Adélia Borges é jornalista especializada em design, curadora de exposições e professora de história do design na FAAP.
Você é jornalista de formação. Como se desenvolveu essa sua relação com o design?
Eu me formei em Jornalismo na Escola de Comunicação e Artes da USP em 1973, e já em 1972, antes de me formar, fui trabalhar no jornal O Estado de São Paulo. Nessa época, comecei a fazer reportagens relativas a urbanismo e foi quando descobri o design urbano, ao fazer uma reportagem especial em Curitiba. Naquele momento, a cidade tinha como prefeito Jaime Lerner, e pude ver as floreiras no centro, a primeira rua fechada ao tráfego de veículos, os pontos de ônibus, as luminárias urbanas. Percebi como tudo isso podia ter um impacto positivo na vida das pessoas, o que foi bem marcante para mim. Durante alguns anos trabalhei com urbanismo no Estadão e, daí, fui para outras áreas e outras empresas.
Em meados dos anos de 1980, Júlio Moreno, um amigo que editava a revista Design & Interiores, me chamou para ser repórter. Entrei e, em poucos meses, ele saiu da direção e me indicou para o seu lugar. Trabalhei, então, diretamente com o Vicente Wissenbach, que era o criador da Design & Interiores e anteriormente criara a revista Projeto, de arquitetura. Na direção, eu me apaixonei pelo tema. No começo, as pessoas falavam assim: “mas como vocês fazem uma revista de design se não existe design no Brasil?”. E existia muito! O que não existia era comunicação sobre o design. E aí, pesquisando, visitando várias cidades, percebemos que a área estava muito ativa e conseguimos abrir uma vertente nova no jornalismo.
Comunicação é o meu ramo, eu me formei em comunicação e artes. Comunicação é tornar comum, ou seja, fazer com que a gente possa comungar a mesma história, a mesma informação. A comunicação é uma coisa muito importante na vida. A partir daí, fui fazendo coisas como jornalista, depois comecei a entrar nas curadorias de exposições. Comecei, também, a dar aula sobre a História do Design Brasileiro. Uma coisa foi decorrente da outra.
Você é uma das grandes incentivadoras do namoro entre design e artesanato. Quais os benefícios que a produção artesanal traz para o design e quais aqueles que o design traz para a produção artesanal?
Nos anos 80, havia muitos designers competentes com falta de trabalho, parecendo aquele “engenheiro que virou suco”, retratado em filme do João Baptista de Andrade sobre um cara com formação em engenharia que tinha aberto uma carrocinha de hot-dog na avenida Paulista – é um caso verdadeiro. Era muito pesaroso pensar em toda a contribuição que o design podia dar para o país e não estava dando por falta de oportunidade de trabalho para os designers. Foi por isso que, depois de editar a revista Design & Interiores, procurei um periódico que fosse lido por empresários. Eu achava que a chave para abrir o mercado estava na comunicação com quem podia contratar designers. Então, fui trabalhar na Gazeta Mercantil, onde pude falar sobre essa atividade para um público que tem poder de decisão.
No final dos anos 80 e início dos 90, começaram a ocorrer as primeiras aproximações entre design e artesanato no Brasil. Eu escrevia na revista Vip Exame e pude ir para Ouro Preto ver uma primeira aproximação, com a equipe da qual participavam Heloísa Crocco e Porfírio Valadares. Eles haviam sido chamados por José Alberto Nemer para uma oficina de revitalização do artesanato de pedra sabão no Festival de Inverno de Ouro Preto. Foi muito bom ver os designers se aproximando de pessoas que trabalham com as mãos. Essa crença que existia no design brasileiro de que o design pressupõe a repetição industrial, era um tabu que veio da nossa formação, muito ligada ao programa da Escola de Ulm, da Alemanha, por sua vez muito ligado às condições produtivas de um país altamente desenvolvido industrialmente.
O fim do divórcio entre design e artesanato foi positivo, pois leva a uma melhoria da qualidade de vida de muita gente – e esse é, afinal de contas, o principal objetivo do design. Os artesãos ganham muito com a revitalização do seu artesanato por meio de um workshop ou de uma oficina com um designer, desde que isso seja feito de forma respeitosa. Respeito significa não chegar com uma receita pronta, com uma posição pré-concebida. O designer aprende muito também. Nós, devido a esse complexo de inferioridade de povo colonizado que temos, ficamos por muito tempo atrás das referências do exterior, e esse contato com o artesão, com realidades rurais ou de pequenas cidades, essa coisa de se embrenhar pelo país, traz uma riqueza enorme para o designer. Conhecer realidades locais só traz benefícios.
Você disse que existia muito design no Brasil, mas não existia comunicação sobre o design. Hoje, o panorama mudou?
Hoje existe bem mais, embora ainda não seja suficiente. A cultura do design – ou seja, você ter informação, saber do que se trata, não confundir design com decoração – ainda precisa ser mais desenvolvida entre nós. Nos países escandinavos, por exemplo, onde o design está no cotidiano das pessoas há muito tempo, essa noção já está totalmente impregnada no dia a dia e na mentalidade das pessoas. Na Itália, é a mesma coisa. No Brasil, a situação vem melhorando muito. Existem mais revistas especializadas e o design vem sendo tratado na mídia em geral. No entanto, ainda é muito menos do que na Argentina, por exemplo. Ali, os diários Página 12 e El Clarín têm seções semanais dedicadas ao design. De toda forma, a situação no Brasil melhorou.
Há também as exposições, que são muito importantes para a difusão dessa cultura. No momento desta entrevista, estão em cartaz Design Brasileiro Hoje: Fronteiras, no MAM; Santos Dumont, Designer, no Museu da Casa Brasileira; e a Bienal de Design Gráfico da ADG, no Centro Cultural São Paulo. É possível que haja mais alguma de que tenha esquecido. Ou seja, são pelo menos três exposições ocorrendo em lugares de muita visibilidade.
Outra coisa é a bibliografia. Seguramente, o que se editou de 2000 para cá é maior do que toda a soma anterior. Até o ano 2000, havia poucos livros em português sobre o design, e quase nenhum sobre design brasileiro. Agora, há várias editoras se dedicando a esse segmento, como a Cosac Naify, a Rosari, a Viana & Mosley, a 2AB. E também os sites, como o site de A CASA, os blogs todos. Então, há uma mudança relativa a essa questão da cultura do design.
A quantas anda a relação entre design e artesanato no Brasil? Em termos mundiais, qual o papel do Brasil nessa relação?
É difícil responder a uma pergunta genérica como essa, porque se corre o risco de errar ou de cometer injustiças. Hoje, há oficinas sendo realizadas o tempo todo, no país todo. Acho que é muito importante que a gente faça isso, mas se dê conta de que uma intervenção malfeita pode ser mais danosa do que não fazer nada. Há muita necessidade de reflexão sobre o que está acontecendo, sobre instrumentos, parâmetros, avaliação, crítica. De toda a forma, é um caldo que foi engrossando, está se disseminando, e isso eu acho muito bom. No contexto internacional, a América Latina e a África são as regiões em que ainda existe uma grande disponibilidade de mão de obra e há maior abundância de matérias-primas naturais do que nos outros países. Este é um patrimônio rico se bem potencializado. Essa união design/artesanato pode se dar preferencialmente nessas regiões, com uma transformação inteligente dos recursos vindos dessa enorme generosidade da natureza. Precisamos cortar uma coisa que caracteriza nossa história até hoje que é a exportação de matérias-primas a baixos preços, que serão transformadas através do design, gerando riqueza para os países compradores e seus habitantes.
A sabedoria popular afirma que “gosto não se discute”. Em artigo publicado em junho de 2000 você disse que discordava. Afinal, gosto se discute?
Com certeza. Se a gente pega um exemplo de fora dessa área, fica mais fácil entender. A primeira vez que você toma um vinho, você não sabe diferenciar muito o que é um vinho bom do que é um vinho ruim. À medida que você começa a tomar mais vinho, experimentar, você, às vezes, não consegue nem voltar a tomar aquele primeiro que tomou e gostou. É até um problema. E isso se dá também na comida, por exemplo. Muitas pessoas fazem o mesmo tipo de prato, mas nos damos conta de que esse prato feito por fulano é melhor, preserva mais o sabor, é mais gostoso etc.
Acho que gosto se desenvolve, e é exatamente nesse ponto que a cultura do design ajuda. Por exemplo, ao colocar numa exposição coisas diferentes relacionadas ao mesmo uso, você pode induzir o público que está ali a refletir: “nossa, olha essa xícara, ela é muito funcional, muito boa. Agora, essa outra aqui, além da funcionalidade, ela também me diverte, ela me faz rir, porque ela traz um elemento surpresa, um elemento de humor. Essa outra aqui já repercute na minha memória afetiva, nas lembranças da minha infância”. E aí? Com qual você se identifica? O que você acha mais legal para você? Por isso, acho que gosto se discute, gosto se desenvolve, a gente muda o gosto.
O gosto mais difícil de mudar é o relacionado ao paladar; há estudos falando que esse é o ponto em que somos mais conservadores. Os hábitos da família, adquiridos ainda na infância, ficam muito entranhados. Mas mesmo sendo o campo em que a mudança é mais difícil, você vê que a gente muda. Porque a sua vida vai mudando, você vai mudando de cidade, vai crescendo, são vários fatores. Tem até um filme muito legal que eu acho que tem a ver com design que é A Culpa é do Fidel. É um filme que fala muito sobre uma visão de mundo do ponto de vista de uma menina francesa, cujos pais começam a ficar de esquerda e mandam embora a antiga empregada. E cada empregada que entra traz algo novo. Uma vietnamita traz comida vietnamita, outra é não sei de onde e traz algum outro tipo de comida. O filme vai mostrando como essa menina se recusa, no início, a tomar contato com tudo isso, enquanto o irmão mais novo vai assimilando todas essas coisas como presentes que a vida está dando, ele é mais desencanado, digamos assim. Acho que divaguei na resposta. Então, só para fechar, a capacidade de se transformar é inerente ao ser humano, e isso é uma riqueza que a gente tem. A questão do gosto está implícita aí.
Muitas vezes, a questão do gosto aparece nos debates sobre o encontro entre designers e artesãos. Assim, alguns teóricos afirmam que designers não deveriam interferir na estética do objeto artesanal por tratar-se de uma questão de gosto e, portanto, subjetiva.
Eu acho que quem melhor tem pensado a respeito disso é um antropólogo chamado Ricardo Lima, do Museu de Folclore Edison Carneiro, no Rio de Janeiro. Ele tem uma posição muito esclarecedora do ponto de vista antropológico que podemos resumir em: respeite. Ele conta até uma historinha do gambá, o gambá que estava em uma peça de cerâmica do Vale do Paraíba e o designer chegou lá e tirou o gambá porque não gostava desse bicho. Mas toda a identidade daquela peça estava baseada na figura do gambá! Então, há que se ter muito cuidado com essa relação, principalmente quando ela é desigual, entre um designer – urbano, instruído, educado, digamos assim – e um artesão – rural, analfabeto muitas vezes. Quanto mais desnível houver, mais tem que haver um cuidado nisso.
Outro ponto a atentar é que não podemos condenar ninguém à imobilidade. Todo mundo que está vivo está em mudança. Como dizia o músico Raul Seixas, “eu prefiro ser essa metamorfose ambulante”. Não podemos achar que, se um artesão fez uma galinha de um jeito uma vez, ele está condenado a fazer isso pelo resto da vida. Isso é sonegar a ele a possibilidade de crescimento, de transformação. É uma questão complicada. A frase da Janete Costa – “o mau gosto é o gosto dos outros” – é muito boa para dizer o seguinte: “cuidado, não vai desrespeitando, não vai dizendo que isso é in, que aquilo é out, que ‘isso vale, é de bom gosto’, que ‘aquilo não vale, é de mau gosto’”. Há muitas outras coisas envolvidas aí além da categorização de cara “isso é bom”, “isso é ruim”, de forma maniqueísta.
A exposição Design Brasileiro Hoje: Fronteiras, cuja curadoria foi feita por você, tinha como mote discutir o design a partir da atual dissolução de limites geográficos e disciplinares. Você poderia falar um pouco a respeito disso?
O momento que estamos vivendo é o da dissolução das fronteiras; as coisas estão mais próximas, os diálogos estão todos abertos para todo mundo, as trincheiras foram por terra. Isso nos dá o pano de fundo do momento em que a exposição é feita. Aí há os múltiplos sentidos da palavra fronteiras que eu quis explorar. Primeiro, é isso que você falou da fronteira geográfica. As fronteiras geográficas internas estão se expandindo. Se antes tínhamos design mais em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, hoje ele vem sendo praticado nos quatro cantos do país.
Ainda do ponto de vista geográfico, as fronteiras do design brasileiro no cenário internacional estão também se expandindo. Tem gente exportando para vários países, tem gente trabalhando para empresas de vários países. Isso também é uma característica do momento atual: as profissões criativas têm muito esse cruzar. Você vê isso em arquitetura, em artes, em música, em teatro. Há uma troca muito maior do que existia antes. Sem dúvida, agora, principalmente na virada do século XXI, o design brasileiro conquistou uma situação de reconhecimento internacional como nunca teve. Os irmãos Campana são figuras chave nessa expansão geográfica externa. Sergio Rodrigues, que foi um dos primeiros a conquistar um reconhecimento no exterior com o prêmio obtido pela poltrona Mole em 1961, está sendo lançado na Oceania, na Ásia, na Europa, com um grande reconhecimento. As principais revistas de design já deram capas ou números especiais sobre o Brasil; há peças de designers brasileiros em coleções de museus importantes, nas lojas dos museus internacionais, há toda uma mudança. Estamos também ganhando muitos prêmios no exterior. Por exemplo, a colocação do Brasil no ranking do Prêmio If Design, em Hannover, é muito boa. O Brasil está em 6o, 7o lugar.
Mas o que o termo fronteiras também nos traz é a condição de poder explorar como o design é uma atividade multidisciplinar que se relaciona, numa ponta, com as artes visuais e, na outra, com a engenharia, com a tecnologia. Permeando essas duas pontas, há mil outros inter-relacionamentos, com a arquitetura, com o urbanismo, com o artesanato, com a antropologia, com a sociologia, com a psicologia. Acho que essa é a riqueza do design: é uma atividade necessariamente multidisciplinar, necessariamente interdisciplinar. Um bom designer tem que estar atento a todas essas imbricações e também muito ligado a outras áreas criativas, como dança, música, cinema; tem que estar com a mente muito aberta.
A ideia dessa exposição que estou fazendo no MAM é mostrar ao público essas múltiplas dimensões e possibilidades do design. Quando se fala em design de produto, as pessoas pensam em cadeira; quando se fala em design gráfico, pensam em marca; e eu quis também pegar coisas muito diferenciadas: um livro, uma vinheta de televisão, um cartaz, e até uma vassoura, tirando um elemento que fica escondido em casa atrás da porta da área de serviço e trazendo à luz num museu de arte da importância do MAM. O objetivo final, assim, é aumentar a percepção consciente das pessoas sobre a presença do design em suas vidas.
Qual a importância de criarmos essa consciência sobre o design?
A importância é aprimorar o discernimento. Você não precisa estar ligado nisso todo o dia, o tempo todo, mas se você parar para pensar um pouco em gestos automáticos, pode rever: “será que o que eu estou consumindo diz a respeito a quem eu sou hoje?”; “será que eu estou fazendo coisas do tipo: ‘eu prego um mundo melhor e disparo a comprar numa obsessão de consumo’?”; “será que o que eu uso diz quem eu sou para mim mesmo e para as pessoas que me veem?”; “será que o que eu consumo ajuda a piorar o mundo, no sentido de que estou usando uma coisa que faz um mau uso de uma matéria-prima, que requer energia excessiva para a produção, ou que veio transportada de muito longe e o custo energético desse transporte é muito grande?”. O objetivo de aumentar a percepção consciente, que é o que se obtém, por exemplo, numa exposição, é permitir que as pessoas reflitam mais sobre isso e passem a exercer a crítica no seu cotidiano.
Ana Mae Barbosa, uma grande arte-educadora, fala disso: quando você forma pessoas capazes de olhar ao redor e ter uma postura crítica, você vai formando indivíduos capazes de apreender melhor a arte. Um reconhecido guru de negócios, o norte-americano Tom Peters, fala: “insurja-se contra o mau design”. Se você vai usar um aparelho que comprou e não entende como ele funciona, a primeira reação é pensar que você é atrapalhado ou não é inteligente o suficiente para saber como ligar aquilo. Na verdade, o defeito nunca está em nós! O defeito está no projeto, que não levou em consideração toda a gama de usuários, alguns mais ligados àquele tema, outros menos. Se você começa a incorporar essa noção também na hora em que vai comprar, você escolhe dar dinheiro para uma coisa ou para outra. Ou na hora que você vai contratar. Muitos de nós temos a oportunidade de contratar alguém para conceber algo. Iremos querer uma coisa complicada, que ninguém entenda, que seja cara, metida? Quais são os atributos que queremos? Por isso, acho que quando se aumenta o repertório das pessoas, elas passam a ter melhor condição de agir no seu dia a dia, tanto como consumidoras, quanto, eventualmente, como contratantes.
Em abril de 2000, você afirmou que, em termos de design e produção de objetos, havia uma cultura da cópia no Brasil: copiava-se aquilo que estava se fazendo no exterior, mas não como os japoneses, que melhoravam o produto, piorava-se o produto. Na época, você havia dito que o panorama estava mudando, embora de forma tímida. E agora, nove anos depois, como você avalia essa situação?
Melhorou bem. O marco disso é 1990, quando há o fim do bloqueio comercial à importação. Nesse ano, o Brasil recebeu uma avalanche de produtos do exterior, o que provocou uma quebradeira de empresas num primeiro momento, mas que depois foi levando os empresários a perceber que, para concorrer com um produto que vinha de fora, eles precisavam investir em design. Hoje, graças ao esforço de catequização que uma instituição como o Sebrae faz em relação a isso, não apenas as empresas grandes, mas também as médias e algumas pequenas usam um profissional de design para resolver um produto, para fazer uma marca. A cultura da cópia ainda existe, mas está com menor força. As empresas que tem se destacado quanto a seu desempenho econômico são aquelas que não praticam a cultura da cópia. Espero que isso incentive as outras a tomar o mesmo caminho.
Uma cadeira não serve simplesmente para sentar, mas também para olhar, ostentar, intimidar, sinalizar a que tribo se pertence etc. Você poderia falar um pouco sobre as funções simbólicas dos objetos?
De novo, precisamos voltar à gênese do ensino do design no Brasil. A educação superior de design no Brasil, durante muito tempo, pautou-se pelo axioma a forma segue a função. E, se ela segue a função, ela segue só a função, e a função não depende de tempo e lugar. Já que a cadeira serve para sentar, então a resposta a essa função poderia ser a mesma em qualquer lugar. Isso ignora que cada cultura tem o seu jeito de sentar. Por exemplo, alguns povos sentam-se sobre o tapete, outros, em almofadas, outros, em rede, outros, em cadeiras, enfim, há uma variedade enorme. Nos anos 80, já começaram a surgir frases brincando com aquela anterior, dizendo que a forma segue a ficção, então vamos vender produtos que contem uma historinha. A Alessi, de utensílios de cozinha da Itália, tinha uma linha Form Follows Fiction. Aí, outros começaram a falar: “a forma segue a emoção”, “a forma segue a invenção” etc. Esses novos slogans sinalizam que é preciso se abrir para as dimensões culturais e simbólicas do objeto. Voltando para o exemplo da xícara, na exposição Design Brasileiro Hoje: Fronteiras há uma xícara de chá do Estudio Manus que tem uma imagem de um pequeno Buda dentro. Esse objeto vai além da mera função e está muito próximo da arte pela questão da surpresa, pela questão de trazer um elemento novo, um humor.
Para o exemplo da cadeira, a gente vê que esse é um objeto muito cheio de simbologia, nas variadas culturas e até nas religiões. A Santa Sé é o lugar da sedia, da cadeira, do bispo, do Papa. O Papa herda o trono de Pedro, o primeiro apóstolo. Nas empresas há o chairman, é o homem da cadeira, o manda chuva. E numa corporação, você consegue detectar quem é quem pelo tamanho, altura do espaldar e nível de conforto de sua cadeira. Uma exposição que fizemos no Museu da Casa Brasileira, Bancos Indígenas – Entre a Função e o Rito, com curadoria de Cristiana Barreto e minha, explorava bem isso, indo atrás da origem desse objeto, que é um banco de sentar, e vendo como ele era feito de formas diferentes, com grafismos diferentes, em sociedades indígenas, às vezes, de uma mesma região brasileira, mas com uma variação enorme, sendo que cada artefato expressa, na verdade, uma visão de mundo.
Que papel terá o design no futuro e quais serão as suas principais características? A sustentabilidade é um conceito já incorporado nos produtos?
Em 1999, fiz uma exposição no Itaú Cultural chamada Novos Alquimistas, em que chamei a Janete Costa para fazer a museografia. O objetivo foi mostrar designers que estavam trabalhando com essa questão da transformação, a reciclagem. Precisei pesquisar bastante para achar quem estava fazendo coisas boas nessa direção. Hoje, não se encontra um designer que não tenha esse tema incorporado pelo menos ao seu discurso e, em muitos casos, à sua prática. Então, essa questão da sustentabilidade já é vital e, sem dúvida, será vital.
Está se falando muito, hoje, na era do design. Já tivemos a era da engenharia, em que as empresas produziam o que seus sistemas produtivos conseguiam. A famosa frase do Henry Ford, de que “o consumidor pode ter o carro da cor que quiser, desde que seja preto”, surge nesse contexto. Ela foi quase um chiste, mas mostra bem uma postura: “nós vamos vender o que a gente tem condições de fabricar, se você quiser, bem, se não quiser, amém”. A fase seguinte foi a era do marketing, na qual “o que o consumidor quer, iremos entregar, e, para tanto, vamos fazer pesquisas de opinião”. No entanto, essas pesquisas de opinião não conseguem detectar as mudanças mais profundas dos padrões de consumo, elas não conseguem antecipar grandes inovações. Antes de o walkman ter sido inventado, você não teria conseguido dizer: “ah, eu quero um walkman”. Você só consegue imaginar, ter essa imagem na cabeça, depois que já soube que existe uma coisa chamada walkman. Então, entramos no que muitos – até os jornais de negócio, o Financial Times, a Newsweek – chamam hoje de a era do design. Antes, a tecnologia impactava muito no desempenho dos objetos e dos serviços, existia uma lacuna muito grande entre quem surgia primeiro com uma tecnologia e os seguidores. Agora, essa distância está se encurtando cada vez mais. Então, na medida em que a tecnologia impacta e torna as conquistas quase instantâneas, a única forma de você se diferenciar aos olhos dos consumidores é através do design. Daí essa importância muito grande que o design está tendo, e eu acho que terá. Sem dúvida, estamos vivendo esse momento.
Das diversas áreas do design – interiores, mobiliário, gráfico – quais delas estão em destaque nesse momento?
Todas as áreas emergem nesse momento, assim como a capacidade dos designers de compreender uma demanda e responder em linguagens variadas. Num hotel, por exemplo, é preciso fazer o design de interiores dos quartos, o design dos móveis, o lençol, a toalha, a marca, os uniformes etc. Eu acho que vão crescer os estúdios e os profissionais capazes de dar respostas globais a essas necessidades, ou seja, a partir de um conceito, fazer todos os desdobramentos: o desdobramento espacial, desdobramento do design da moda, o desdobramento do design da identidade daquele local. Esse é um campo para os profissionais capazes de falar uma linguagem mais “sem fronteiras”. Estão crescendo essas coisas múltiplas e se vê profissionais que estabelecem um diálogo muito interessante com outras disciplinas. O grupo Hardy’Voltz, de Belo Horizonte, que vimos na exposição, está fazendo uma interface muito legal com a cidade, com o design na escala urbana. Muti Randolph faz uma interface fantástica com a música; ele criou softwares em que há mudanças no visual do ambiente de acordo com a música que está sendo tocada. E há o grupo Oestudio, no Rio de Janeiro, que faz roupas e desfila na São Paulo Fashion Week, e cria produtos industriais variados. Esses grupos ou profissionais são capazes de uma visão generalista, de uma visão que faça contato com essas outras áreas. Esses grupos híbridos, que têm a multidisciplinaridade até na composição da própria equipe, terão um bom campo pela frente. Equipes de design bem-sucedidas cada vez mais empregam antropólogos, psicólogos, linguistas. Em resumo, o mercado vai crescer para esses profissionais capazes de pensar “fora da caixa”, compreendendo a necessidade mais global de um cliente e oferecendo uma resposta a isso.
A necessidade é a mãe da invenção ou a invenção é a mãe da necessidade?
Ambos são verdadeiros, essa é uma coisa dinâmica. Uma das grandes riquezas que o Brasil tem é a capacidade de invenção do seu povo. Os designers “eruditos” bem-sucedidos, a meu ver, são aqueles que têm um vínculo ou uma abertura mental maior em relação a essa grande expressividade do nosso povo. Desde que eu saí do Museu da Casa Brasileira, já fui falar sobre design brasileiro na Austrália, no México, nos Estados Unidos, na Espanha, em vários países da América Latina, e uma coisa fantástica que eu vejo quando viajo pelo Brasil e que eu não vejo nas minhas viagens pelo mundo, nos países desenvolvidos, é o grau de inventividade na rua, na feira. A capacidade de design do povo brasileiro é, até, uma estratégia de sobrevivência. Estou falando de um carrinho para vender café em Salvador, de uma placa feita à mão que anuncia um produto ou um serviço, de embalagens feitas para vender laranja no cruzamento das grandes cidades. São lições de design muito fortes que a gente tem aqui, e eu acho que se soubermos ter olhos para isso e valorizarmos, nosso lugar no cenário internacional será ainda de maior relevo. Nessas palestras fora do Brasil, esse é um ponto que sempre provoca uma grande admiração. Realmente, é uma dádiva que um povo, premido pela necessidade, resolva seus problemas acionando as matérias-primas que estão ao seu redor, as técnicas que ele domina, com muita propriedade e, em geral, de uma forma muito ecológica. Aliás, o povo brasileiro é ecológico até bem antes de essa palavra existir. Lina Bo Bardi, em suas pesquisas, teve muitos olhos para a reciclagem no design popular brasileiro. Agora, o mundo desenvolvido está atento a isso, mas aqui já era praticado desde sempre.