"A nossa própria forma de fazer que traz o turista, o fato de não ter mudado a técnica desde do início lá atrás até agora"
Eronildes Correa de Menezes é artesã e presidente da Associação das Paneleiras de Goiabeiras.
Quando e como você aprendeu a produzir as panelas de barro?
A fabricação da panela de barro, esse trabalho nosso, é um ofício transmitido de geração em geração. É uma tradição que nós já mantemos há muitos anos. Eu aprendi com a minha mãe. Via minha mãe fazendo e fui aprendendo, porque isso já está no sangue, é nato mesmo. Aos 12 anos, comecei a confeccionar minhas próprias panelas.
Primeiro, nós éramos paneleiras de “fundo de quintal”. Depois, formou-se um grupo de mulheres – as mais velhas, como a geração da minha falecida mãe – que lutou para termos um lugar apropriado para trabalhar. Criamos a Associação das Paneleiras de Goiabeiras que, hoje, já tem mais de 20 anos e é a nossa sede. Nesse período, tenho visto que as panelas se valorizaram demais, ficaram conhecidas no mundo inteiro.
Qual foi a importância da criação da Associação das Paneleiras de Goiabeiras?
Foi importante porque a demanda da panela vem evoluindo muito. Aqui, já viramos um ponto turístico.
Como você se tornou presidente da Associação?
Com muita luta. Aqui, temos uma eleição a cada dois anos. Nas eleições passadas, candidatei-me como tesoureira e vinha atuando nessa função. Depois, lancei minha candidatura como presidente, mas acabei perdendo para a minha concorrente. Como ela estava irregular, fizemos uma nova eleição e, hoje, eu estou na presidência.
Como presidente da Associação das Paneleiras de Goiabeiras, quais são as suas principais tarefas?
São muitas tarefas. A presidente é chamada para resolver todo tipo de problema. É preciso colocar a entidade em ordem, reunir e acionar os associados, chamar para as reuniões, esse tipo de serviço.
Quais são os maiores problemas enfrentados por vocês?
Não é assim um “problemão”. Para nós, que somos experientes, fica mais fácil. São problemas fáceis de serem resolvidos.
Dá tempo de conciliar as tarefas como presidente da Associação e a produção de panelas? Você continua produzindo?
Olha, tem de ter muita força de vontade, muita garra mesmo, porque ficamos fora a maior parte do tempo. Eu ainda estou conciliando, consigo trabalhar e fazer o meu dever de casa aqui dentro da Associação. Tenho muitos clientes, então, para mim, é difícil deixar tudo de uma hora para outra. Estou tentando não desagradá-los.
Como se dá a relação com o cliente? Ele compra da Associação ou pode comprar diretamente de uma determinada artesã?
Nós temos um galpão aberto, são várias mesas, vários artesãos, que imprimem nas panelas suas próprias digitais. Então, o cliente que entra pela primeira vez fica à vontade para escolher a peça que quiser. Mas existe outra parte dos clientes, como os meus e os de muitas colegas, para quem nós já vendemos desde a época em que éramos “fundo de quintal”. Tenho um cliente desde quando trabalhava em casa! Ele gosta do meu trabalho e, através de clientes como ele, nós vamos ficando conhecidas e aumentando a clientela.
A panela traz a marca da pessoa que a produziu?
Não marcamos com carimbo, a marca está na digital, está nas mãos. Eu e os meus colegas conseguimos identificar quem fez cada panela, porque o trabalho é totalmente individual. Quando chega uma panela e, às vezes, a pessoa que fez não está presente, eles me chamam ou chamam algum outro colega para ver e fazer a perícia. Então, falamos: “ah, essa aqui é da fulana!”. Alguns dizem que não reconhecem o seu trabalho, mas, no fundo, eu tenho certeza que todos conhecem o seu próprio trabalho, todos conhecem a sua marca.
Além das panelas, vocês fazem outras peças com o barro, bonecos, por exemplo?
Temos aqui colegas que fazem. Eu só sei fazer as panelas, não tenho criatividade para fazer bonecos. Há colegas que decoram as panelas, tenho um primo que faz esculturas e por aí vai.
Em 2002, o Ofício das Paneleiras de Goiabeiras foi registrado como Patrimônio Imaterial no Livro dos Saberes do Iphan. Qual a importância desse registro?
Houve um impacto muito bom, nos tornamos um símbolo do artesanato. Isso foi muito gratificante e divulgou muito a nossa panela.
Com o aumento da demanda pela panela, vocês conseguiram valorizá-la, aumentando o preço das peças?
Nosso preço é acessível. Não é porque viramos um símbolo que triplicamos o preço, nós mantemos o preço de acordo com nossos gastos. Trabalhamos com argila, mas pagamos por ela – ela é nossa, mas tem quem tira. Também tem que tirar a casca do manguezal para as paneleiras poderem trabalhar. Tudo isso tem um custo. A medida que esses custos vão subindo, a panela fica um pouquinho mais cara, mas isso não quer dizer que estejamos com aquele preço que não dê para comprar.
Com o aumento da procura pela panela, as artesãs têm dado conta de toda a produção?
Nessa época de férias, é bem corrido. Além das encomendas particulares, temos que atender os turistas que chegam nesse período. Mas temos que aproveitar. Temos que aproveitar a venda tanto àqueles que já compram conosco durante o ano todo, como àqueles que chegam apenas no período de férias. Queremos atender todo mundo, daí fica uma loucura.
De onde partiu a ação que culminou com o registro do Ofício das Paneleiras de Goiabeiras como Patrimônio Imaterial?
Nós tínhamos um concorrente. Então, para que a produção das panelas verdadeiras se mantivesse viva, o Iphan registrou nosso ofício como patrimônio. O dossiê do Iphan conta a história e fala sobre a nossa preocupação com a panela concorrente. Ela também é do Espírito Santo, mas de Guarapari. Eles fazem de uma maneira totalmente diferente da nossa. A nossa é toda artesanal, e não usamos forno, usamos fogueira livre. Às vezes, o turista que chega e acha que é tudo a mesma coisa.
Quais são as diferenças entre a panela de vocês e a de seus concorrentes? Como o cliente pode saber se a panela é de vocês mesmo?
A nossa é totalmente rústica. A deles já é mais bem acabadinha, bem torneadinha, bem lisinha. A diferença está no formato. Mas depois que ganhamos o titulo de patrimônio, não tivemos mais problemas com os concorrentes.
O que uma artesã deve fazer para integrar a Associação das Paneleiras de Goiabeiras?
Antigamente, só participavam as mulheres da geração. Hoje, se uma pessoa quiser participar, ela entra como ajudante na parte final da panela, fazendo o polimento. Mas, geralmente, não vem ninguém estranho, é o pessoal do bairro mesmo, da família. Quando não é da geração, é da geração do marido, que é casado com outra que não tem nada a ver, mas se interessa pela nossa história, aí entra. A pessoa começa como ajudante e, depois, se ela quiser mesmo, começa a trabalhar com o barro. Temos um documento, chamamos Estatuto das Paneleiras. Ele informa que há um período para começar a fazer as peças, depois há o compromisso de pagar a mensalidade e, finalmente, faz-se o registro e a pessoa se torna um associado.
Como se dá a relação entre o cliente, a artesã que fez a peça e a Associação das Paneleiras de Goiabeiras?
Você entra na internet, vai ao nosso site – eu nunca vi, não sei mexer no computador, até tenho um, mas não sei nem como ligá-lo – escolhe a panela e me telefona: “Eronildes, quero encomendar três peças”. Quando isso acontece, somos eu e você que estamos negociando, a associação não entra, então o dinheiro vai para a minha conta, não vai para a conta da associação. Mas o cliente também pode comprar da associação, e o dinheiro vai para a associação. Normalmente, quando é uma encomenda grande, 1.000, 1.200 peças, o trabalho tem que ser dividido entre todos os associados. É como quando saímos para participar de feiras: não é a presidente que está sendo convidada, é a associação. Como é muita gente, fazemos um sorteio para decidir quem é que vai, dando prioridade àqueles que nunca foram.
Vocês participam de muitas feiras?
Participamos de feiras e de rodadas de negócio em São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife, Brasília, estamos em tudo quanto é lugar do Brasil, e até para fora nós mandamos panelas. Para fora do Brasil, não fazemos a negociação toda, porque há muita burocracia e não cuidamos dessa parte. Temos que ter uma pessoa gerenciando isso para cuidar de toda a papelada. Geralmente, é o próprio cliente que contrata essa pessoa.
Vocês vendem para todo o Brasil e até para o exterior. E a comunidade de Goiabeiras, também consome as panelas?
Consome. Neste bairro, somos criados com peixe, a maré é aqui pertinho da associação. Então, aqui, os moradores consomem as panelas de barro. Agora, o fogão se modernizou muito, mas, antigamente, todo mundo tinha fogão de lenha e eu mesmo já cozinhei muito em panela de barro na minha casa. Da panela do feijão até a panela de fritura, tudo era de barro. E o nosso prato tradicional é a moqueca, então a maioria tem panela, sim, tem que ter.
Em muitos lugares em que se trabalha com matérias-primas naturais, artesãos estão tendo que lidar com o problema de seu esgotamento. Pesquisadores afirmam que o barreiro utilizado pelas artesãs de Goiabeiras está com os dias contados. Como vocês lidam com esse problema?
Olha, vieram muitos pesquisadores, escolas, vi muita pesquisa falando sobre isso, até os próprios órgãos daqui dizem que algum dia iremos perder o barreiro, que não dura para sempre, mas nós não acreditamos, não. Sabe por quê? Essa panela já existe há mais de duzentos anos. Minha mãe, quando começou, começou como eu, novinha, aos 12 anos. Ela morreu com 80. Com 50, ela já havia escutado que o barro iria acabar. Eu comecei aos 12. De uns dez anos para cá, ou mais, eu ouvi que o barro ia acabar. Nós tivemos pesquisadores aqui fazendo entrevistas conosco, fazendo essa mesma pergunta. Até exemplos eles nos deram: “quando você faz o arroz, você vai comendo, comendo e comendo. Não acaba? É a mesma coisa com o barro, vocês estão lá tirando, tirando, tirando, um dia ele vai acabar”. Mas eu sempre respondi que, enquanto eu viver, eu creio que não acaba. Falo isso porque já faz 31 anos que eu faço panelas e o barro ainda esta lá. Você acha que acaba?
É possível.
Eu não estou para ver, mas creio que não acaba. O homem pode destruir, mas acho que o barro não acaba.
Que tipo de danos o homem pode causar ao barreiro?
Estão querendo fazer um parque ecológico lá onde nós retiramos o barro. Se fizerem isso, daí acaba mesmo, não tem mais como tirar barro.
O que vocês tem feito a respeito?
Estamos lutando para que isso não venha a acontecer.
Há uma série de instituições e profissionais de diversas áreas acompanhando, apoiando e atuando junto às artesãs de Goiabeiras. Vocês recebem sugestões para fazerem algum tipo de mudança ou aprimoramento nas peças?
Não. Temos cursos de aperfeiçoamento, mas é gerenciado de outra forma. Fala-se sobre como trabalhar em grupo, como trabalhar com associações, mas nada que venha mexer com a nossa arte. É a nossa própria forma de fazer que traz o turista, o fato de ser um trabalho que vem de geração em geração, de ter não sei quantos anos e não ter mudado a técnica desde do início lá atrás até agora.
Em geral, as paneleiras são profissionais, trabalhando apenas com o artesanato, ou elas têm outros trabalhos, deixando a produção das panelas para as horas livres?
A maioria se dedica mesmo a fazer panelas, o sustento vem da panela. Eu já tive outros tipos de experiência, trabalhei fora, mas foi com a panela de barro que eu me identifiquei mais, porque vai passando de geração em geração e é um trabalho bem respeitado. Agora nos somos Patrimônio Imaterial. Então, para mim, é gratificante ficar só nas panelas.
Sempre falamos em “paneleiras”, no feminino. Há homens produzindo também?
A maioria é mulher. Ao todo, deve ter umas oitenta mulheres e uns quinze homens.
Por que há mais mulheres do que homens?
Porque foram as mulheres que começaram.
Você aprendeu a produzir panelas de barro com a sua mãe e, quando tinha 12 anos, já sabia fazer suas próprias peças. Hoje, as novas gerações também estão aprendendo?
Eles começam a mexer no barro como se estivessem brincando, como eu e minhas irmãs fazíamos. Mas depois, quando vai ver, já estão fazendo as panelas. É uma cultura muita rica dentro do bairro. Não só do bairro, do estado. E pode ter certeza: não para! Se não for o meu filho, será a esposa dele, se não for a esposa, serão os filhos. Eles dão continuidade.