“Nossos ancestrais, os verdadeiros donos das terras amazônicas, sem agredir o meio ambiente, viviam em plena harmonia com a natureza, e da terra só retiravam o seu sustento e de sua família, pois a natureza dava a eles o alimento, o remédio, o abrigo e seus utensílios pessoais”.
(Marivaldo, mestre ceramista. Belém. Pará)
O saber tradicional é uma das grandes riquezas de todos os povos – transmitido de pai para filho ou de avô para neto, ainda é muito vivo nas comunidades brasileiras fora do âmbito urbano. Esse saber, rico e completo, possibilitou, de fato, a auto-sustentabilidade das nações indígenas durante milênios. Hoje, as comunidades tradicionais têm um grande desafio: viver com o resultado da comercialização de seus produtos dentro do mercado consumidor globalizado.
A participação nesse mercado gera novas possibilidades para as comunidades: desde vender os seus produtos tradicionais, voltados apenas para o mercado local, até desenvolver novos produtos, dirigidos, desta feita, para um público específico. A nova realidade, que determina a incorporação de conceitos e de estéticas externas, exige a realização de parcerias e de trocas de experiências não predatórias, sob pena do extermínio do saber.
Para que continuem a viver em um sistema sustentável, um dos elementos de importância extrema é o cuidado com o equilíbrio a ser mantido dentro das experiências de troca. Sem perder o foco sobre a viabilidade econômica, é preciso que os agentes externos entendam que o processo de comércio deve respeitar o ritmo interno das comunidades envolvidas. O principal objetivo é torná-las independentes dentro dos princípios da sustentabilidade socioambiental, resultando geração de renda ao mesmo tempo em que perpetuam seu saber tradicional, seu modo de vida, permanecendo em seus territórios, defendendo o seu ambiente e respeitando sua identidade e suas tradições.
A realidade socioambiental e as últimas transformações sociais e econômicas no Brasil constatam a falta de equilíbrio e a injustiça em que vive o povo de modo geral. Nesse contexto, o design apresenta-se como um fator estratégico de mercado e como um diferencial decisivo para artesãos e para comunidades com interesse no nicho do comércio ético e solidário, seja nacional, seja internacional. O design tem um importante papel no planejamento de um futuro responsável e comprometido com o meio ambiente e com a sociedade, caso suas ambições se alinhem com conceitos sustentáveis. O design surge, então, como uma ferramenta indispensável para melhorar o propósito do produto, a sua estratégia de venda e o sistema em que se insere. Assim, considerar não só aspectos econômicos e estéticos, mas também ambientais e sociais, de cada produto é o que podemos elencar como características diferenciais do design sustentável.
O design ganhou espaço no mundo através do marketing e de ferramentas de vendas. Mas já está mais do que na hora de analisar seu impacto sobre a natureza, bem como sua contribuição para a sociedade. Hoje, dentro do conceito de design ecológico, é prioritário refletir sobre a concepção do produto, sobre sua fabricação e sobre sua distribuição, desde o uso até o descarte final. O designer faz parte desse processo como um todo, e o projeto, o desenvolvimento, a fabricação e a reciclagem do produto devem contribuir para causar o impacto mínimo no meio ambiente, desenvolvendo alternativas racionais no uso de recursos naturais. A grande novidade do design sustentável é a incorporação dos aspectos sociais e a colaboração para a inclusão de mão-de-obra de comunidades locais, gerando novos empregos e outros benefícios econômicos duradouros e mais justos socialmente, sem destruir a cultura local.
O design industrial, como o conhecemos hoje, tem a inovação como um dos seus valores principais. Levar essa perspectiva para as comunidades interessadas no mercado ético e solidário exige do designer novas qualidades e maiores cuidados. Este é um novo campo e um grande desafio para os profissionais da área, o que gera muitos debates e a evolução constante. Seu aprendizado baseia-se no processo de tentativa e de erro e na adaptação de experiências bem sucedidas.
Os designers urbanos, que atuam dentro da lógica neoliberal do sistema globalizado, trazem uma bagagem carregada de informação e de poluição visual, o que é muito perigoso quando o projeto envolve comunidades mais afastadas. Nosso trabalho deve restringir-se a valorizar os aspectos sociais, culturais e ambientais da localidade e criar assim um pequeno espaço no mercado. Sem respeitar as características das comunidades, seu ritmo próprio, não será possível desenvolver produtos que a representem de fato, que sejam legítimos. Quanto menos intervir sobre a produção já existente, melhor o resultado – o produto terá maior qualidade estética e maior interesse cultural. Essa maneira de aproximação, sem dúvida, permitirá que a comunidade com a qual o designer está envolvido retome sua autonomia, condição básica para a auto-sustentabilidade.
Design comunitário: uma experiência a ser considerada
Experiências recentes apresentam propostas de produção comunitária sustentável marcadas por “buracos negros” e por grandes dificuldades no processo produtivo. Historicamente, a produção comunitária é sustentável, bem como sua comercialização. No entanto, o desenvolvimento de novos produtos e todos os itens envolvidos (pesquisas de campo, diagnósticos das comunidades, oficinas de criação, acompanhamento da produção, criação de embalagens e de identidade visual) acarretam custos altos. Essas etapas do processo criativo e produtivo não podem ser embutidas no preço final, sob pena de inviabilizar a comercialização. As comunidades não têm poder econômico necessário para contratar o serviço de designers consultores. Assim o desenvolvimento de novos produtos comunitários só é possível graças ao trabalho de consultoria voluntária ou subsidiada por governos, por ONGs e por empresas, nas mais variadas áreas de atuação. O desenvolvimento de produtos subsidiados é hoje a opção mais adequada, já que o trabalho voluntário pode ser inconstante, refletindo negativamente na produção e na comercialização, mas sobretudo na experiência da própria comunidade.
Os designers não estão acostumados ao trabalho com comunidades, que vem sendo uma nova alternativa para a profissão, mas difere radicalmente dos requisitos das empresas e das indústrias. O designer deve ver as comunidades, ou as ONGs, como clientes a serem respeitados e desenvolver uma metodologia específica que cumpra sua função e seus objetivos, além de ir ao encontro de necessidades e de desejos das comunidades.
Um dos caminhos para este trabalho é a valorização dos recursos naturais, da cultura e das técnicas artesanais de cada região, empregando um mínimo necessário de recursos tecnológicos para fazer a ponte com novos mercados consumidores e lembrando sempre que o objetivo é divulgar e fortalecer o mercado de produtos comunitários, e não assinar produtos inovadores. Nesse aspecto, alguns dos pontos mais importantes são o reconhecimento, a qualificação e a valorização do saber tradicional, para chegar assim a um preço justo ao consumidor e a uma remuneração justa da comunidade, bem como do próprio designer.
Há de se salientar que, quando falamos de desenvolvimento de novos produtos, devemos levar em conta os impactos sociais, econômicos e culturais dessa ação. Certamente, a implementação de novas técnicas e de novos processos ou a utilização diferenciada dos recursos naturais disponíveis terão um impacto relevante. Ele pode ser considerado como positivo se, ao final do processo, valorizar a cultura regional e tradicional das comunidades. Da mesma maneira, será positiva a experiência que agregar maior valor ao produto em questão com conseqüente incremento da renda das famílias e subseqüente melhoria da qualidade de vida das populações como um todo.
Intercâmbio de saberes e de experiências
O design é o meio que contribui para o incremento e para o desenvolvimento econômico e social das comunidades tradicionais. Porém, o trabalho de criação e, em certa medida, de transformação dos produtos de uma comunidade não deveria ser realizado exclusivamente por designers. Um grupo multidisciplinar tem melhores condições de capacitar artesãos, não só para atividades voltadas à produção de objetos, mas também à logística e à comercialização.
Os designers enxergam um problema como uma situação a ser resolvida por meio de um processo seqüencial, obtendo resultados às vezes originais, às vezes previsíveis. Sua intenção é a de transformar o problema em uma solução benéfica e adequada para cada situação. Mas não existe uma única resposta. O que existe é uma solução adequada para cada contexto, e cabe ao profissional a responsabilidade de fazer o melhor para encontrá-la. A simplicidade do cotidiano dos comunitários á a fonte, a observação e a valorização de suas características mais legítimas é a chave.
Obviamente, essas mudanças de enfoque profissional não virão rapidamente, e nem será com grande velocidade que “pipocarão” modelos de sucesso no desenvolvimento de produtos e na produção comunitária. Esse processo tende a ser mais emocional do que racional ou lógico, afinal humano, social e imperfeito, “naturalmente imperfeito”.
A estratégia ideal para dar prosseguimento a esta idéia/ação é continuar pesquisando e incentivando a produção comunitária sustentável, aprimorando a organização e a realização de eventos de cunho educativo e cultural, além de desenvolver e conscientizar o consumidor, sem deixar de lado a geração e a implementação de políticas públicas. Esse conjunto de ações leva ao desenvolvimento de projetos dinâmicos e flexíveis, em que a intuição e o respeito devem ser uma constante de peso, pois são características ainda muito vivas e necessárias nas próprias comunidades.
Ainda temos muito que aprender junto às comunidades. Não é simples achar o equilíbrio entre suas necessidades e as do chamado mercado. Cada população ou localidade tem seus diferenciais e anseios. O trabalho de designer é identificar, valorizar e respeitar sua biodiversidade e seu ritmo. Está aqui o exercício profissional, provavelmente o desafio maior: conhecer, entender e criar soluções reais que beneficiem a vida comunitária.
Ullmann, Christian
In: Comércio Ético e Solidário no Brasil
Org. : França, Cássio Luiz de
2003 - São Paulo, Fundação Friedrich Ebert / ILDES.
Texto inserido com o apoio da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo - Programa de Ação Cultural - 2008.