio espremendo a mandioca no tipiti, que era tracionado. Era uma bolsa que tinha duas argolas, duas possibilidades de ser esticado. E quanto mais esticado, mais comprimida ficava a massa e o líquido escorria por ele. O português dizia que aquilo não dava certo, que ele ia aperfeiçoar. O que ele fez? Pegou a prensa do lagar, de fabrico de azeite, onde a azeitona era espremida para tirar o óleo. E ao invés de tirar o óleo da azeitona, passou a tirar o suco venenoso da mandioca espremendo com a mesma prensa que é um parafuso que vocês devem conhecer.
Aqui nesse museu [Museu da Casa Brasileira], tinha essas máquinas todas, mas elas foram dispersas, espalhadas pelos museus do interior. Mas, o modo de assar as carnes que a gente pensa que a grelha de churrasco é novidade, no fundo a grelha antiga dos índios se chamava jirau, que era também um gradeado de madeira em que se punha um “foguinho” embaixo, e fazia o que se chamava monteiro. Esse jirau se transformou num defumador, num fumeiro em cima dos fogões a lenha de todo o Brasil. Nesse jirau, o português, mameluco, brasileiro e depois mulato e negro; todos adotaram a tecnologia indígena.
Nesse jirau em cima do fogão se conservavam o sal, que era altamente higroscópico, que se fosse guardado fora, ele chupava a água e ficava melado. Se guardava também toicinho, o feijão e o milho, protegido do caruncho.
Esse jirau entrou na nossa vida e só desapareceu, com a geladeira praticamente. Gilberto Freire falou que o jirau em cima do fogão era a geladeira do pobre. Conservava as comidas com a fumaça.
A rede também, por exemplo, é outra de nossas heranças indígena, inesquecível porque hoje em dia é usada para lazer, digamos assim. Mas o Brasil todo dormia em redes. Em São Paulo, inclusive, há inventários mostrando que a cama era raríssima. Havia mais uma quantidade de catres, um pequeno leito desmontável, uma tela, um tecido grosso com armações de madeira. Chamavam-se armações de engonço. Quer dizer, o engonço era a madeira que permitia que fossem guardadas em pé, encostadas em uma parede. Elas eram armadas na boca da noite. E não precisavam de colchão porque eram um pano e já se dormia no pano, como se fosse uma rede, mas ela tinha pés de madeira articulados.
A índia também nos transmitiu o tear vertical, no qual ela fazia as redes. O tear horizontal só veio ao Brasil via Minas, porque Minas Gerais, como vocês sabem, foi repentinamente, em dez, quinze anos, entupida de portugueses aventureiros, chegados diretamente de Portugal, e com eles, os usos e costumes de Portugal, que vieram então renovar e modificar o panorama mameluco.
A história de São Paulo é antes e depois de Minas, antes e depois da guerra dos Emboabas. Enfim, a presença indígena na casa brasileira é realmente muito grande. Vai desce o pilão, do jirau e do ralador de mandioca. Enfim, a conversa vai longe, se agente for pensar, como foi no começo satisfeito o programa de necessidades da habitação do português e do mameluco no Brasil. Em linhas gerais era isso. Não vamos falar mais, não devemos falar mais do que 20 minutos, porque depois disso as pessoas ficam cansadas. É isso, eu estou às ordens, se quiserem perguntar alguma coisa, alguma dúvida que tenha existido, que eu não tenha falado. Está aqui meu colega que pode me desmentir. [Risos... Palmas...].
Milton Guran:
Muito bem, então para trocarmos idéias, convido alguém quem queira fazer alguma pergunta, alguma colocação. Acrescentar alguma coisa ao que foi dito.
Natália [ouvinte]:
Oi, primeiro parabéns para o evento. Um grande beijo para o Mutuá, uma pessoa especial. Eu queria dizer que estive há dez, quinze dias, lá na aldeia Kuikuro, com eles, participando de uma das festividades, o Kwarup. Ainda continuo pintada, continuo com as pernas pintadas, com os presentes que eu ganhei, o corte de cabelo. E dizer que é realmente muito importante valorizar essa cultura e trazer não somente para São Paulo, mas para todo o Brasil. Principalmente para a região Sul e Sudeste que não tem nem idéia do que é realmente a cultura indígena e da importância disso tudo para o País. Na véspera da minha viagem, eu tive uma decepção muito grande com um dos homens que cuidam, ou deveria atender aos índios, que disse que se seu precisasse de algum material, ou precisasse de alguma coisa, que eu teria que aprender o tupi. Mas eu disse, “eles não falam o tupi”. E ele: “O tupi é a língua dos índios, então assim é!” Foi uma decepção muito grande e já conversei isso com o Mutuá e com outras pessoas da aldeia. É muito importante que tenhamos cada vez mais esse tipo de evento, de oportunidade para compreendermos essa diferença cultural entre os índios. Não são todos iguais, muito pelo contrário. Cada um tem o seu tipo, sua forma, sua altura, sua realidade e cada uma com a sua importância. Então, parabéns pela iniciativa e obrigado por terem vindo a São Paulo. Venham cada vez mais.
Milton Guran:
Natália, obrigado Natália. Olha só que interessante. Eu não sei quantos de vocês já tinha ouvido falar nessa palavra Kuikuro. Nessa etnia Kuikuro. Tirando os especialistas, eu nunca encontrei ninguém que tivesse alguma idéia do que é Kuikuro. E agora agente tem uma exposição Kuikuro, um Kuikuro inteirinho aqui e alguém que chegou há quinze dias dos Kuikuros!!! Quer dizer, é fashion!!! É quase como Búzios, Paraty. Que coisa interessante. E pensar que esse grupo, que são os Karib, portanto, veio descendo, na medida que os espanhóis chegaram. Eram cem indivíduos quando essas fotos foram feitas, e hoje se afirma cinco ou seis vezes isso. Obrigado ao Museu da Casa Brasileira por colocar isso em evidência.
Noel Villas-Boas (filho do indigenista Orlando Villas-Boas) [ouvinte]:
Mutuá, quero dizer que estou muito satisfeito de ver você aqui. Agente se encontrou lá no Xingu há pouco tempo. Aliás, não tem nem quinze dias. E te dar os parabéns pelo trabalho que está fazendo agora de divulgar a cultura dos Kuikuro, e de certa forma, de divulgar a cultura dos índios do alto Xingu. Porque hoje, realmente se fala pouco a respeito da cultura dos índios xinguanos, aliás, dos índios de um modo geral. Mas nem sempre foi assim, Mutuá. Na década de 50, 60, 70 a cultura dos índios xinguanos foi muito divulgada. Eu acho que você tem que continuar esse trabalho agora, porque aqueles homens que fizeram aquele trabalho em 50, 60, 70 não estão mais aqui. Não foram os primeiros a chegar nos Kuikuro, mas foram aqueles que fizeram com que vocês estivessem aqui hoje. Que são os Villas-Boas. Vocês sabem disso. O Narro seu avô, foi muito amigo do meu pai. E ele te ajudou a fazer contato com muitas das tribos do alto Xingu. É esse trabalho você tem que fazer agora, você e os outros da sua idade. Os mais velhos, os mais novos também, para a cultura dos índios xinguanos continuar viva. E lembrar sempre de como nasceu o Parque Indígena do Xingu, do esforço que foi preciso para mantê-lo durante todos esses anos. Vocês, hoje, estão com sessenta anos de contato. Eu andei na sua aldeia antes de você nascer, eu engatinhei na sua aldeia em 1975. A minha mãe esteve lá em 1963 e o meu pai chegou lá em 1946. Então é esse o esforço, mantenha isso! Porque o Xingu é a vitrine da política indianista no Brasil. Tudo o que acontece em relação à mídia no Brasil, se espelha em vocês. E vocês mantendo a cultura de vocês forte, vocês mantém a política indianista, a cultura do índio forte. Então eu quero parabenizar você e espero vê-lo muitas outras vezes fazendo palestras e divulgando a cultura de todos os índios xinguanos. Parabéns! [Palmas].
Carolina Macedo [ouvinte]:
Milton, eu queria fazer uma pergunta para você. Eu estive numa aldeia Waiwai há uns doze anos atrás, que é uma aldeia que fica na Amazônia, na fronteira com a Guiana Inglesa. E eu fui filmar, e enfim, tinha uma equipe pequena. A gente enfrentou muitas negociações para poder ligar a câmera e fazer aquilo que a gente havia proposto. Negociações com as lideranças, não digo com a FUNAI, mas local. Então eu queria saber como foi o seu pacto com o povo. Como foram esses meses fotografando lá. Não só para poder começar fotografar, mas também, como foi a sua relação. Se eles te avisavam que ia ter alguma coisa e você se preparava, ou se você tinha uma liberdade de ir fotografando o cotidiano?
Milton Guran:
Olha, cada caso é um caso na verdade, tomando como referência o que você está falando dos Waiwai. Eu fotografei mais de quarenta grupos indígenas, de 78, que foi o primeiro, até o último grupo que eu fotografei, em dois mil e qualquer coisa, 2002 ou 2003. Há uns três ou quatro anos que eu não faço nada em área indígena. Cada situação é uma situação. Eu percorri o território Yanomami em condições muito difíceis e às vezes passava quinze dias, três semanas, sem tirar a máquina da bolsa! Não é sem fotografar ou fotografando pouco. Então você se mete no mato, de canoa, de helicóptero, a pé e chega num lugar e precisa fotografar. Precisa! Você sabe que aqueles índios precisam da sua foto. Porque a sua foto talvez dê condição de alimentar um movimento que pode salvar eles. E você não consegue fotografar. Então eu vivi isso, que é o oposto do que eu vivi em 78 nessas duas documentações. O Noel [Villas-Boas] acabou de dizer da visibilidade que o Xingu teve na década de 50, 60 e 70. Graças à tenacidade, ao esforço e à loucura saudável dos Villas-Boas, o Xingu entrou no imaginário brasileiro. Teve índia que se casou na Candelária com o Presidente da República de padrinho ou apadrinhando. Teve as coisas mais incríveis acontecendo. Se você pegar as coleções da revista O Cruzeiro ou a Revista Manchete, você vai ver o enorme esforço de mídia que foi feito para que o imaginário brasileiro se tocasse de que tinha que garantir aquele espaço e que tinha que preservar aquelas culturas. E a contrapartida desse esforço, foi enfiar no Xingu, toda sorte de cinegrafista, fotógrafo, jornalista e corpo diplomático. A diplomacia dos irmãos Villas-Boas foi poderosíssima. Porque aí a rainha da Suécia falava com o presidente Jânio Quadros. É tão bonito o Xingu, vai ser tão bom aquele parque. E assim a coisa foi pegando. Então essa presença de mídia, de fotografia, mais do que de cinema, no Xingu, foi aos poucos sinalizando para esses grupos que a fotografia não era ruim, era boa. Essa divulgação foi um instrumento, um aliado na construção do caminho para se legalizar o parque. Então, especificamente, esses dois grupos que estão aí, que produzem essa festa maravilhosa que é um ícone na cultura indígena brasileira, o Kwarup. Eles consideram, ou consideravam, pelo menos naquela época, a fotografia com uma coisa normal e a favor. Então é o seguinte: eu fotografei como se estivesse fotografando no meio do Rio de Janeiro ou em qualquer lugar favorável, entendeu? No Champs Élisées, onde todo mundo fotografa, ou na praia de Copacabana. Eu não tive nenhum problema. Agora, problemas há. Muitos colegas meus que foram, eu não fui sozinho lá, tiveram problema, porque existe sempre a esfera pública e a esfera privada. Para nós isso é muito simples. O que acontece na rua é público, o que acontece da porta de casa para dentro é privado. Só que nem todas as casas são iguais. Nem todos os espaços são trabalhados da mesma maneira. Tem coisas privadas que acontecem em espaços supostamente públicos e tem coisas que são públicas que acontecem em espaços supostamente privados. Quer dizer, a qualquer um de nós é dado o direito de entrar na sala. O sujeito diz assim: “Bem vindo! Entre”. Você entra na sala! Quando ele diz “entra”, ele não diz para você entrar no quarto. Porque há vários níveis do que é privado e do que é público. E esses códigos variam de sociedade para sociedade. Então nós não conhecemos esses outros códigos e aí tumultuamos a questão e ofendemos as pessoas. Ofendemos porque invadimos os espaços privados sem saber que estamos invadindo. Eu mesmo. Essa foi a primeira vez que fui numa área indígena. Aqui não tem meses de trabalho, aqui tem dias de trabalho. Aliás, a rigor, tem dois dias de trabalho. Porque eu cheguei de um dia para o outro, eu fui fazer o jogo do Jawari, que é a foto que abre essa exposição. Na verdade, a título quase de anedota, no sentido vernacular da língua. Eu estava numa reunião do comitê pela anistia em Brasília e fui apresentado ao cineasta e documentarista Vladimir Carvalho que tinha visto uma matéria minha no jornal e disse: “Vi tuas fotos naquela matéria, que coisa incrível, você não quer ir ao Xingu comigo amanhã? Eu fui convidado a fazer um documentário lá, de uma festa que não acontece há quatro gerações!” – Porque os Kamaiurás estavam recebendo os Suyás que há quatro gerações não se encontravam para jogar o Jawari, que é uma metáfora da guerra. Eles se encontravam pra brigar, não é? – “Então eles vão fazer isso depois de quatro gerações e não consegui equipamento, filme, nem fotógrafo para ir comigo. Eu não posso filmar, não posso fazer nada, você não quer ir fazer um trabalho de foto?” Isso aí, era onze e meia da noite, estava terminando a reunião do comitê da anistia e o avião saia às cinco horas da manhã.
Então a rapaziada que estava ali, os fotógrafos, me emprestaram os filmes. Eu fui, e desembarquei lá. E fui bem recebido dessa maneira e pude trabalhar. Cheguei num dia, fiz a festa no outro dia e fui embora no outro dia. Aí soube que haveria o Kwarup um mês depois nos Kuikuro e fui. Cheguei num dia, fiz o Kwarup no dia, teve casamento e sai no outro dia. Então, a rigor, nós estamos com dois dias de trabalho. Dois dias de trabalho, não do antropólogo, que mais tarde eu me tornei, pela minha formação, mas dois dias de trabalho de repórter. Um repórter que vai a campo e, sobretudo, não foi seduzido pelo exótico, foi seduzido pelo humano. Esse trabalho pode ser aproveitado trinta anos depois porque ele não se construiu em cima do exótico, do diferente, ele se construiu em cima do igual. Então você vê uma foto do centro da aldeia. Ela não é uma foto que valoriza o diferente. Ela mostra como naquele centro da aldeia, as pessoas caminham como se estivessem caminhando no Ibirapuera, como no centro da cidade. A cidade que é diferente.
Eu acho que eu peguei uma realidade de festa, de dois dias e que foi uma realidade de trinta anos atrás, que é completamente diferente dessa que você pegou nos Waiwai, e que eu presenciei em outras situações. A mais extrema foi essa dos Yanomami, que eu te contei, que eu nem abri a bolsa. Um negócio importante: nesses últimos trinta anos, a nossa mídia se tornou predatória, coisa que ela não era. Mesmo quando valorizava o exótico. Nos últimos trinta anos nós tivemos uma sociedade de comunicação extremamente autoritária, perversa e dominante, e a relação com a diferença e com o outro, sobretudo com o mais fraco, se tornou mais perversa, predatória e quantificada. Isso mudou tudo. Também tem esse fator, eu acho.
Mutuá Mehinako Kuikuro:
Oi, muito obrigado Noel por ter lembrado, às vezes a gente esquece das coisas. Realmente, seu pai foi um herói, que conseguiu criar o Parque Nacional do Xingu, que hoje em dia está na nossa mão, na minha mão, porque meu avô foi grande, foi uma pessoa que participou dessa negociação e discussão da demarcação do Xingu. Os mais velhos, o meu avô falava que Orlando Villas-Boas que preservou a cultura Xinguana como um todo. E ele não deixava os padres Salesianos, missionários, entrarem no Xingu. Tinham muitos missionários que queriam entrar e eles não deixavam. Meu avô viveu na aldeia dos Bakairi quando chegou a igreja, acabando com a cultura de tudo, toda a cultura do local. Meu avô voltou para a aldeia e falou: “Se falar da igreja, missionários, padres, a gente não deixa entrar aqui. Senão acaba com nossa cultura”. Por isso que, poucos anos atrás, o Xingu não deixava a escola entrar dentro da comunidade. Depois agente lutou e explicou que não era a igreja que estava levando, mas foi assim. Realmente, a nossa cultura foi preservada pelo sertanista, grande Orlando Villas-Boas, que deu um resultado grande hoje em dia. E nessa época a nossa população tinha diminuído por causa das doenças contagiosas, do sarampo, morreu muita gente. Depois que a terra foi demarcada, a população cresceu. Agora temos quase sete mil índios no Xingu todo e a cultura está preservada. E o Xingu também foi divulgado, e agora a gente continua trabalhando, ganhando essas coisas, fazendo projeto, fazendo documentação da cultura dentro da comunidade. Já temos uma casa construída na comunidade para fazer documentação da nossa cultura, cultura dos Kuikuro. Histórias, crenças e tudo. Temos projeto também, temos grupo dos cineastas Kuikuros, que está se capacitando, inclusive já fizemos o primeiro DVD que apresentei agora, e estamos continuando nesse trabalho, fazendo documentação. Já assinamos acordo junto com o museu do índio, pra que o museu guardasse todos esses materiais coletados dentro da comunidade e estamos seguindo esse trabalho. O que meu avô e as pessoas mais velhas deixaram para nós, estamos continuando, estudando e levando para frente. Obrigado. [Palmas].
Edson [ouvinte]:
Boa noite, meu nome é Edson, eu gostaria de parabenizar essa exposição. Estar aqui em São Paulo é uma maravilha. Achei muito lindas as fotos Milton. Eu gostaria de fazer duas perguntas: uma para o Milton e outra para o Mutuá. Milton, a gente está vivendo, como todos estamos sabendo, um momento de crise ambiental e aquecimento global. Conseguimos ver que não tomamos ações. A coisa parece que vai crescendo, crescendo. Não está se diminuindo o número de carros, nem poluição. Pelo menos eu não consigo ver grandes mudanças. E, é um momento em que eu vejo que o homem está em grande crise, e você colocou essa questão que talvez o nosso modelo [de sociedade] seja muito equivocado. Eu gostaria de saber como a gente poderia construir uma ponte entre essa sabedoria indígena. Eu acho que de uma certa forma a gente aproveitou muita coisa dessa colonização, muitos traços, como foi colocado pelo Lemos, da nossa cultura, mas tem muita sabedoria de como o índio vive com a natureza, de como o índio se relaciona e respeita o meio ambiente, o ser humano, e que eu acho que a gente precisa resgatar isso na nossa sociedade. A nossa sociedade precisa fazer um caminho ao contrário. Só essa colocação que eu teria pra você. Para o Mutuá, eu queria perguntar: como a gente sabe, no Xingu, em todas as nascentes, está ocorrendo um plantio muito grande de soja, tá acontecendo uma poluição pelos químicos que são utilizados nesse plantio de soja. Eu queria saber se ele sente, percebe, essa poluição dos rios, se tem percebido uma diminuição de peixes, ou coisas relacionadas à água? Obrigado.
Milton Guran:
Veja só, o professor Carlos Lemos, de certa maneira, respondeu à sua pergunta. Eu vou retomar alguns argumentos, algumas histórias dele, porque o professor nos mostrou como a habitação brasileira e a maneira de ocupar essa terra bebeu, se alimentou, da cultura indígena e do mameluco. O que é o mameluco? O mameluco é o filho do português com a índia. Então olha só o que acontece. Porque que o português conseguiu colonizar o Brasil e garantir essa terra aqui? Essa é uma pergunta que a gente devia fazer. Como é que Portugal desse tamanho, vinte e cinco portugueses aqui, como é que eles conseguiram? Eles conseguiram porque quando você faz um filho com alguém da terra, até os oito, dez anos de idade, essa criança está com a mãe e ao estar com a mãe, ela incorpora, ela aprende, ela apreende toda a cultura da mãe, que é a cultura da terra e a maneira de viver nessa terra. Essa criança, a partir dos dez anos de idade, os meninos, sobretudo, passam para o domínio do pai, então eles passam a dever lealdade ao pai e carregam a cultura da mãe. E eles têm as suas irmãs. As suas irmãs, que vão casar com outros brancos, ou que vão casar com outros índios. E tais índios serão cunhados. Para você ter uma idéia da força que tem o cunhadismo, como dizia o Darcy Ribeiro, os Yanomamis só têm uma palavra para dizer cunhado e amigo. A noção é a mesma, a unidade semântica é a mesma. Não existem duas unidades semânticas, uma amigo e a outra cunhado. Cunhado e amigo são a mesma coisa, para não ter briga. Então, o avô do teu filho é um inimigo, mas não pode ser inimigo, pois é o avô do teu filho. O português que casa com a índia é o genro do cara que potencialmente pode ser o inimigo dele, e vice-versa. É nessa transferência maciça de informação cultural que eles conseguiram construir o que está aqui. Claro, o tempo foi passando e nós fomos nos afastando dessa matriz que o professor recuperou. E em termos globais também. Vocês lembram que os Beatles foram para a Índia, atrás de espiritualidade? Você sabe, há vinte, trinta anos atrás, a ecologia era uma bobagem. Eu fui criado, na primeira infância, em Jacarepaguá, e tinha vergonha por ser zona rural e ter cavalo e boi na rua.
Hoje em dia eu estou dando uns dez anos para ter uns cavalos e bois andando na frente da minha casa. Pois então, houve uma mudança completa e nós estamos mudando, nós estamos buscando nas sociedades tradicionais, seja nas sociedades na Índia ou nas sociedades tradicionais africanas e asiáticas ou indígenas. Nós estamos buscando elementos que vão reposicionar a nossa leitura do mundo, nós, a sociedade cristã ocidental. E esses elementos não estão perdidos por aí, mas estão dentro da nossa sociedade. Ao fazer essa exposição, nós estamos recuperando o tipiti, o famoso puxadinho e o jirau, quer dizer, nós estamos buscando dentro da nossa própria cultura as origens e as raízes alternativas que nos permitem rebalancear o que a gente tem. Não é acabar com a sociedade cristã judaica ocidental, mas com o primado do homem acima de todas as coisas. O homem tem que ser visto como mais um elemento no rol de outros, como em todas as sociedades tradicionais. Por um lado, eu vejo que a coisa está muito difícil mas, por outro, vejo que existe esperança porque, de fato, existe um movimento forte na sociedade cristã ocidental no sentido de repensar os seus valores e de beber nessas fontes que não são exóticas. Elas estão dentro da nossa cultura, sobretudo para nós aqui no Brasil. A gente é muito desse resultado que está aí. Pois eu não sei se respondi à sua pergunta, mas de uma maneira geral eu vejo dessa forma. Meu amigo! Tem um Kuikuro sentado aqui falando com a gente. Pensa bem. É alguém que está me dizendo que há trinta anos atrás não queria escola na aldeia. Então, não só tem escola, como tem o curso superior indígena que formou a primeira turma. O cara está sentado aqui e que foi formado por essa turma. A fila anda, quer dizer, ela não anda na velocidade que devia andar, ela não anda na dimensão, na escala, que deveria andar. Precisa andar mais rápido, em uma escala maior, mas tem fila andando. Eu acho que isso é muito positivo. Bom, eu sou muito falador e eu vou passar a palavra aqui para o meu amigo Kuikuro.
Mutuá Mehinako Kuikuro:
O Mato Grosso na última notícia que [saiu] no jornal, na pesquisa que disse que o Mato Grosso foi campeão de desmatamento. Isso faz nos preocupar muito, porque só tendo o Xingu, as matas, e você saindo nem um minuto, você já vê desmatamento avançando pelo Xingu. Isso preocupa muito nossas lideranças. E estamos lutando e estamos batalhando para que isso não avance mais, mas isso já está encostado no Xingu. Esses desmatamentos, essa plantação de soja. E os fazendeiros utilizam esses venenos tóxicos, algumas coisas químicas para os insetos não atacarem as plantas. Isso preocupa muito a gente. As lideranças estão lutando, estão preocupados e nós também da geração nova, também está se preocupando muito com essas coisas. A gente percebe que no rio Xingu, nos rios formadores do rio Xingu, os peixes estão diminuindo, a quantidade do peixe está sendo cada vez menor. Na época do Piracema, os peixes sobem até a cabeceira do rio Xingu. Só que aqui na cabeceira tem várias pousadas, onde vem muitos pescadores, pescando, matando os peixes. Isso diminui muito a quantidade de peixe dentro do parque. A gente percebe muito isso porque os peixes são nossa fonte de alimentação. Tem certos tipos de peixes que agente come, não são todos os peixes que a gente come. Tem vários tipos no mar, no rio, no córrego, tem certas espécies que a gente come. A gente só se alimenta com os peixes, por isso a gente fica lutando, para que as pessoas que destroem a natureza, o meio ambiente, tenham consciência do que estão fazendo. E para não poluir os rios do Xingu, porque na beira do rio tem várias aldeias indígenas que estão bebendo a água, se alimentando dos peixes daquele rio. Por isso a gente luta muito, se preocupa e vai lutar até o fim. Também a gente percebe que a época da chuva está atrasada. Está chovendo fora da época. A gente percebe que é esse aquecimento global que está fazendo isso. Não chove mais na época certa, porque a gente sabe que quando aparece uma estrela no céu, é a época da chuva e quando aparece outra estrela, a gente sabe que está na época na reprodução de Tracajá, na época de outras coisas. Quando a gente vê aquela estrela, a gente fala: “A chuva está atrasada”. Está tendo alguma coisa no mundo que a gente acredita por causa desse desmatamento grande no Mato Grosso.
Milton Guran:
Eu queria dizer mais duas coisas a respeito de desmatar, desmatar cabeceira de rio, etc. Uma coisa interessante: nós temos no Brasil um regime jurídico que garante aos povos indígenas o usufruto permanente da sua terra, o usufruto, o que não é a propriedade. A propriedade é de todos nós, é da União. E o que se mais discute é o seguinte: tem muita terra pra índio. Esse é o grande argumento de sempre. Eu tive a oportunidade de andar pela terra Yanomami, e fiquei sabendo de uma coisa que eu não sabia. Isso há dezoito anos atrás, fiquei sabendo nessa época. Os Yanomami fazem a aldeia de 100, 120 pessoas, 150 no máximo. Só para generalizar um pouco, e sair do Xingu. A aldeia inteira de madeira, de cipó e de palha. Não tem ferro, não tem plástico, não tem alumínio, só com isso que está aí. E ali, aquele pessoal caça em volta, quer dizer, o homem adulto anda quinze quilômetros dentro da mata só. Não dá para andar mais de quinze quilômetros. Ele anda esses quinze quilômetros e tem que voltar. Então ele caça num raio de quinze quilômetros, ou seja, num círculo de trinta quilômetros de raio, e tem a roça em volta da maloca, da casa. E o terreno é ruim, porque aquilo é areia com folha em cima. Se você tirar a folha, a Amazônia vira um deserto. Então a mandioca dá durante 2, 3, 4, 5, 6 anos e depois pára de dar. E a anta vai embora também, pois ela é anta, mas nem tanto. Depois de matarem a família inteira ela desaparece. Então eles vão para outro lugar. Assim, no final de 6, 8, 10 anos no máximo, não dá mais mandioca e não tem mais caça ali. Então eles são obrigados a se mudar para pelo menos sessenta quilômetros daquele local. Vocês sabem quanto tempo a floresta leva para recuperar aquele lugar, aquela clareira em que aquelas 120 ou 150 pessoas viveram dez anos? A floresta demora cem anos. Isso quer dizer que na Amazônia tem que ter pouca gente, e se tiver mais a floresta acaba. Então o que a gente tem que resolver é o seguinte: vai ter muita terra para pouco índio ou vai ter deserto para ninguém? Eis a grande questão. Então agora que a gente está falando de Mato Grosso, nós vamos ter uma potência econômica que será um Sahara ou nós vamos ter uma terra que, bem dividida, pode dar para gerações futuras? Porque quando o Faraó Ramsés III reinou, não foi no deserto, o deserto esta hoje. Só que do Ramsés III para hoje tem três, quatro mil anos. Nós devemos ter aprendido alguma coisa. Se a gente continuar a plantar soja com agrotóxicos na cabeceira do Xingu a Piracema vai para a “cucuia”. E um dia só vai ter soja. Então vão ser as escolhas que a gente vai ter que fazer. Tem que acabar com a soja? Não, não tem que acabar com a soja. Mas o preço de se ter soja, não pode acabar com a floresta. Então vamos sentar e vamos conversar, e vamos buscar caminhos.
Bom, eu queria agradecer a presença de todos. Muito obrigado.
Fim.
Texto inserido com o apoio da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo - Programa de Ação Cultural - 2008.