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A CASA E O MUNDO
Antonio Arantes

ENTREVISTA

ANTÔNIO ARANTES

Publicado por A CASA em 9 de Junho de 2009
Por Daniel Douek

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"O problema é quando as pessoas estão impedidas de ser o que imaginam ser, quando se restringe, de alguma forma, a expressão da diferença"

Antônio Arantes é antropólogo, consultor de políticas culturais e professor de antropologia da Unicamp.

 



 

Sua trajetória profissional passa pela criação do departamento de antropologia da Unicamp, pela presidência do Iphan e pela atuação como consultor junto ao Artesanato Solidário. Em que contexto cultural e político ela se desenvolveu?

É uma trajetória longa. Acho interessante que ela tenha começado nos anos 1960 e, naquela época, questões de Cultura Popular e Patrimônio, com as quais eu trabalho até hoje, eram colocadas de uma maneira completamente diferente do que se coloca hoje. É interessante pensar nesse lapso de tempo – são quarenta anos –, nas mudanças que houve.
Nos anos de 1960, não se falava sobre “patrimônio cultural imaterial” ou sobre “patrimônio cultural popular”, falava-se em “cultura popular”. O patrimônio era histórico e artístico, do departamento de história e da faculdade de arquitetura, ou seja, tinha muito pouco a ver com as ciências sociais.
Tanto no caso da cultura popular quanto no caso do patrimônio, havia duas vertentes. Uma vertente era mais relacionada a questões estéticas de história da arte. Trata-se uma questão que perdura até hoje, pois, sobretudo no que diz a respeito à arte popular ou à produção cultural popular, é uma dimensão muito ameaçada, porque a criatividade está sempre em confronto com a indústria cultural e o mercado. Isso, evidentemente, coloca problemas para o artesão e para o criador que não tem a capacidade e o apoio que artistas eruditos têm em termos de argumentação, mercado, crítica, imprensa etc. Há uma questão de poder envolvida aí. Então, fica uma situação desigual.
A outra vertente tinha a ver com os aspectos políticos da produção cultural popular. Havia uma gama de visões que ia de um certo endeusamento da cultura popular – “que maravilha, é popular” –, uma percepção paternalista, até um entendimento crítico de que a cultura popular era, na verdade, uma manifestação de condições de vida muito precárias, uma falta de conscientização a respeito das condições de opressão que essa população vive. A crítica da cultura popular estava presente no importante trabalho do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), que apresentou uma releitura crítica de temas da cultura popular nas artes cênicas, artes gráficas, literatura. Artistas de diversas áreas tomaram temas populares fazendo uma interpretação mais politizante do popular.
No caso do patrimônio, o debate era muito em torno da formação da nação e da questão dos grupos hegemônicos. São Paulo tinha pouca presença no patrimônio nacional, porque o barroco e o colonial nesse estado não são tão expressivos quanto em Minas Gerais, na Bahia ou em Pernambuco. São Paulo representa uma mistura de culturas, a miscigenação, a industrialização, a imigração. Isso, evidentemente, não acontece só em São Paulo, mas eu conheço a experiência de São Paulo, pois fui presidente do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) no início dos anos 1980. Naquela época, o que se queria era diversificar o patrimônio, mas ainda não se falava na questão do material e imaterial. Trabalhava-se com patrimônio edificado e, eventualmente, com sítios, mas que dissessem respeito não só ao barroco, ao colonial e à produção artístico-cultural do século XIX, mas também à produção artístico-cultural do século XX até a arquitetura contemporânea. O patrimônio foi diversificado, mas não reconceituado. Os termos eram os mesmos: são valores históricos e estéticos de natureza acadêmica, basicamente, para a antropologia, para a história, para a psicologia, para a arquitetura, para a geografia, para a arqueologia, sempre dizendo respeito ao segmento hegemônico da sociedade.
Nessa época, no final dos anos de 1970 e início dos anos de 1980, os movimentos sociais estavam começando a se consolidar. Havia, por exemplo, o movimento pelas diretas e a mudança da constituição em 1988, que foram marcos políticos importantes. A mobilização da sociedade para questões de gestão urbana, saúde da população, desemprego, condições de vida etc., abrangeu também questões da cultura popular.
Meu primeiro trabalho especificamente na área de patrimônio foi a elaboração de uma proposta de revitalização da capela de São Miguel Paulista, uma capela seiscentista tombada pelo Iphan, localizada num bairro popular da zona lesta de São Paulo. Havia uma porção de problemas que deveriam ser enfrentados na prática: como é que se revitaliza um local como esse? Não era mais uma capela, era uma construção vazia no meio de uma praça muito movimentada e barulhenta. A saída foi fazer contato com os produtores culturais da época, pois havia uma ideia de que a revitalização do patrimônio deveria levar à criação de um centro cultural – era quase automático. Eu, então, propus: “porque não usar a capela de São Miguel Paulista como um lugar para que os produtores culturais locais apresentem seus trabalhos?”. Era necessário que o centro cultural funcionasse localmente, senão seria difícil dar certo. Então, fui trabalhar com os artistas populares, consultá-los sobre a ideia de utilizar a capela para essas atividades. Evidente, a resposta foi muito positiva, embora não houvesse grande expectativa da prefeitura de que isso pudesse realmente acontecer. Formou-se, então, o que se chamava movimento popular de arte – não movimento de arte popular. Essa inversão significava uma série de coisas, pois era justamente a busca de formas de expressão mais amplas, universais, tirando a camisa de força da questão local, da história do passado, da origem nordestina etc. – incluindo, eventualmente, tudo isso.
Meu trabalho intelectual se desenvolveu em grande parte em relação a essas questões. Sou antropólogo de formação, cursei Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP), tendo me formado em 1966. De 1966 a 1968 fui professor da USP, na Rua Maria Antonia, de onde saí pelas circunstâncias que todos conhecem. Eu era recém-formando, tinha por volta de 25 anos, e fui, então, convidado a criar o departamento de Antropologia da Unicamp. Um departamento de Antropologia numa grande universidade durante a ditadura! Quando temos 25 anos, nos achamos super-homens e eu concordei. Saí da USP, fui contratado pela Unicamp, mas podia passar dois anos fora do Brasil. Na época, era o que eu mais precisava, porque tinha que me definir em termos de formação intelectual. Passei dois anos na Europa, um ano na França, um ano na Inglaterra, e uma das missões era trazer outras pessoas que pudessem fundar comigo o departamento. Encontrei duas pessoas excelentes, com quem trabalhei por muitos anos e são amigos até hoje: Verena Stolcke e Peter Fry. Nós três começamos, com outras pessoas que foram se agregando ao longo do tempo, a criar um lugar de conhecimento e pesquisa de Antropologia Social na Unicamp, desde cedo muito envolvido com as questões da agenda política. Logo, surgiram estudos sobre questões ligadas a campesinato, gênero, movimentos sociais urbanos, desigualdades raciais, preconceito. 
A área em que eu trabalhei no doutorado chama-se Cultura e Política. Progressivamente, fui me envolvendo com questões ligadas a problemas de grandes cidades contemporâneas e acabei me tornando presidente do Iphan, onde implantei o Departamento de Patrimônio Imaterial. Quando estava fora, eu havia trabalhado bastante em torno dessa questão, inclusive na Constituinte, na redação dos artigos sobre cultura. Na época, eu era presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e lidava com questões importantes: uma era a crítica à censura; outra, o direito à diferença e à diversidade; e uma terceira era pensar a cultura como um todo nos seus múltiplos aspectos. Como já havia uma legislação de direitos ligados aos bens culturais materiais, foi necessário incluir no texto da constituição os bens culturais imateriais, que, conceitualmente, eu critico, mas aceito juridicamente.
Também me envolvi com o Artesanato Solidário. Em 1962, quando entrei na faculdade, conheci a Ruth Cardoso. Ela foi minha professora de Antropologia e nos tornamos grandes amigos. Em 1997, com as mudanças da legislação e por opção pessoal, resolvi me aposentar na Unicamp e estava envolvido em uma pesquisa acadêmica com muitos alunos no sul da Bahia, nas cidades de Porto Seguro, Trancoso e Caraíva. Num belo dia de 1998, a Ruth me telefona e pergunta: “você tem alguma sugestão de projeto para fazermos com a frente de emergência da seca no nordeste?”. Sugeri criarmos um projeto de formação de agentes locais de preservação com as pessoas que recebiam bolsa da SUDENE, que, em vez de ficarem limpando estradas de fazendas de coronéis ou de não fazerem nada, o que também acontecia, fossem qualificados para desenvolver um trabalho que integrasse o trabalho cotidiano de muitos que viviam ali – de consertar casas, de pedreiro, eletricista, encanador, pintor e agricultor –, com a dimensão cultural, valorizando o contexto em que eles vivem.
Pensei em iniciar o trabalho em Icó, uma cidade do sertão cearense tombada pelo Iphan, uma cidade belíssima, do barroco sertanejo do século XVIII, e cuja conservação é dificílima justamente por falta de recursos e de pessoal. Poderíamos conversar com as pessoas que durante a vida inteira ficam consertando canos, sobre o local onde eles estão consertando canos ou sobre o que eles estão consertando. O Iphan e o Ibama deram um grande apoio à proposta. A Ruth achou a ideia boa e continuou falando comigo e com outros nove consultores – éramos dez, eu acho. Foram dez projetos que deram início ao que acabou se tornando o Artesanato Solidário. Nesse momento, nem todos os projetos eram especificamente voltados ao artesanato. Meu projeto era voltado às condições de vida da população afetada pela seca, mas o passo para o artesanato era óbvio e imediato. Aliás, Icó é próxima das cidades de Juazeiro do Norte e Crato, riquíssimas em termos de artesanato e cultura popular no sentido tradicional do termo. 
Fui consultor do Artesanato Solidário, um programa da Comunidade Solidária de apoio ao artesanato para geração de renda, que tornou-se Artesol, e que estabeleceu uma tecnologia social de desenvolvimento local a partir do que as pessoas sabem fazer e do que faz sentido para elas.
Depois desse projeto, coordenei mais dois, um em Divina Pastora, Sergipe, com rendeiras que fazem renda irlandesa, e outro em Juazeiro do Norte, Ceará, com J. Borges e outros artistas que trabalhavam com xilogravura. Os projetos que desenvolvíamos produziam resultados palpáveis e imediatos para aquela população.

No livro O que é Cultura Popular (Coleção Primeiros Passos, n. 36, Editora Brasiliense, 1982), você conta sobre uma experiência em um bairro de periferia da cidade de São Paulo, embora não diga o nome do bairro. Trata-se do bairro de São Miguel Paulista, citado acima?

Isso mesmo. Eu não falei São Miguel Paulista? Nunca tinha me dado conta. Interessante eu não ter citado, porque, naquela época, muitas vezes preservávamos a intimidade ou a identidade do sujeito com quem trabalhávamos – para você ver como é importante o contexto em que escrevemos. Era uma questão de procedimento que, na época, tinha até certo sentido político. Não era nada subversivo, mas talvez eles não quisessem essa exposição.

O que é Cultura Popular? A utilização desse conceito ainda faz sentido nos dias de hoje? 

Esse rótulo começou a ser desfeito naquela época. Eu acho que até tem um capítulo sobre isso no meu livro O que é Cultura Popular, cujo titulo é “Um aglomerado indigesto de fragmentos?”. Aquele livro é o meu best-seller, vende até hoje, há reimpressões, é uma coisa incrível. Ele está um pouco desatualizado, às vezes penso em revisá-lo. 
Todos esses rótulos de classificação social foram muito abalados com o desenvolvimento da política e do conhecimento sociológico e antropológico. Por quê? Primeiro, porque os conhecimentos antropológico, sociológico e psicossocial mostram que as identidades são sempre contextuais e dinâmicas. A volatilidade é, às vezes, um aspecto inerente à formação de identidades em determinados contextos. Há contextos em que as identidades são mais fixas, em sociedades de culturas mais estamentais, por exemplo. E há contextos em que as identidades são muito mais fluidas. Essa fluidez na identificação do que se denomina popular cresceu muito e tornou-se uma questão teórica por razões de natureza política. Aquilo que nos anos de 1960 se pensava como sendo algo coeso, nos anos de 1980 já era claramente fraturado e, de lá para cá, essas fraturas só aumentaram.
Isso não significa que o movimento seja numa só direção, porque, por outro lado, há muitos movimentos de reinvenção da tradição e da identidade. Entre sociedades indígenas, há um movimento de revalorização das diferenças étnicas e de retomada de seu patrimônio cultural, isto é, das tradições que identificavam o grupo, desde a língua até certos rituais. O movimento vai para vários lados, da direita para a esquerda, de cima para baixo, da diagonal para a transversal.
O que se coloca de fato é a produção cultural como processo dinâmico através do qual as identidades são construídas, dissimuladas, camufladas, abandonadas, reencontradas. Como pesquisador, interessa-me entender essa dinâmica. Para os gestores, isso é uma dificuldade. Seria muito mais fácil administrar os grupos sociais se estes vivessem num gueto. Mas, na medida em que todo mundo fala com todo mundo, das maneiras mais impressionantes e mais eficientes possíveis, até graças à tecnologia de comunicação, que potencializou isso, o “popular” tornou-se um conceito muito problemático. Não é um conceito, é uma noção que descreve uma realidade, uma construção ideológica de uma época que hoje em dia já não tem mais lugar.

Você disse que critica o conceito de bem imaterial, mas o aceita juridicamente. Qual é o problema conceitual do termo?

O conceito é, a meu ver, inadequado, e não sou o único que considera isso. Toda a ideia de patrimônio decorre de noções de valor. Por exemplo, decido preservar essa fruteira; vou guardá-la para as gerações futuras, para os meus netos e bisnetos, por conta de seu valor estético; ou, então, por ter pertencido à minha bisavó, isto é, por ter um valor de memória familiar; ou, ainda, por ter tem um valor intrínseco, por ser toda de cristal, prata e platina, incrustada de pedras preciosas; ou, finalmente, por representar uma técnica que já não se pratica, por ser o testemunho de um determinado estágio do desenvolvimento do desenho industrial. São valores que eu atribuo. É só uma fruteira, mas são esses valores que podem, eventualmente, fazer dessa fruteira uma fruteira diferente, que mereça a proteção do Estado e seja colocada em uma vitrine. A comunidade social que decidiu destacar essa fruteira, escrever sobre ela etc., atribui valores que são próprios dessa comunidade. O objeto não tem uma existência ou um sentido próprio.
Vou dar outro exemplo. Olhe esses dois objetos aqui: uma cabaça em formato de homem com umas gavetinhas num pedaço de coco, e um ready-made que alguém achou na praia. Se eu digo que vou preservar esse primeiro objeto porque o considero esteticamente interessante, elimino os conhecimentos técnicos que fizeram que o executante desse trabalho elaborasse umas gavetinhas absolutamente incríveis, e que tivesse não só a ideia de conceber uma coisa como essa, mas de usar essas gavetinhas para guardar as coisas que ele considera importantes, os seus tesouros particulares. Já esse segundo objeto não tem um saber “intrínseco” do executante, vamos dizer assim, mas tem o saber de quem foi capaz de recolher na natureza e conceituar como sendo uma obra de interesse.
Tudo isso são aspectos imateriais. Até agora, não falei dos aspectos materiais, falei apenas a respeito da criação. Se decidíssemos preservar essa prática, isso não significa preservar todos os bonequinhos de cabaça que forem encontrados por aí, mas trata-se de preservar o conhecimento que se tem do trabalho com a cabaça e as condições que levaram o executante a ter a liberdade de pensar: “puxa, uma cabaça, vou fazer um homenzinho”. Essa condição de liberdade para criar é essencial do ponto de vista da produção cultural. Então, quando se diz que o objeto será protegido em seus aspectos materiais ou imateriais, abstraem-se dois lados da mesma moeda, pois as coisas não são intrinsecamente patrimônio, depende do que se diz sobre elas.
Mas não fui eu quem foi à praia, não fui eu quem fez o boneco e não fui eu quem fez a fruteira. Que sentido todos esses objetos tinha para quem os fez? Será que eles os considerariam patrimônio? Bens patrimoniais são expressões simbólicas da identidade. Se nós não estivermos mais falando sobre essas peças, mas estivermos falando a respeito da construção de casas ou de canoas, se estivermos falando a respeito da execução de uma dança, de um canto ou de uma forma dramática tradicional que organiza até o modo pelo qual as pessoas se inserem na comunidade em que vivem, é ainda muito mais importante saber o que aquilo significa para elas. 
Tanto a Constituição brasileira de 1988, quanto a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial referem o patrimônio, pela primeira vez, às comunidades de origem. É considerado patrimônio cultural aqueles bens que guardam uma relação de referência aos grupos sociais formadores da sociedade brasileira. Como a formação de patrimônio é ação que provém da relação do Estado com a sociedade civil, todo o procedimento, para se efetivar, tem que ter o consentimento explícito e informado das comunidades praticantes ou executantes daquela atividade. Então, os produtores desses bonequinhos de cabaça têm que dizer: “estamos de acordo que o Estado torne os nossos bonequinhos patrimônio cultural”. 
Veja que estamos trabalhando na esfera dos valores, e quando se fala dos valores, está se falando no âmbito do imaterial. Podemos estar nos referindo, por exemplo, a uma igreja, um monumento de pedra e cal, ou mesmo a um lugar, como os lugares sagrados de um povo, que podem ser objeto de preservação. A dissociação entre material e imaterial é inadequada, mas dá para entender. É como age, até hoje, toda a legislação de proteção e transmissão de bens, sucessão, herança, que fala sobre bens móveis ou imóveis, mas todos eles materiais. Há leis sobre a transmissão da propriedade do meu apartamento para a minha filha, por exemplo. Isso é regulamentado juridicamente. Mas a transmissão e a proteção do saber-fazer, não. Então, foi necessário criar o complemento. Esse complemento entrou na constituição da seguinte forma: “são os bens de natureza material ou imaterial que guardam uma relação de referência...”. Isso foi importante, porque, a partir daí, criaram-se novos programas de proteção do patrimônio imaterial e passou-se a discutir a questão dos direitos intelectuais associados aos conhecimentos e formas de expressão tradicionais.

Tomando-se dois casos de registro de bens imateriais como patrimônios culturais brasileiros, o Modo de fazer Renda Irlandesa e o Ofício das Paneleiras de Goiabeiras, ambos ligados a artesanato, como você avalia a situação dessas produções após o registro? Qual a importância de tal registro para a preservação dessas produções?

No caso da renda irlandesa de Divina Pastora, é tudo muito recente, elas ainda estão comemorando – até me convidaram para a comemoração, porque foi meu projeto quando eu era consultor da Comunidade Solidária. Agora, estão fazendo o que se chama plano de salvaguarda. Estão pensando em usar também o instrumento da denominação geográfica, porque tem essa particularidade da renda ser irlandesa. É brasileira ou irlandesa, afinal de contas? E o local em que ela é feita tem um nome lindo: Divina Pastora. É renda de Divina Pastora que, na tipologia, é irlandesa. Quando fiz a exposição delas no Rio de Janeiro, convidei o cônsul da Irlanda. Ele ficou embasbacado, ele não conhecia. Na época, comentei com ele: “tem que por as rendeiras irlandesas em contato com as rendeiras nordestinas porque, realmente, há aí uma irmandade que deve ser trabalhada”. Mas tudo isso ainda é muito recente.
No caso das paneleiras de Goiabeiras, sei que elas conseguiram formar uma marca, uma marca que elas imprimem nas panelas. Sei também que elas têm um problema seriíssimo: havia um aterro sanitário ou um lixão perto do barreiro de onde elas retiram a matéria-prima para fazer as panelas. Quando deixei o Iphan, já havia esse problema, e não sei qual foi seu encaminhamento. O fato da tecnologia da produção de panelas ter se tornado patrimônio talvez as ajude nessa luta em defesa do barreiro. Há um centro de tecnologia de alguma universidade que está desenvolvendo uma argila semelhante àquela que elas utilizam para que a prática possa sobreviver ao esgotamento da matéria-prima. A sustentabilidade das práticas patrimoniais é fundamental, e elas sempre dependem da disponibilidade de matérias-primas. Então, que resultados já deu, eu não sei, mas pode dar.

Por um lado, o registro de um bem imaterial como patrimônio cultural afirma a importância da salvaguarda de determinada prática cultural, preservando-se seus elementos essenciais. Por outro, a produção cultural de um grupo é sempre dinâmica, transformando-se ininterruptamente. De que maneira tradição e mudança se articulam nesse processo?

Mesmo no âmbito de uma determinada prática cultural identificada como patrimônio de um grupo, que deve ser salvaguardada com a participação do Estado e de organizações internacionais, um dos mandamentos é o de que ela é dinâmica. Se ela é tão extraordinária que deve merecer atenção especial em nome do interesse público, esse caráter extraordinário deve gerar formas de registro e documentação refinadas, de modo que cada expressão, cada aspecto técnico e cada sutileza sejam registradas a cada momento na sua transformação.
O registro que se faz e a documentação que se produz a respeito de determinada prática cultural em qualquer tempo e lugar é uma coisa, mas a prática, enquanto ação social, não pode ser preservada. Existe até uma proposta museológica de construção de ecomuseus em que pessoas representam determinados papéis sociais compatíveis com o sítio preservado, mas são atores, não é uma comunidade que foi posta num zoológico ou dentro de uma redoma. São pessoas que atuam para mostrar, por exemplo, como se fazia a farinha em certo tempo, como funcionava o maquinário, como as pessoas se vestiam, quais valores tinham. É uma representação, que é uma forma de documentação. Paralelamente, há um processo de constante recriação, transformação e abandono mesmo das práticas culturais.
Em certas sociedades, as pessoas não querem ou não podem mais desenvolver determinadas práticas culturais. Estou fazendo um trabalho na África, e lá, como se sabe, a disseminação do vírus HIV é muito grande. Diversos rituais fundamentais que fazem parte daquelas culturas implicam no contato de sangue. São rituais que dão o sentido da vida da pessoa: o que a pessoa é, em que posição social ela está e aquilo que se espera dela depende dos ritos pelos quais ela passa. Porém, se muitos desses ritos implicam em contato com sangue, e se o sangue, hoje dia, é altamente contaminado pelo vírus HIV, esse fato “extracultural” põe em cheque uma prática vital para aquele grupo. Eles estão tendo que enfrentar o abandono ou a redefinição de práticas importantíssimas de inserção do indivíduo e das comunidades no cosmos por causa de uma questão como essa. Isso acontece ainda mais nos âmbitos que não afetam tão profundamente a identidade.
Por outro lado, há grupos como, por exemplo, os índios Waiãpi, com quem eu estive no ano passado fazendo um trabalho sobre direitos intelectuais. Eles fazem aqueles desenhos que foram proclamados obra-prima do patrimônio imaterial da humanidade. É um trabalho belíssimo feito sobre o corpo. No momento em que essa linguagem gráfica foi proclamada patrimônio, houve a exposição pública disso, o que, evidentemente, fragilizou o direito de propriedade intelectual que o grupo detinha sobre aqueles desenhos. Então, um trabalho de apoio em relação a esse aspecto teve que ser desenvolvido com urgência. Só que os conceitos de propriedade indígenas são outros, é um conjunto de processos complexos. Ou seja, mesmo a preservação leva à mudança. Que os índios continuem se pintando como sempre se pintaram e da maneira como seus ancestrais os ensinaram, tudo bem, só que, ao fazerem isso hoje, eles correm o risco da exposição pública, e, ao se exporem publicamente, terão que ter, no mundo em que nós vivemos, mecanismos de controle sobre sua criação. Isso gera uma discussão sobre o seu próprio conceito de propriedade. Eu perguntava: “como é que vocês vão fazer?”. Um deles respondeu: “nós vamos de borduna para cima”. Tudo bem, pode ir de borduna para cima, mas tem de ter também uma lei, é preciso discutir isso no fórum internacional, porque essa apropriação não é feita só pelo seu vizinho de aldeia em Macapá, é um processo que acontece na Alemanha, na China, no Japão. Como é que se vai controlar? A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) está muito preocupada com essa questão. Assim como os índios Waiãpi do Brasil, vários povos tradicionais estão tendo que criar novos mecanismos de proteção dos seus conhecimentos, das suas práticas culturais, das suas formas de expressão para poder continuar exercendo. Ou seja, tem que mudar para poder continuar igual.

Estamos em junho, mês das festas juninas. Em Caruaru (PE) e em Campina Grande (PB), dois polos reconhecidos como reduto da cultura popular brasileira, estão sendo organizadas grandes comemorações patrocinadas pelo Estado e por empresas privadas, com investimentos na ordem de cinco milhões de reais. Tais comemorações contam com shows de nomes consagrados da música brasileira como Zé Ramalho, Dominguinhos, Elba Ramalho e a banda Calypso, atraindo milhares de turistas. Ao mesmo tempo, as festas buscam legitimar-se recorrendo às referências populares: este ano, Caruaru vai homenagear Mestre Vitalino, enquanto Campina Grande vai fazer ilhas de forró com som de sanfona e zabumba. Com a massificação dos eventos juninos, qual o risco de expressões culturais tradicionais serem relegadas à dimensão do exótico? Como você avalia a interação entre tradição e mudança no momento em que festas populares se transformam em grandes espetáculos?

À medida que você falava, eu pensava no carnaval. Com o carnaval aconteceu exatamente isso, e é interessante notar os aspectos mais permanentes de uma atividade no contexto de todas essas transformações. Não conheço muitos estudos sobre o forró, mas podemos discutir essa questão por analogia ao carnaval. 
Muitas vezes, os vínculos entre os organizadores do carnaval do Rio de Janeiro e seus grupos sociais de origem são mediados por formas de organização que envolvem desde práticas religiosas até o jogo do bicho, por exemplo. Há várias redes sociais que se articulam e dão sustentabilidade social à atividade no lugar em que ela se originou. Os terreiros de Candomblé, por exemplo. Muitas vezes, batidas e coreografias dos passistas ou dos figurantes especiais numa escola de samba remetem às batidas ou sugerem algum aspecto gestual de determinado orixá.
Certas alas das escolas de samba são mais impermeáveis a mudanças como é o caso, por exemplo, da ala da bateria, da ala dos compositores e da ala das baianas. A tradição foi negociando com o mundo em transição, porque não é só o Estado, os meios de comunicação de massa, os patrocinadores, os bicheiros, são todos, o carnaval é uma atividade que está no mundo. Se o mundo muda, a atividade dificilmente vai permanecer a mesma, a menos que ela fosse desenvolvida num lugar absolutamente isolado. E, mesmo assim, ela teria que sofrer algumas mudanças de contextualização, e aí se vê que, ao longo do tempo, desenvolve-se uma relação tensa entre os aspectos mais nucleares da atividade, que são mais permanentes, e os aspectos menos importantes, que são mais permeáveis ao mundo externo.
Certa vez, observei uma festa de São Sebastião no sul da Bahia em que aconteceu exatamente esse tipo de acomodação. É como se a atividade tivesse um núcleo mais duro, embora não totalmente impermeável, e um entorno que vai absorvendo os acontecimentos e ganhando a forma do contexto em que ela se realiza. Mesmo o núcleo duro vai se modificando. Se, por um lado, para fazer parte da bateria de uma escola de samba há algumas pré-condições sociais e culturais, por outro, a bateria deve se limitar às regras dos organizadores do carnaval, ou seja, tem que passar com certa distância, num tempo determinado, num ritmo específico, há um lugar onde ela tem que recuar para dar passagem, depois volta. Isso não é só uma coreografia, isso imprime mudanças na musicalidade e independe da escolha dos executantes. A música tem que ter um determinado tempo, o bailarino tem que dançar de determinada forma, em determinado lugar, depois tem que repetir a coreografia em outro. Tem toda uma cronometragem de espetáculo que não é própria do samba de quadra. Mas o samba de quadra está por trás do carnaval, e, por assim dizer, alimenta as relações mais imediatas tanto do grupo de carnavalescos de uma escola, como sua comunidade de apoio mais imediata. Eles comem feijoada no sábado, cantam um samba juntos, tocam. E montam o espetáculo. 
Quanto ao forró, certamente é possível encontrar aspectos mais permanente e aspectos mais maleáveis, permanências e mudanças. Provavelmente, no interior da festa, pode-se encontrar momentos de celebração da pequena comunidade. 

No livro O que é Cultura Popular, você considera a cultura oficial e a cultura de massa responsáveis por criarem certa ilusão de homogeneidade sobre um corpo social completamente heterogêneo. Você poderia falar um pouco a respeito dessa questão?

Eu acho que, naquela época, talvez eu estivesse muito influenciado pela escola de Frankfurt, sentindo-me um pouco desconfortável com a ideia da perda da singularidade. “Vai ficar tudo igual? Como é possível? Nós temos que fazer alguma coisa!”. Não é à toa que eu fui trabalhar com a questão do patrimônio – “temos que salvar!”.
Trata-se de um processo de disputa, de tensão, de conflito, mas uns são muitos poderosos, têm muitos recursos. Então, até por uma questão de justiça e responsabilidade social, quem trabalha nos órgãos públicos – estou falando como ex-presidente do Iphan e do Condephaat – tem a responsabilidade de contrabalancear, de pôr mais peso do outro lado da balança, de equilibrar, porque não é um jogo limpo, aberto e leal. Naquela época, eu ainda estava um pouco apavorado com essa ideia de que as pessoas podem estar sendo levadas a esquecer suas raízes. Isso já faz quase trinta anos e, de lá para cá, aconteceram milhares de outras coisas.
Certa vez, estive no Acre, numa reunião com os índios Waiãpi, e um deles, que sentou ao meu lado, estava usando o mesmo perfume que eu, o Eau Sauvage, do Dior. E engraçado que se chamava Eau Sauvage! Eu senti aquele perfume e pensei: “será?”. Mas é claro, porque estávamos ao lado da Guiana Francesa. E não tem nenhum problema, ele usa o perfume e se pinta como índio, então fica aquela pintura perfumada, melhor ainda. Ele não esqueceu o que é ser Waiãpi, ele está tirando um bom proveito das coisas boas de cá e de lá. Claro que não podemos ser ingênuos e dizer: “que bom, os índios estão vendo televisão, assistindo jornais, estão sabendo o que está acontecendo no mundo”. Estão sabendo o que está acontecendo no mundo, mas pautado pelas empresas de comunicação, por uma ou duas em particular. É uma visão. Precisariam ter acesso a todas as demais.
Mas acho que não dá para lamentar o compartilhamento de práticas e valores num mundo em que a comunicação intercultural e global cresceu tanto. Hoje em dia, sou capaz de trabalhar em Moçambique morando em Higienópolis, sem problemas. Um pouco antes de você chegar, passei um e-mail para Moçambique, estamos planejando um trabalho de campo. É como se estivesse um numa sala e o outro na outra, só que com uma diferença de cinco horas de fuso horário. E eles estão do outro lado do Atlântico. Não é problema. O problema é quando as pessoas estão impedidas de ser o que imaginam ser, quando se restringe, de alguma forma, a expressão da diferença.