“A cerâmica é uma arte ciumenta”, diz o antropólogo Claude Lévi Strauss[1]. Ciumenta porque restringe a plasticidade do barro amorfo ao impor-lhe a forma criada pela mão humana, marca da cultura sobre a natureza. Por isso mesmo, a arte da criação cerâmica se associa à evolução do homo sapiens sapiens como prima-irmã do domínio do fogo, da agricultura e da domesticação dos animais. Foi com o barro que o homem moldou utensílios imemoriais para as humildes fainas da sobrevivência, para guardar a água e o alimento, para o cozer, o comer e o beber – potes, botijas, panelas, jarros – mas também o cântaro, o vaso e o recipiente cerimonial para levar às divindades suas oferendas, ou as urnas para abrigar seus mortos para a vida eterna. Tal como o ferreiro transforma o metal enterrado no fundo da terra em arado e espada, nesta arte da civilização que garante o plantio e a defesa da colheita contra o inimigo; também o oleiro – ou antes, a oleira, já que em quase toda parte esta é uma arte feminina – participa desse ambíguo e perigoso poder de transmutação da natureza colocada a serviço do homem. É por isso que um e outra precisam da bênção dos deuses para legitimar – ou talvez perdoar – sua transgressão dos limites no domínio da criação, a eles reservado. Pois “impor uma forma a uma matéria não consiste simplesmente em discipliná-la. Ao arrancá-la do campo ilimitado dos possíveis, ela é diminuída na medida em que apenas alguns possíveis entre outros serão realizados: de Prometeu a Mukat, todo demiurgo revela um temperamento ciumento”, nos ensina ainda Lévi-Strauss[2]. Também ciumentos, mas mais generosos, são os deuses que sob certas condições ensinam aos homens essas artes.
Entre o céu e o mundo subterrâneo, filha da terra, da água e do fogo, a cerâmica é uma arte que percorre o ciclo da natureza e de toda a existência humana, entre a vida e a morte. Assim, desde tempos imemoriais, em praticamente todas as civilizações, os mitos a associaram a seres de bom ou mau presságio – dependendo do modo de encará-los – como o pássaro curiango que, entre os povos indígenas da América, anuncia a morte, mas está na origem da argila para moldar as peças que acompanham a cada passo a manutenção cotidiana da vida. Na África – e, portanto, no Brasil, graças ao milagre da persistência da memória, sob a barbárie da escravidão – a cerâmica pertence aos domínios dos deuses da terra, do lodo e do fogo celeste, Obaluaê, Nanã e Oiá. Pois são eles que presidem à alquimia que converte terra e água em argila e pelo poder das chamas a transforma em pote, alguidar e quartinha para as oferendas dos orixás, mas também na telha que, como o esteio da casa, guarda a família do homem, sob a proteção da Senhora dos ventos e dos raios, no entanto, também Senhora dos Egumgum, os espíritos dos mortos – Iansã Igbalé, Oiá Egum-nitá. Oxossi não participa de um axexê, mas foi Odé quem ensinou ao homem os preceitos da cerimônia fúnebre, e ao final dela é o deus da caça e da mata, o provedor da vida, que é invocado para reabrir o ciclo, tal como a terra fértil se renova com a chuva após a seca ou a primavera traz a ressurreição da natureza após a longa noite do inverno.
Há uma sabedoria profunda que acompanha a arte da produção cerâmica ao longo da história da humanidade. Por isso, nenhum verdadeiro artista que molda a argila cria suas peças sem a consciência de que, em alguma medida, elas são também uma oferenda. No caso desta exposição de Caroline Harari, uma Oferenda à Bahia, aos seus orixás, deuses ancestrais da África que esta terra abençoada soube preservar, e a aqueles que a duras penas conservaram a tradição da criação no barro, como os artesãos que fazem de Maragogipinho um dos maiores pólos de produção cerâmica do Brasil e da América Latina. Com humildade e reverência, mas também com profunda alegria, a ceramista oferece sua arte à Bahia, na esperança de um encontro, diálogos e trocas recíprocas.
Pois de nenhum modo é ingênuo o olhar desta grande ceramista que é Caroline Harari. A simplicidade de suas peças, de extrema sofisticação, resulta de uma aguda consciência do que é essencial e de um longo processo de depuração, sustentado pelo trabalho obsessivo de pesquisa da historiadora que esta no início da carreira da ceramista. Ciosa de sua arte e de seu ofício, desde o princípio ela procurou inventariar e compreender os materiais, as técnicas e as formas que neles se acham envolvidos, apenas para descobrir, no Brasil, tradições que se repetem, das civilizações pré-colombianas da América aos diferentes povos africanos que estão na raiz da formação de nossa história e nossa cultura.
O mesmo barro, os mesmos tons castanhos e avermelhados, a tabatinga, a argila preta, o uso do engobe, os incisos bem definidos estão em toda parte. As mesmas técnicas de produção, o torno, o rolinho, a pressão manual. Os mesmos procedimentos de queima, nos fornos rudimentares de lenha. As mesmas formas essenciais – tão poucas! – apenas apresentando variações ligadas ao modo de vida dessas diferentes civilizações. Este foi o começo de seu inventário. E logo a ceramista descobriria também que, entre aqueles povos de Áfricas e Américas, tal como entre os artesãos populares que no Brasil herdaram suas tradições, na esteira das misturas étnicas e culturais de que é feito nosso povo, a progressiva precarização de suas condições de vida aos poucos faria minguar seu conhecimento dos materiais e das técnicas. Este foi um processo histórico de usurpação de um patrimônio imaterial de saberes e fazeres que literalmente foi lhes sendo roubado.
Desde os tempos coloniais, a catequese produzira os “descimentos” forçados dos povos indígenas de seus locais de origem para “aldeias de repartição”, onde escapavam à escravidão desde que abandonassem sem resistência seu modo de vida tradicional. Catequizados, batizados e aldeados em outras áreas, constituíam verdadeiros “celeiros de mão de obra”, de onde eram retirados periodicamente para a execução de serviços para os colonizadores, nas lidas do trabalho e da guerra. Ali, “a ciência, os saberes e os conhecimentos acumulados coletivamente pelos índios durante séculos foram discriminados, desprezados e inferiorizados, perdendo-se parte expressiva deles, da mesma forma que a literatura oral, a língua, a música e a cerâmica”, dizem historiadores do período[3]. Quanto às tradições de civilização e cultura dos diferentes povos da África, elas foram ceifadas em sua base pelo processo brutal de desenraizamento a que foram submetidos ao serem transferidos como escravos para o Brasil, delas restando apenas fragmentos, dolorosa e pacientemente preservados e ressignificados como uma memória comum, já “africana”, e não mais Ioruba, Gege, Nagô, Fon, Ijexá, em terras da América.
Este não foi, porém, um processo peculiar ao Brasil. A própria transformação das sociedades ocidentais, sob o influxo da modernidade capitalista e urbano-industrial, se encarregaria de desqualificar como práticas “obsoletas” antigas tradições de produção cerâmica, que em outras eras haviam sido verdadeiras jóias de cultura em muitos pontos do mundo, nos primórdios da civilização. Utilizada para a produção de dutos em obras de irrigação, drenagem, transporte de água e coleta de esgoto no ano 4000 AC, no antigo Egito e na ilha de Creta, na construção de casas, de utensílios de uso doméstico e cerimonial ou como tábuas onde se inscreviam leis ou textos sagrados, a cerâmica seria lentamente desqualificada pelo próprio avanço da civilização moderna. Nas primeiras décadas do século XX, o arquiteto Le Corbusier constataria, consternado, esse processo, ao observar, em uma célebre viagem ao Oriente, um vaso executado por um ceramista sérvio por volta de 1900 e deixado de lado com muitos outros em seu sótão:
"Era o último a fazer um assim; já não acreditava nele. Em sua casa, louças comerciais vulgarmente ornadas à máquina ocupavam as prateleiras. Com um golpe brutal, o "o progresso" derrubara tradições milenares. Ele continuava, todavia, a modelar cântaros usuais iguais a este cântaro espanhol e iguais também aos de Andrinopla que, por sua vez, se aproximavam da ânfora grega. Porém, algumas semanas mais tarde, em todo o litoral egeu, vi que os cântaros, as ânforas, com os quais vão ao poço (com os quais iam desde séculos,) eram substituídos e que o ceramista não trabalhava mais: as latas dos petróleos de Batum davam recipientes muito mais cômodos, de mais a mais inquebráveis; em vez de carregar o cântaro no ombro (um único cântaro), uma barra de madeira, passada através da lata, permitia carregar facilmente os cinco litros como se carrega uma mala; uma lata em cada mão e ficava-se equilibrado e fazia-se o dobro do trabalho. E as poses imortais à Rute no poço de Jacó? E a Indústria realmente bela do ceramista, que parece ter acompanhado a civilização desde sempre? Acabou-se. Substituída por uma lata..."[4].
Certamente, havia ali mais do que nostalgia de um passado belo e distante. Antes, a intuição do arquiteto genial – que, no entanto, se colocava na vanguarda de seu ofício – de algum modo talvez pressentisse a extensão do desastre a que esse processo iria levar. Hoje sabemos que a realidade contemporânea – com o grau de risco que a degradação do meio ambiente traz à própria sobrevivência da humanidade e as desigualdades sociais que se aprofundam em escala planetária – exige uma profunda reflexão e formas inovadoras de ação com relação ao modelo de nossa civilização moderna, que atualmente se expande em toda parte do mundo graças ao fenômeno da globalização. Uma verdadeira mudança de mentalidade está hoje na ordem do dia.
A questão ambiental se tornou o problema central com que se confronta o século XXI. Com base em estudos de cientistas das mais diferentes áreas, a cada dia os jornais anunciam o fim do mundo que se aproxima: o esgarçamento da camada de ozônio, o aquecimento global, mudanças insuspeitadas causadas pela elevação da temperatura da Terra, que vão do derretimento das geleiras polares a tsunamis, cheias que se tornam calamidades e secas desastrosas em diversas partes do planeta, levando miséria e enfermidades aos mais diferentes povos da Terra...
Mais do que o fim do mundo, no entanto, esses relatos anunciam o fim de um mundo, ou seja, de um modelo de civilização: o modelo urbano-industrial da nossa civilização ocidental, hoje disseminado por toda a aldeia global. Um modelo que, permitindo progressos inimagináveis que aumentaram a expectativa de vida da população mundial, ao mesmo tempo se apropria de forma predatória dos recursos naturais, da terra, das florestas, dos rios e dos mares, que hoje mostram sinais inequívocos de esgotamento, agravando ainda mais os problemas sociais endêmicos em quase toda parte. A crise contemporânea põe em cheque os valores de nossas sociedades, obrigando-nos a refletir sobre o fato de que, em outro tempo e outras civilizações, existiram outros modos de vida, em que o homem ganhava seu sustento e construía os artefatos essenciais para a sua sobrevivência com o trabalho de suas mãos.
A cerâmica desde sempre fez parte desse mundo. Apenas o barro e o trabalho da mão humana foram suficientes para criá-la. Por milênios, civilizações inteiras das mais diversas partes do mundo produziram com ela seus artefatos essenciais, da casa onde o homem encontrou abrigo aos utensílios com que guardar a água, cozer o alimento, fazer oferendas a seus deuses e enterrar seus mortos. Objetos simples, de formas despojadas, que estranhamente conheceram apenas pequenas variações, entre culturas e povos distintos. Não por acaso foi assim. A característica “conservadora” do ceramista, que reluta em abandonar materiais ou modos de fabricação conhecidos, apegando-se estritamente à tradição, vem da consciência de que, tendo passado pela prova do tempo e da experiência, eles são o que de melhor conhece para garantir a qualidade de sua produção. Sabe que uma diferença aparentemente insignificante na escolha das argilas, das coberturas, dos pigmentos ou das temperaturas de queima podem por a perder semanas e até meses de trabalho por quebras e perda de qualidade do acabamento das peças. Na relutância frente à inovação parece estar guardado o segredo da simplicidade de outros modos de vida, que a crise contemporânea hoje nos convida a reencontrar.
Então as técnicas eram transmitidas de pai para filho e, sem a voragem do apelo à mudança como prova de “criatividade”, nada era produzido como objeto descartável, conservando-se as matérias-primas naturais também para o uso de futuras gerações. Os mitos e as lendas associados à produção cerâmica ajudavam a transmitir conhecimentos ancestrais, fazendo com que, entre os povos indígenas como os Kaxinawá, por exemplo, a argila fosse retirada das margens dos riachos próximos à aldeia, mas não qualquer argila, e sim aquela de uns poucos locais, já que se sabia que só eles forneciam o material adequado a uma boa produção cerâmica. Até mesmo o lugar das aldeias era escolhido em função da qualidade e da quantidade de argila que se encontrasse nos arredores. Da mesma forma, um mito Waurá, povo indígena da região do Alto Xingu, associa a origem do trabalho da oleira às peregrinações de uma serpente sobrenatural, portadora de diferentes tipos de recipientes, que os foi depositando em diferentes lugares, de onde nasceram os diversos povos da região. Por isso mesmo, entre os Waurá, quando se quer retirar o barro de um veio, é preciso tomar cuidado: ele deve ser extraído muito lentamente, pois, caso contrário, se alguém fizer barulho, a serpente, dona do barro, despertará e devorará as pessoas, como nos informa ainda Lévi-Strauss[5]. Eis o que antes ensinava – e ainda ensina aos artesãos tradicionais da cerâmica – o respeito aos espaços e aos tempos da natureza, ensinando-lhes a paciência para adequar-se a um ritmo de trabalho que permitirá às peças se estabilizarem no tempo próprio de sua matéria, “descansando” até mesmo daquele que as modelou, como certa vez foi informado à ceramista Caroline Harari, por um formeiro a quem reclamava de perdas por quebra de queima...
É desses conhecimentos de técnicas ancestrais que os produtores tradicionais de cerâmica foram aos poucos sendo despojados. Ficando à margem da vida social, mas atraídos pela miragem do “progresso”, seus conhecimentos, desprezados diante das conquistas modernas, foram se perdendo paulatinamente. Hoje, frente à crise do mundo do trabalho, há uma preocupação crescente em inserir o artesão “no mercado”. Como fazê-lo, porém, quando seu conhecimento técnico tradicional foi desqualificado, quando seus veios de barro são cercados com arame farpado, tornando-os propriedade privada, ou quando se exige dele um índice recorde de produção, segundo o ritmo da demanda do mercado, enquanto todo o conhecimento acerca do que faz uma boa cerâmica recomenda lentidão e paciência como elementos essenciais do trabalho do oleiro?
Eis porque Caroline Harari se dedicou a pesquisar exaustivamente a produção cerâmica, da qualidade do barro aos processos de queima, para reconfigurar o saber tradicional e alcançar enfim a inacreditável leveza de suas peças, feitas em fornos de alta temperatura, da mais moderna e sofisticada tecnologia, mas sem perder contato com as raízes profundas de sua criação no Brasil. Por isso mesmo, foi nessas peças que, aos poucos, ela passou a introduzir também outro elemento de raiz em nossa cultura, as rendas e os bordados de origem européia, imprimindo diretamente na forma moldada seus elaborados desenhos. Daí resultaram essas criações originalíssimas, onde às vezes o próprio barro se converte em renda ou o bordado nele recria delicadas incisões e relevos de um barrado que ali fosse gravado de modo aleatório. Moldadas na forma do barro, ali estão as mais finas rendas de bilro de Saubara ou, inscrito no alguidar, no pote, no jarro, o mesmo richelieu que orna saias, camisus e ojás em dia de festa de orixá nos terreiros da Bahia... Eis porque essas peças são também oferendas. O que em todas elas se preserva são as mesmas formas primordiais e o gesto primitivo da mão que modela o barro, como desde sempre fez o homem para criar objetos cerâmicos, de uso seu e de seus deuses.
São peças caracteristicamente brasileiras, em seus traços luso-afro-ameríndios, mas também, por isso mesmo, peças que retomam uma arte universal. Eis o segredo da contemporaneidade dessa criação que, em suas formas de expressão arcaicas, fala por todas as Áfricas e todas as Américas, na esperança de evocar em nós o essencial, o que nos é comum e nos torna parte de uma mesma humanidade. Esta é a lição da arte de Caroline Harari. A Bahia resume o Brasil, e o Brasil é um mundo dentro do mundo.
Por isso sua oferenda à Bahia, e em particular aos seus artesãos, é também mais ambiciosa. O que ela nos propõe é a possibilidade da recuperação da tradição de um saber milenar de homens e mulheres que, em todos os tempos e lugares, sempre dependeram do trabalho de suas mãos para construir seu abrigo, conseguir seu sustento e criar os artefatos e utensílios mais simples e, no entanto, essenciais à vida humana. Em todas as civilizações de um passado imemorial, potes, moringas, cântaros, cumbucas, alguidares, pratos ou urnas de cerâmica, feitos com o barro do rio e o fogo da lenha que a própria natureza oferecia, foram usados pelo homem para guardar, cozer e consumir os alimentos em sua casa, fazer oferendas aos seus deuses nos templos e abrigar seus mortos... Não se trata, porém, de uma proposta que vire as costas ao progresso que a civilização urbano-industrial moderna foi capaz de gerar, em benefício da vida humana. Trata-se, no entanto, de procurar corrigir os danos por ela provocados ao homem e à natureza, redirecionando sua energia criadora para novas formas de produção sustentável, do ponto de vista social e ambiental.
Trata-se, portanto, de resgatar no presente a herança do passado, mas transfigurada pela modernidade, que permite o uso de material cerâmico na produção de tecnologia de ponta para condutores elétricos ou revestimento de peças sujeitas a altos índices de atrito, como os foguetes espaciais. Mas, sobretudo, trata-se de ver na cerâmica um material contemporâneo porque nos permite reencontrar formas de produção em que se refletem modos de vida que o mundo atual parece ter perdido de vista e que hoje nos fazem falta, levando-nos a buscar resgatar a singela humildade do barro, sua matéria e seus usos, e a perfeita simplicidade de suas formas tradicionais. É assim que se pode começar a vislumbrar os contornos de uma nova mentalidade a ser construída, compatível com a sobriedade que o risco ambiental e a injustiça social nos impõem hoje como obrigação irrecusável, frente aos excessos e descaminhos da sociedade de consumo da civilização urbano-industrial.
O século XXI nos lança este grande desafio de adequar o trabalho e a vida humana às condições de sustentabilidade que nos oferecem os recursos de um planeta explorado à exaustão. Todo o conhecimento técnico-científico é necessário a essa gigantesca empreitada. Mas é preciso considerá-lo com um olhar decididamente crítico. É por isso que Caroline Harari se pergunta, incessantemente: De que valeu tanta proficiência, de que o domínio técnico-científico da natureza prometeu nos dotar? Em que tipo de seres humanos nós nos transformamos? De que vale tanto design, tanta busca de novas formas e novos materiais, no esforço frenético da inovação e da originalidade, que tornaria a cerâmica uma arte up to date? É por esta razão que ela acredita que, sendo Deus brasileiro, Ele criou a Bahia, nação de tantas e tantas formas de resistência ancestral. E porque Deus é brasileiro, Ele criou também Maragogipinho, maior pólo de cerâmica da América Latina. É com este povo que temos de aprender. E os artesãos da Bahia podem ser a vanguarda desse processo, desde que lhes seja permitido resgatar a dignidade de seu saber e conquistar condições dignas de exercício do seu trabalho. Cerâmica deve ser escrita com “C” maiúsculo, acredita a ceramista, porque é um material contemporâneo, não poluente, plástico, leve, resistente, multiuso... E por isso ela conclui, como num grito de guerra, em uma luta “do bem”: “Abaixo o Pet!! Viva a moringa!”
Este é o recado maior, de um projeto de futuro, inscrito no presente que a exposição traz em seu nome e a artista nos quer oferecer. Benditos sejam os sonhos generosos que Caroline Harari pôs nesta sua Oferenda, em homenagem à magia e à sagrada força de luta e resistência da Bahia. Que os orixás e o povo dessa terra bendita possam recebê-la, com a mesma fé, dedicação ao trabalho, paixão e alegria que ela colocou na sua criação!
Maria Lucia Montes
São Paulo, novembro 2008
[1] Claude Lévi-Strauss. A oleira ciumenta. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1985.
[2] Idem, ibidem.
[3] José Ribamar Bessa Freire; Marcia Fernanda Malheiros. "Os índios catequizados e as aldeias de repartição". In: Os aldeamentos indígenas do Rio de Janeiro. CECIERJ, Educação Pública, site www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/historia/, acessado em 8/11/2008.
[4] Le Corbusier. A arte decorativa. São Paulo, Martins Fontes Livraria e Editora, 1996.
[5] Claude Lévi-Strauss, op. cit.
Texto inserido com o apoio da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo - Programa de Ação Cultural - 2008.