“Hoje nós, o interior, os brasileiros, estão valorizando o artesanato brasileiro, por quê? Porque antes eles só ficavam pensando no que eles iam trazer de fora, então hoje teve sim uma mudança na cultura das pessoas muito grande, não tem mais aquele raciocínio do artesão “paz e amor” que andava lá debaixo da torre...um hippie que fazia de manhã pra comer de tarde.” (Roze Mendes, Flor do Cerrado)
Partindo da percepção de uma mudança na concepção do que representa ser uma artesã no mundo de hoje, Roze demonstra que se sente confortável diante da perspectiva de formação de um mundo globalizado, em que o artesanato ganha novos significados e transforma-se numa profissão fifa 14 coins.
Ao buscar ajuda do SEBRAE para encontrar os caminhos do trabalho produtivo, a mulher é orientada a investir naquilo que ela já sabe. Nesse momento, entram em jogo as habilidades “naturais” de cada uma.
O SEBRAE orienta a mulher a focar-se naquilo que ela faz de melhor. O termo “natural” aparece aqui como se, na natureza da mulher, houvesse uma predisposição para trabalhos manuais com agulhas fifa coins, como bordados ou costura, e para a produção de objetos com fins decorativos. Sabemos que tais características, bem como sua quase total exclusividade no cuidado dos filhos, são parte da construção cultural do papel social feminino.
Depois de identificadas as habilidades “naturais” de cada uma das mulheres, passase a um segundo momento, quando elas são encaminhadas para cursos de capacitação naquelas habilidades específicas, apenas para “reforçar” o que já seria “natural” para elas. Antonieta Contini explica o motivo de se encaminharem as artesãs para os cursos de capacitação, já que elas se apresentam no SEBRAE possuindo suas habilidades “naturais”:
“Não, no caso elas são artesãs, mas com trabalhos manuais, o artesão é aquele que vai na natureza, traz a madeira e transforma em uma arte, vai na natureza pega o barro e transforma em uma arte. Ele se inspira na natureza, então artesão é aquele sozinho que `as vezes trabalha com a família, mas ele tem muito a cultura, muito agregada a cultura dele. Se ele é nordestino, ele não muda aquilo e continua fazendo aquilo e tem que ser assim, tem que abranger a cultura né, e ele não quer muita interferência, ele não quer interferência, a maioria né, alguns são mais abertos ao designer...”não, eu sempre fiz assim , eu prefiro assim”. Agora nós temos artesãos aqui muito atualizados, que buscam o diferencial no designer e que vendem muito mais, porque hoje o mercado é muito exigente. Não dá para ti fazer o tradicional, o tradicional tem que fazer, mas também tem que se adequar ao que está se usando na ambientação e tal né FIFA 15 Coins, então eu não trabalho com artesã, eu trabalho muito mais com grupo de mulheres e a diferença é que é trabalhos manuais, resgatando técnicas artesanais brasileiras.” (Antonieta Contini, SEBRAE)
A Gerente do SEBRAE procura explicar como é visto e entendido o trabalho do artesão naquela instituição, ponderando sobre uma maior ou menor abertura do artesão para a interferência do designer no seu trabalho. Na sua avaliação, os artesãos que são “muito atualizados”, “buscam o diferencial no designer” e “vendem muito mais”. Seguindo a mudança na concepção do papel do artesão de hoje, conforme apontada por Roze , o artesão “atualizado” estaria interessado na possibilidade de “vender mais”. Para tanto, Antonieta Contini explica que “não dá pra ti fazer o tradicional, o tradicional tem que fazer, mas também tem que se adequar ao que está se usando”, ou seja, seria preciso unir o artesanato tradicional às tendências da moda.
Antonieta Contini menciona também o “resgate” de técnicas artesanais brasileiras, retomando o que teria sido o ponto de partida do trabalho artesanal: aqueles conhecimentos tradicionais que as mulheres já possuíam naturalmente e que seriam “aperfeiçoados” por meio dos cursos de capacitação do SEBRAE.
Nessa etapa entra em jogo a idéia de “coisas que a vovó fazia”, que consistiria em conhecimentos que não foram aprendidos formalmente, mas transferidos de mulher para mulher no jogo de reprodução de papéis sociais. São conhecimentos herdados e compartilhados por alguns membros da sociedade que, em geral, dependem de alguma habilidade manual específica. Antes de receberem o designer, que vai “desenvolver” um produto para as artesãs, elas precisam fazer um curso para “lembrar dos pontos de bordado que aprenderam com as avós”. Conforme foi mencionado tanto pelas artesãs, como por Antonieta Contini, Kátia Ferreira e Renato Imbroisi, antes de começarem a produzir o artigo “de design”, seria preciso fazer o “resgate” daquilo que as mulheres já sabem fazer, o que seria feito por meio de um curso de capacitação em bordado ou costura.
O fato de que tal “resgate” seja feito por meio dos cursos de capacitação não parece suscitar nenhum estranhamento entre os nativos desse universo do artesanato de Brasília, que se referem aos cursos como uma forma de aprimoramento dos saberes “naturais” das mulheres. A única ponderação que tem sido feita se refere ao fato de que algumas mulheres não “levam jeito” para fazer trabalhos manuais.
Gerente, designers e artesãs empreendedoras explicam que “é preciso saber se uma pessoa tem jeito pra isso” antes de lhe transmitir o conhecimento. Muitas mulheres tentar aprender o bordado ou a costura, mas não “levam jeito pra isso”. Aquelas que não “levam jeito” acabam sendo orientadas a continuar na busca pela sua principal habilidade, entendida como um “dom”.
A justificativa para esse processo de “resgate” encontra-se na crença de que cada membro da sociedade possui “dom” para alguma coisa, uma habilidade e predisposição natural, recebida gratuitamente como presente, para a realização de algum tipo específico de tarefa. Descoberto o dom, ele precisa ser aceito e utilizado para o bem de todos, como forma de retribuição.
A existência dos “dons” ligados aos “fazeres tradicionais” nesse contexto de globalização e modernidade tardia acaba por transformar o próprio significado do “dom”, que se transforma em algo além de uma habilidade nata, para ser também a forma como uma pessoa vai se inserir no sistema econômico, seja no mercado de trabalho, como produtor, seja diretamente no mercado consumidor.
No “Ensaio sobre a Dádiva”, Marcel Mauss (2001[1950]) trata do dom como recurso empenhado num sistema de trocas, que representa tanto um investimento econômico para ser resgatado no futuro, quanto investimento na construção da honra e do prestígio no momento presente para aquele que se desfaz do bem. Traçando um paralelo com as artesãs, o “resgate” dos “dons” tanto representaria uma possibilidade de ganho de prestígio por meio da descoberta de uma nova oportunidade de trabalho e possível geração de renda, já no presente, bem como um possível investimento também no futuro, através dos desdobramentos dessa atividade, caso a sua inserção no mercado frutifique.
Com isso, somos forçados a nos apartar daquela idéia romântica do artesão que vive meio isolado do mundo, produzindo um artefato apenas pela “arte”, ou simplesmente para ser vendido a preços baixíssimos no meio da calçada de uma rua qualquer. O artesão de que estamos tratando está inserido numa rede de relações, vive num mundo globalizado, em que exportação e feiras internacionais não são realidades tão distantes. O mesmo tipo de observação sobre a mudança no significado do artesanato e do papel do artesão na sociedade de hoje foi mencionado tanto por Roze Mendes, da Flor do Cerrado, no começo desse capítulo, como por Kátia Ferreira, da Apoena Fashion, quase nos mesmos termos. A busca por conquistar o mercado consumidor torna-se uma etapa necessária para garantir a sustentabilidade do projeto de artesanato com finalidade de geração de renda, e não um fim em si mesmo. Observar esse dado permite a apreensão de novos significados para as antigas práticas.
Além da importância do domínio do manejo das técnicas artesanais, “resgatadas” pelo SEBRAE na sua atuação junto aos grupos de trabalho, entra em jogo também o tipo de material empregado nas confecções. O tipo de material aparece como parte da caracterização da atividade artesanal, como constitutivo da própria definição de artesanato.
Isso se expressa no processo de “atualização ou modernização” da atividade artesanal, quando se dá a busca pelos materiais mais naturais, mais ecologicamente corretos. Esses são preferidos não apenas por serem bons em si mesmos, porque ser ecologicamente viável já representaria um valor em si, mas também porque o produto ecologicamente correto atenderia também a um segmento de mercado definido, e tal característica agregaria valor ao produto.
Não somente a sustentabilidade ambiental atrairia o consumidor e agregaria valor ao produto. Segundo Renato Imbroisi, “Para saber se o produto vai agradar o consumidor, pesquisa de mercado, e o que conta a história do produto faz essa diferença. Além do produto em si, a história que tem por trás.” A pesquisa de mercado ajuda a revelar os desejos do consumidor, em compasso com as tendências da moda. Mas o designer revela ainda que parte da estratégia de promoção do produto artesanal repousa nas histórias ou narrativas que acompanham esse produto, revelando detalhes tanto sobre as pessoas que o produzem, o tipo de comunidade em que é feito, quanto no que tange ao impacto social dessa comercialização, bem como as etapas do processo de produção, que de um modo geral empregam materiais reciclados e recursos naturais.
As costureiras do Varjão empregam materiais reciclados tais como retalhos de tecidos e tampinhas de garrafas e latas. Toda espuma, tecido ou linha que restar será usada como enchimento das bonequinhas. Já as Bordadeiras de Taguatinga utilizam somente tecidos de algodão natural, que deve ser pré-lavado antes de se iniciar o bordado, para que não encolha quando for lavado pela segunda vez, necessária após o término da aplicação dos fios de linha do bordado. A Flor do Cerrado, por sua vez, utiliza as folhas secas dos arbustos do cerrado, que são colhidos no campo, mas atua com “consciência ecológica” para não danificar o ecossistema do cerrado, retirando um pouco por vez, de forma a garantir a sustentabilidade dos recursos naturais. Conforme o relato de Roze Mendes, ao final da primeira parte da tese, cada vez que ela vai ao cerrado em busca de matéria-prima, ela aproveita para juntar e trazer para casa uma enorme quantidade de lixo que as pessoas deixam jogado nos campos, e que prejudica o meio-ambiente. Parte da sua tarefa consiste na luta pela preservação desse ecossistema. Analisando três modos distintos de trabalhar com o artesanato, podemos perceber que todos eles compartilham dessa característica de vinculação da atividade artesanal com a preservação do meio-ambiente.
O cuidado com a natureza e a consciência da necessidade de preservação, bem como da importância da reciclagem para o meio-ambiente, constituem uma tendência da moda que está conectada com o discurso ecológico internacionalmente difundido. Ao mesmo tempo, estar sintonizado com tal discurso representa em si um capital simbólico, nos termos de Bourdieu, e resulta numa “estória” sobre o valor desse produto, que é vendida conjuntamente com ele. O produto artesanal não é apenas um objeto, mas um “kit” que inclui objeto e discurso, recorrendo ao contexto da produção para retirar dali as referências culturais deslocadas que concorrem para forjar o significado conforme ele parece ser mais apreciado. Se aqui a razão prática se faz presente, nos termos de Marshall Sahlins, visando o comércio de “bits de cultura” por meio desses discursos, inegavelmente ela se faz acompanhar de representações, que são fatos sociais relevantes, compartilhadas por esse público consumidor, permitindo a revelação dessa camada de sentido.
Se existe a possibilidade do designer responder aos apelos do mercado fornecendo um produto com um discurso, um “kit”, isso ocorre antes porque existem essas representações entre as consumidoras, que esperam manifestar sua consciência ecológica e social através da aquisição dos produtos, do que pela simples razão prática de que os “kits” vendem bem.
Dessa forma, a aquisição de produtos artesanais é vista como um ato de cidadania e expressão de consciência social, como forma de mostrar um consumo crítico ou de se posicionar contra o “consumo conspícuo” de que fala Veblen. O fato de que tais “kits” artesanais, objeto e discurso, são produzidos de acordo com a orientação de um designer, revela mais do que o fato de que eles são construídos numa interação que tem foco no mercado, revela representações próprias de um outro grupo social que é constituído pelos consumidores desse tipo de produto, de que o designer seria, ao mesmo tempo, representante e intérprete.
Interessa aqui não tanto revelar a existência de uma razão prática que reduz o processo de produção artesanal ao comércio, mas a existência de diferentes representações ou cosmologias concorrendo em torno de um objeto material, numa espécie de disputa pelo significado.
Um outro aspecto importante no que diz respeito à disputa pelo significado é a batalha de classificação que ocorre quando a artesã busca o reconhecimento de sua situação profissional pelo Estado, ao inscrever-se oficialmente como artesã. O ingresso no campo formal do artesanato demanda a obtenção de um registro de artesão, que se dá com a obtenção da “carteirinha de artesão”, elaborada pela Gerência de Artesanato da Secretaria do Trabalho do Governo do Distrito Federal. Os meandros desse processo de registro do artesão na Secretaria do Trabalho serão conhecidos no capítulo seguinte. Por ora, gostaria apenas de salientar que um dos primeiros passos no ingresso do artesão nesse campo passa pela etapa burocrática de registro. Como toda burocracia, trata-se de formas de classificação e ordenamento da atividade, e também da definição da atividade artesanal do ponto de vista do Estado.
O tipo de material como constitutivo da atividade artesanal se expressa, portanto, de duas formas. A primeira, tratada até aqui, leva em conta o ponto de vista do designer, que busca adequar o produto ao que é desejado pelo consumidor do artesanato, indo ao encontro de sua consciência ecológica. A segunda, que trataremos em seguida, leva em conta o ponto de vista da autoridade que representa o Estado na definição de quem é e quem não é artesão, e que passa também pela definição do tipo de material considerado apropriado para a atividade artesanal. Conforme me explicou Ana Maria França, funcionária da Secretaria do Trabalho do GDF:
“A técnica que você utiliza é importantíssima, pois na medida que você utiliza, sabe pegar uma técnica e utilizar com a matéria prima adequada para poder ter um produto aceitável no mercado de trabalho, isso para mim é artesanato. Que quando você pega uma matéria prima que não é tão aceitada naquela técnica e você consegue fazer, obter um produto totalmente diferente, você está inovando. A criatividade ali, a originalidade está ali, então, quer dizer, para mim teria que definir, eles começam já discutindo a matéria prima, se você faz.” [...]
A Secretaria do Trabalho só cadastra FIFA 14 Conis bijuteria natural. Mas o que a gente vê com o mercado de trabalho é que são aqueles negócios coloridos, bem rosinha, miçanga, aquelas resinas, aqueles negócios, essa não é uma matéria prima aceitável? A Ana Maria acha que é. Mas quando eu vou fazer um cadastramento eu coloco, se você for chamado para uma exposição da secretaria o seu produto tem que ser o mais natural possível, para não fugir do artesanato, por que é uma luta que se tem é que não se fuja. Então, eu acho importantíssimo, quando for definir o artesanato, que veja essa parte da matéria prima. Então, se você tem uma matéria prima “x”, aplica uma técnica nela e faz um produto, com acabamento, com criatividade, aí outros conceitos, eu posso considerar isso como artesanato atualmente. Não só o indígena, o indígena é bem natural, você não vai ter que fazer a vida inteira trabalho com cabaça. Não é não? Não é?” (Ana Maria França, GDF)
Procurei aqui mostrar as disputas ou negociações de significados presentes nos fazeres cotidianos, vendo o consumo, por exemplo, como ativo e não como passivo, num universo de representações. Da mesma forma, entendo que a classificação burocrática vai se revelando negociada a cada momento, por meio dos procedimentos e estratégias que os atores empregam no cotidiano para a manutenção daqueles significados FIFA Ultimate Team Coins que lhes são mais interessantes. Procuro chamar a atenção para esses processos em que comumente não se percebe o poder de agência do sujeito, como se o consumidor ou o burocrata, por exemplo, não tivessem nenhum papel ativo a desempenhar, e seus atos fossem destituídos de significado motivado.
Ao mesmo tempo, nessa pequena manipulação do significado corrente, em uso, podemos constatar que a imposição de um conhecimento é um exercício de poder, do poder de quem possui o conhecimento sujeitando aquele que não o possui. A apropriação desse conhecimento e os diferentes usos que dele se faz, em proveito e beneficio próprio, por aqueles menos favorecidos nessa relação, nos termos de Bourdieu, “os dominados”, seriam parte das diferentes expressões do poder de agência individual.
Procurei mostrar a apropriação que é feita dos conteúdos culturais transmitidos pelo treinamento e formação, ao observar como isso é utilizado pelos indivíduos em proveito próprio, ou seja, nas manobras de sentido efetuadas a partir daquilo que é apreendido, no uso cotidiano, por meio de uma negociação que visa a imposição de um significado. Procuro analisar a forma como esses recursos são empregados do ponto de vista da ação individual do sujeito, no campo dinâmico e vivo do significado corrente, também chamado de cosmologias ou representações, que subjazem às práticas cotidianas.
Capítulo da tese de doutorado De Bonecas, Flores e Bordados: Investigações Antropológicas no Campo do Artesanato em Brasília apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília.
CAPÍTULO DA TESE DE DOUTORADO "DE BONECAS, FLORES E BORDADOS: INVESTIGAÇÕES ANTROPOLÓGICAS NO CAMPO DO ARTESANATO EM BRASÍLIA", APRESENTADA AO PROGRAMA DE PÓ-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. LEIA TESE NA ÍNTEGRA
Texto inserido com o apoio da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo - Programa de Ação Cultural - 2008.