“Uma contribuição indígena à produção de objetos tem a ver com a busca da perfeição e de significados que vão além da materialidade dos objetos”
Luis Donisete Benzi Grupioni é antropólogo e secretário executivo do Instituto de Pesquisa e Formação em Educação Indígena (Iepé).
Foi bastante difícil conseguir marcar
essa entrevista. Apenas nas últimas semanas você esteve em Oslo, na Noruega,
passou por São Paulo, logo foi ao Mato Grosso e, em breve, estará indo para o
Rio de Janeiro. Viagens, seminários, reuniões, enfim, uma vida bastante
agitada. Fale um pouco sobre sua trajetória, da formação até o presente
momento, comentando também um fato curioso de sua biografia: a obtenção do
título de Cavaleiro da Ordem Nacional do Mérito Educativo, por indicação da
Presidência da República.
Toda minha formação acadêmica se deu na
Universidade de São Paulo. Fiz graduação em Ciências Sociais e depois mestrado
e doutorado em Antropologia Social. Porém, essa minha formação não ocorreu de
modo linear: entre um curso e outro, tive diferentes experiências
profissionais.
Ainda na graduação, fui estagiário no
Acervo Plínio Ayrosa, que reunia importantes coleções etnográficas e que,
posteriormente, seria incorporado à coleção etnográfica do Museu Paulista,
dando origem ao atual Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE), que fica na
cidade universitária. Fiz uma pesquisa sobre a coleção Bororo desse acervo,
centrada na identificação clânica dos objetos, uma vez que esse povo indígena,
que vive em Mato Grosso e é famoso na literatura etnológica, marca todos os
seus objetos com insígnias, vinculando-os a segmentos de sua sociedade. Pode-se
dizer que os objetos são brasonados, com padrões reconhecidos socialmente, que
funcionam como as saias dos escoceses. Além desses objetos tradicionais, os
Bororo tinham uma incrível produção de artesanato voltada para venda,
completamente diferente dessa produção voltada para dentro. Estudar essa dupla
produção foi não só minha iniciação na pesquisa acadêmica, mas também na
pesquisa de campo, quando visitei uma aldeia pela primeira vez, e nos estudos e
trabalhos com cultura material indígena.
Meu interesse por objetos indígenas,
coleções etnográficas, museus e exposições iria se desdobrar, adiante, em
diferentes trabalhos, catálogos e exposições realizadas tanto no Brasil quanto
no exterior. Diferentes propostas de trabalho me levaram a conhecer diferentes
povos indígenas, a formar coleções etnográficas e a trabalhar em museus
etnográficos no Brasil e fora daqui, resultando em algumas exposições voltadas
para a difusão de uma nova imagem acerca dos povos indígenas e de suas
produções materiais. Nesses últimos anos, tive a oportunidade de ser curador de
exposições em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Paris e Pequim.
Outra linha de interesse marcante em
minha trajetória diz respeito aos direitos dos índios no Brasil. Tão logo
concluí a graduação, fui trabalhar numa das primeiras ONGs indigenistas em São
Paulo: a Comissão Pró-Índio de São Paulo, que na época coordenava, juntamente
com outras instituições, uma campanha pela aprovação de novos direitos
indígenas na Assembleia Nacional Constituinte, que escreveria a atual
Constituição do país. Nesse trabalho, empenhei-me particularmente em torno da
reivindicação dos índios de usarem suas próprias línguas em suas escolas e que
estas se tornassem mais um veículo de valorização de seus conhecimentos. A
questão do direito dos índios a uma educação diferenciada passou a ser uma
preocupação não só intelectual, mas também militante de minha parte, e venho me
dedicando a ela até hoje, tanto dentro do governo, colaborando com a formulação
de políticas públicas para a educação escolar indígena, como fora, em
organizações da sociedade civil que atuam com comunidades indígenas em projetos
de formação e capacitação, e também na academia, refletindo sobre esses
processos. Vem do reconhecimento de atuação nessa área a medalha de mérito
educativo a que você se referiu há pouco.
No decorrer dessa trajetória, viajar é
parte constitutiva do meu trabalho, na medida em que viagens são, por assim
dizer, os “ossos do ofício” de todo antropólogo. Isso me traz à mente a
primeira frase com que Lévi-Strauss inicia Tristes Trópicos, dizendo que odeia viagens.
Atualmente, sou secretário-executivo de uma organização indigenista denominada
Iepé, e coordeno uma rede de articulação entre organizações indígenas e
indigenistas com atuação na Amazônia. Então, seminários, reuniões e viagens
fazem parte do meu trabalho, assim também como longos relatórios e prestações
de contas, que são algo bem menos interessante de ser feito.
Em que consiste o trabalho do Instituto
Iepé?
O Iepé – Instituto de Pesquisa e
Formação em Educação Indígena é uma entidade da sociedade civil, sem fins
lucrativos, que atua na região do Amapá e do norte do Pará. Foi constituído em
2002, basicamente por antropólogos que realizavam pesquisa nessa região, todos
eles de alguma forma vinculados à USP e comprometidos com demandas indígenas
por formação e capacitação. Nos últimos anos, o Iepé cresceu, conseguiu
congregar mais pessoas, entre elas biólogos e educadores, e ampliou suas
frentes de trabalho. Hoje, o Iepé mantém dois escritórios de trabalho, um em
São Paulo e outro em Macapá.
Temos estabelecido acordos e parcerias
com diferentes entidades da sociedade civil e também com órgãos do governo, que
apoiam nosso trabalho em cada uma de suas frentes. Na área de cultura, temos
uma boa parceria com o Museu do Índio, da Funai, que fica no Rio de Janeiro.
Atualmente, a exposição principal naquele museu, intitulada “A presença do
invisível”, é um dos resultados dessa parceria. Ela apresenta o modo de vida
dos povos indígenas do Oiapoque, com quem trabalhamos há vários anos. E estamos
preparando uma exposição sobre a arte de trançar com miçangas e sementes pelas
mulheres Tiriyó e Kaxuyana, que vivem no Parque Indígena do Tumucumaque, no
Pará.
Outra iniciativa recente foi a
construção de um Centro de Formação e Documentação na terra indígena dos índios
Wajãpi, que realizamos com apoio da Petrobras e do Iphan/MinC. Ele terá a
missão de guardar todo acervo documental que se conseguiu reunir sobre esse
povo indígena e de ser um espaço para realização de oficinas e cursos de
formação para os próprios índios.
De modo geral, a atuação do Iepé nessa
região está voltada para a formação diferenciada de professores e pesquisadores
indígenas, a implementação de propostas de desenvolvimento sustentável e
conservação ambiental nas terras indígenas e no seu entorno, a valorização de
práticas e conhecimentos tradicionais, a capacitação das organizações indígenas
que foram constituídas para representar as comunidades indígenas, a produção e
difusão de informações qualificadas sobre os modos de vida dos índios dessa
região, bem como o monitoramento e proposição de políticas públicas
indigenistas e ambientalistas que impactam essa região, que escolhemos como
prioritária para nossa atuação.
Quais são os principais desafios enfrentados
hoje pelas comunidades e organizações indígenas?
Creio que um dos principais desafios
esteja relacionado à busca de uma relação menos desigual, menos preconceituosa,
menos conflituosa e menos equivocada com a sociedade e com o Estado brasileiro.
Até bem pouco tempo atrás,
acreditava-se que os índios não tinham futuro, que a aculturação era uma
caminho inevitável, que eles desapareceriam como totalidades socioculturais,
integrando-se de modo indistinto às camadas mais pobres da sociedade
brasileira. Contra esses prognósticos, nos últimos anos, acumularam-se
evidências de que a população indígena no país crescia, ao invés de diminuir, e
em ritmo maior que o restante da sociedade brasileira; que práticas culturais
permaneciam vivas e estavam sendo retomadas por diversas comunidades; que as
línguas indígenas, minoritárias e em situação de perigo, continuavam sendo
faladas e começavam a ser utilizadas em processos de alfabetização nas escolas
indígenas; que surgiam novas formas de representação indígena voltadas à defesa
dos interesses das comunidades indígenas. Enfim, muitos sinais foram indicando
que os índios não estavam acabando, nem iam acabar; ao contrário, que iriam
fazer parte do futuro do país, mantendo suas identidades e sabendo manejar seus
sentimentos de pertencimento étnico com seu lugar na sociedade nacional,
enquanto cidadãos brasileiros.
Tudo isso impactou positivamente no
contexto em que se redefiniam os direitos indígenas na Constituição do país e
nas leis subsequentes que foram elaboradas pelo Congresso Nacional. Se durante
cinco séculos a tônica foi promover e estimular a integração dos índios à
comunhão nacional, numa via de mão única para virarem outra coisa, nesses
últimos vinte anos, passamos por uma reformulação jurídica que reconheceu o
direito dos índios de permanecerem como tais, de manterem suas identidades,
suas tradições, seus territórios.
Essa nova concepção tem impactado as
políticas públicas, mas num ritmo aquém do desejado, e aí surgem inúmeros
conflitos, ainda não equacionados. Embora tenha se avançado muito nos últimos
anos no reconhecimento dos territórios indígenas, condição fundamental para a
sobrevivência desses povos, uma grande parcela desses territórios encontra-se
invadida de alguma forma, sendo objeto de cobiça e exploração ilegal que, em
certas situações, geram conflitos violentos. O modelo de atendimento à saúde
indígena está em crise em todo o país e há inúmeros problemas também em relação
à oferta de programas de educação nas terras indígenas. Enfim, as políticas
governamentais seguem deficitárias nessa área.
Há por trás de tudo isso uma visão
arraigada em muitos setores de que os índios atrapalham o progresso do país.
Quando se fala em obras do PAC, os índios são sempre vistos como empecilhos,
junto com a floresta, as leis ambientais etc. Essa é uma visão míope de certos
setores do governo e da sociedade, que não percebem que o mundo mudou, que a
questão ambiental ganhou relevância na agenda mundial, que a mudança climática
é um fato que exige respostas institucionais sérias e que o Brasil tem um papel
importante a cumprir, já que em território nacional está boa parte da floresta
amazônica. Nela moram populações tradicionais, ribeirinhos e índios que há
séculos e por gerações conseguiram interagir de forma não destrutiva com o meio
ambiente. Se olharmos, por exemplo, uma imagem de satélite do Parque Indígena
do Xingu, podemos ver claramente seu desenho, dado pelos limites onde a
floresta foi mantida em pé, e o seu entorno, totalmente devastado.
Os índios estão preocupados com essa e
outras situações. Eles querem discutir seu futuro e o futuro do país, porque
entendem que seu modo de vida e os territórios que ocupam e preservam tem um
papel a cumprir nesse novo cenário globalizado. A questão é: em que medida o
governo e a sociedade brasileira estão preparados e dispostos a encarar as
comunidades e organizações indígenas como interlocutores, como sujeitos
políticos que têm pontos de vista a serem considerados sobre a manutenção da
floresta, sobre os rios, sobre o clima? Até agora, os sinais têm sido
contraditórios.
Qual a contribuição indígena para o
país em termos de produção de objetos?
Num trabalho já clássico, a antropóloga
Berta Ribeiro nos aponta o legado indígena para a cultura e para a sociedade
brasileira como um todo. No que se refere à produção material, esse legado se
compõe de artefatos hoje totalmente integrados ao modo de vida brasileiro,
principalmente na área rural, em diferentes regiões do país, e está associado a
técnicas de processamento de alimentos, pesca, caça, agricultura, conforto
doméstico.
A rede de algodão talvez possa ser
lembrada como uma importante contribuição indígena. O tipiti (espremedor de
mandioca brava) e outros artefatos relacionados ao processamento da mandioca
para preparação de farinha, armadilhas de caça e pesca e instrumentos agrícolas
também. Além desses artefatos, e dos conhecimentos a eles associados, vale
lembrar que temos, e isso não vem de hoje, um consumo seletivo de objetos
indígenas, com fins decorativos. Nessa categoria, entram bancos, cestos,
cerâmica, objetos de madeira, adornos de plumária, que são adquiridos dos
índios e enfeitam casas e ambientes de trabalho, havendo, inclusive, lojas
especializadas para comercialização de produtos indígenas com essa finalidade.
Por fim, penso que uma contribuição
indígena à produção de objetos seja menos tangível do que falamos até agora e
tem a ver com a busca da perfeição e de significados que vão além da
materialidade dos objetos. Muitos objetos indígenas revelam habilidade técnica,
senso estético, e têm significados simbólicos compartilhados socialmente, que
revelam e alimentam concepções de mundo únicas e particulares. Não raro,
objetos indígenas, ricamente decorados, ultrapassam as funções utilitárias para
as quais se destinam. A beleza presente nesses artefatos revela não só o
exercício de uma prática artística, estética, como cria e estabelece relações
sociais entre aqueles que os produzem e aqueles que os utilizam, e isso tanto
em termos de atividades ritual e cerimonial quanto em termos de atividades
cotidianas.
É possível afirmar que, de modo geral,
fazer objetos bem feitos, bem acabados, bem decorados, seguindo padrões
estéticos reconhecidos pela comunidade, é algo muito valorizado em vários povos
indígenas. O prazer estético advém tanto do alcance da perfeição e da destreza
técnica, quanto do reconhecimento comunitário.
Em que medida o artesanato faz parte da
vida e do cotidiano indígena atualmente?
Eu diria que ele integra o cotidiano da
maior parte dos grupos indígenas no país. Ele é exercido de forma ampla e
coletiva, na medida em que os conhecimentos e os meios necessários para a sua
execução são acessíveis a todos os indivíduos pertencentes a uma comunidade.
Isso não impede, evidentemente, que
surjam exímios artesãos, que se sobrepõem e se destacam dos demais pela
habilidade técnica em confeccionar adornos plumários com maestria, em trançar
peneiras, tipitis e cestos, em executar apuradas pinturas nos objetos ou nos
corpos das pessoas, em entoar belas melodias e cantos. Esses indivíduos serão
reconhecidos por essas habilidades, procurados e requisitados pelos demais e
respeitados por esse saber fazer. Porém, penso que o que vale a pena chamar
atenção é que esse saber fazer é um bem coletivo, socializado entre todos, e
desde cedo meninos e meninas são estimulados a aprender técnicas e ofícios para
que se tornem bons fazedores. São também introduzidos no universo simbólico do
grupo a que pertencem, aprendendo decorações, padrões, estilos, seus
significados, os efeitos que eles causam nos objetos e nas pessoas que os usam,
sua vinculação a explicações míticas e históricas. Esses conhecimentos também
são socializados, coletivizados entre os indivíduos que compõem uma dada
comunidade. A produção artesanal permanece prática corrente nas comunidades
indígenas, seja voltada para a confecção de objetos de uso cotidiano, ritual,
vestimentas, de trabalho e para conforto doméstico, seja voltada para
comercialização.
Importante ainda registrar que essa
produção não é algo parado no tempo, mas é dinâmica, volátil, circunstancial,
sofrendo influências diversas da situação de vida atual dessas comunidades. Dou
um exemplo disso. Alguns anos atrás, o IBAMA proibiu a venda de objetos
indígenas que tivessem elementos como penas, dentes e ossos de animais. Isso
teve um impacto enorme, ainda não estudado, na produção material de
praticamente todas as comunidades indígenas no país. Várias delas deixaram de
fazer objetos com esses elementos inclusive para uso próprio. Então, o meio e
as circunstâncias podem operar de diferentes maneiras sobre essa produção
material indígena que, via de regra, é regida por cânones tradicionais,
estéticos, que estabelecem a melhor maneira de se confeccionar determinados
objetos.
O artesanato tem importância econômica
diferente entre as várias comunidades indígenas no país e entre famílias dentro
dessas comunidades: para algumas, representa uma importante fonte de renda,
talvez a única entrada de dinheiro, com a qual adquirem produtos
industrializados que hoje fazem parte do seu dia a dia, como panelas, roupas,
sal, açúcar, pilha etc.
Atualmente, em que medida se dá a
produção de objetos utilitários, usados no dia a dia pelas comunidades
indígenas, e em que medida a produção está relacionada com artesanato para
comercialização? Quais as diferenças nos produtos para uso interno e para o mercado?
Eu diria que, de modo geral, e isso
vale para vários povos indígenas, há uma distinção bem evidente entre objetos
confeccionados para uso cotidiano ou cerimonial, interno, e outros
confeccionados, em escala, para fora, para venda e comercialização. Acho que a
questão da escala da produção e a quem ela se destina é a primeira diferença
entre uma produção interna e uma voltada ao mercado. Outra distinção tem a ver
com o efeito da produção de um objeto. Se voltado para o contexto interno, ele
tende a ter um efeito sobre um círculo determinado de pessoas, uma vez que os
objetos se realizam no seu uso. Entre esses povos, objetos produzem e são
produtos de relações sociais precisas, produzindo efeitos sobre as pessoas e
sobre os demais seres que habitam o universo. Quando voltados ao mercado, os
vínculos que se estabelecem envolvem outros círculos de pessoas, várias delas de
fora das comunidades em que os objetos foram produzidos. Há outra distinção
interessante que diz respeito ao tempo dos artefatos: objetos internos são
perecíveis por natureza, feitos para serem usados, consumidos, apreciados e
descartados. Quando são adquiridos para fins de decoração ou para comporem
coleções de museus, passam do regime do uso e do descarte para o da
preservação, ganhando novos sentidos e funções. Dizendo isso, lembro também que
objetos tradicionais, de uso cotidiano e ritual, feitos e, às vezes, até
usados, também são comercializados, o que evidencia que as distinções entre
produção para uso interno e externo, embora sejam operativas, não são tão
estanques assim.
Algo que chama atenção hoje são as
crescentes iniciativas indígenas de produção voltadas exclusivamente ao
mercado, de vários tipos e modalidades. Os índios do Acre, por exemplo,
confeccionam bancos e esculturas aproveitando madeiras descartadas, com
desenhos, entalhamentos e formas que remetem a seu universo cultural,
produzindo novos artefatos que têm o mercado como destino. Aliam referências
míticas a novas técnicas de confecção e novos formatos, elaborando novos
produtos. Os Baniwa, no Rio Negro, intensificaram sua produção artesanal de
cestos, tradicional em toda a região do Rio Negro, e, por meio de projetos de
artesanato, conseguiram colocá-los à venda em grandes lojas de decoração. Os
Kamayurá do Xingu, por sua vez, diversificaram sua produção de bancos zoomorfos
em madeira, e tem aí uma fonte de renda interessante. O mesmo ocorre com
famílias Guarani, que se especializaram em produzir pequenos animais esculpidos
em madeira.
Sabe-se que as comunidades indígenas se
desenvolvem e passam por mudanças significativas ao longo do tempo. Não se
trata de sociedades a-históricas como, às vezes, costuma-se pensar. Nesse
contexto, de que maneira mudanças pelas quais as sociedades indígenas passam influenciam
sua produção de objetos? Quais objetos nunca deixaram de ser produzidos? Quais o
eram e não são mais? Há novos objetos, criados nas últimas décadas? E quais
aqueles que não eram mais produzidos, mas, por serem emblemáticos, foram
retomados, não mais com fins de uso cotidiano, mas para a comercialização?
Quando falamos em comunidades indígenas
é sempre difícil generalizarmos, pois estamos nos referindo a universos sociais
e culturais muito diversos. Então, para
uma resposta mais precisa à sua pergunta, precisaríamos nos referir a contextos
etnográficos específicos.
O cenário indígena no Brasil hoje é
composto tanto por povos indígenas que estão em contato com segmentos da
sociedade brasileira há mais de trezentos anos, quanto por outros que ainda
hoje tem se recusado a um convívio mais duradouro com segmentos da sociedade
nacional, refugiando-se em rincões distantes da Amazônia e fugindo do contato
permanente. Compõe-se de povos que vivem na floresta, outros que vivem próximo
ao mar, outros no sertão. Há também aqueles que vivem na beira de estradas ou
em bairros urbanos de grandes capitais. Há povos monolíngues em suas línguas
indígenas, outros monolíngues em português, e outros que falam várias línguas
indígenas ou mesmo de outros países, como francês, inglês, espanhol ou
holandês. Em termos de densidade de população, há povos cuja população total
não ultrapassa uma centena de indivíduos, e outros cujo contingente atinge
cifras que passam dos milhares.
Feita essa longa ressalva acerca da
impossibilidade das generalizações, eu poderia dizer que, de modo geral, o que
se valoriza nessas comunidades, no que se refere a sua produção material, não é
necessariamente a inovação estilística, decorativa, de forma ou de técnica, mas
a execução de artefatos bem confeccionados, de acordo com os cânones
tradicionais do que seja um objeto bem feito. Um xinguano, ao confeccionar um
colar de madrepérola, vai estar mais preocupado em preparar as plaquinhas de
caramujo no tamanho retangular, o que será considerado um belo colar, do que em
buscar outra forma para ele. O mesmo ocorre com um bororo a confeccionar um
diadema ou um kayapó confeccionando um cocar: o apelo da tradição se sobrepõe
ao da inovação.
Mas isso não quer dizer que ela não
ocorra. Como você mesmo salientou em sua pergunta, são sociedades históricas
que lidam com a mudança, com os novos tempos. Os Bororo, por exemplo,
substituíram a penugem de mutum em seus adornos plumários pela penugem branca
de pato, dada a escassez do primeiro. Mas mantiveram a prática da colagem de penugem,
e de penugem branca, no ápice das retrizes de arara de certos ornamentos. E,
para completar sua resposta, a cerâmica é uma produção que tem se perdido com
grande rapidez e, de um modo geral, em muitas comunidades indígenas país a
fora. Outra mudança impactante é a substituição do arco e flecha por
espingarda, levando muitas comunidades a confeccionarem esses objetos só para a
venda, com menos refinamento e detalhes, já que sabem agora que eles terão
apenas função decorativa.
Então, se cabe uma generalização aqui,
eu diria que objetos que passam a ser substituídos por bens industrializados
são os que mais facilmente deixam de ser executados, ou passam a ser feitos
somente para atender o interesse do mercado por objetos indígenas.
Designers e instituições que trabalham
com comunidades de artesãos com o objetivo de inserir seus produtos no mercado
por meio de interferências nas peças sempre encontram muitas dificuldades para
trabalhar com comunidades indígenas, tanto no âmbito das próprias comunidades
como no das instituições ligadas a elas. A que isso se deve?
Acho que uma primeira resposta, e que
valeria para muitas situações, diz respeito, basicamente, a dificuldades de
comunicação. Dificuldades de se fazer entender, de conseguir transmitir para
essas comunidades indígenas o interesse por sua produção material, por seus
estilos, por seus padrões gráficos. São sociedades que se regem por uma ordem
diversa da nossa. Lévi-Strauss, e vários outros antropólogos, já demonstraram
que a arte não é um fenômeno separado nessas sociedades. Diferentemente do Ocidente
– em que saberes e práticas são compartimentalizados, em que ciência desliga-se
de religião, religião desliga-se de economia, economia desliga-se de relações
de parentesco e, como mostra Lévi-Strauss, a arte se desliga de todo o resto –,
nessas outras sociedades de tradição ameríndia, digamos, tudo isso encontra-se
junto, organizado por uma lógica transversal, que articula todos os campos da
vida social, de modo que o que podemos chamar de arte é algo exercido
coletivamente, uma vez que os conhecimentos e os meios necessários para a
expressão estética são compartilhados por todos, e a sua apreciação não é
restrita a um determinado segmento, mas fica sob o controle de toda a
comunidade. Nesses contextos, padrões gráficos, estilos, técnicas e
procedimentos são transmitidos entre gerações, sendo um bem coletivo. A ideia
de uma apropriação individual lhes é, via de regra, estranha. Tudo isso cria,
evidentemente, questões que precisam ser enfrentadas por aqueles que têm
propostas de trabalho em conjunto ou de uso de elementos indígenas em suas
produções. Por isso, parece-me que um primeiro e difícil problema esteja na
capacidade de se fazer entender, de se comunicar adequadamente propostas de
trabalho.
Uma segunda dificuldade diz respeito a
reconhecer que estamos lidando com lógicas distintas: a do designer e a da
comunidade, que precisam encontrar algum ponto de conexão e interesse mútuo.
Veja o designer. Ele trabalha, via de regra, individualmente, criando algo que
será vinculado a seu estilo, personalidade, criatividade; enquanto a produção
indígena, como vimos, é algo coletiva, comunitária. Portanto, são duas
produções com lógicas, procedimentos e finalidades diversas, que precisam ter
um ponto de articulação para dar certo. Não acho que isso surja naturalmente e
nem só do interesse de uma das partes. É preciso mais. É necessário superar
idealizações e trabalhar seriamente para que essa parceria possa acontecer.
Uma terceira dificuldade diz respeito
ao uso de conhecimentos ou de elementos que requerem pagamento de direitos
autorais. Respeitar a legislação, coisa que não costuma ocorrer, e não
confundir direitos coletivos como sendo ausência de titularidade ou domínio
público é indispensável.
Mas, de modo geral, penso que as
comunidades indígenas buscam se relacionar com outros segmentos da sociedade
nacional e, pelo menos na minha experiência profissional, nunca encontrei
dificuldades em apresentar propostas de trabalhos e conseguir a permissão e o
envolvimento de comunidades indígenas. Dou um exemplo: na Mostra do
Redescobrimento, quando resolvemos apresentar uma sepultura Yawalapiti como uma
instalação, com os troncos do Kwarup ornamentados, encontramos uma boa acolhida daquela
comunidade. Apresentamos a proposta, eles se organizaram, confeccionaram os
objetos, pagamos por eles, trouxemos do Xingu para a Oca no Ibirapuera, dois
índios nos ajudaram a montar e foi um sucesso. Lembro que Elio Gaspari
entrevistou um deles, perguntou se eles achavam que os brancos entenderiam o
que era aquilo. Um dos índios sorriu e disse que achava que não. Para mim, a
resposta dele mostra que ele tinha entendido a nossa proposta de exposição. Dou
um outro exemplo, mais recente. Estamos trabalhando com as mulheres Tiriyó e Kaxuyana,
que moram no Parque Indígena do Tumucumaque, no norte do Pará. Junto com elas, documentamos
os padrões gráficos que utilizam na tecelagem de artefatos de miçangas e
sementes de maramará, realizando oficinas em que elas discutem essa produção –
que inclui saias femininas, cinturões masculinos, colares e adornos em geral
com os quais enfeitam seus corpos, de seus maridos e filhos. Discutimos a
proposta de organizar uma exposição sobre esse trabalho e formas de incrementar
a sua produção e venda para fora, no mercado de arte e artesanato brasileiro. Estamos
caminhando bem nesse processo, com aceitação e envolvimento não só das
mulheres, mas também dos caciques das aldeias. Então, acho que há espaços, sim,
para propostas em conjunto, que precisam ser apresentadas, discutidas e
acordadas, tomando os artesãos indígenas como interlocutores, seriamente. Acho
que há muito a ser construído nesse terreno.
A necessidade de sobrevivência leva
comunidades indígenas a produzir objetos culturais tradicionais para a venda à
sociedade não indígena. Muitas vezes, ao serem inseridos em novos contextos, os
objetos são resignificados e acabam ganhando novos usos. Assim, por exemplo, um
cesto utilizado em rituais religiosos, cheio de simbolismos para uma cultura
indígena do interior do Amazonas, pode tornar-se um cesto para roupa suja na
casa de uma família de classe média em uma metrópole como São Paulo. Como você
e as comunidades indígenas enxergam essa questão?
Acho que as coisas são do jeito que
você as descreveu. Os objetos têm sentidos próprios dependendo do contexto em
que eles estão. Acredito que essa foi uma das lições de Duchamp com seu urinol
invertido, nos mostrando como um objeto da vida cotidiana pode ser transposto e
apreciado no campo das artes. Penso que estamos falando da mesma coisa com o
seu exemplo.
Os objetos no sistema indígena de
produção e circulação de bens estão investidos de significados que se
transformam quando são deslocados de contexto. Alguns perdem densidade, outros
ganham. Veja, por exemplo, o que ocorreu com um dos últimos mantos Tupinambá
existentes na Europa: ele virou patrimônio nacional do povo dinamarquês. Não é
incrível que um objeto indígena, confeccionado no século XVII e levado do
litoral brasileiro se torne um patrimônio nacional de um povo europeu? Então, temos
as duas coisas: objetos que perdem significado e ganham outros sentidos e
funções, como o do cesto para jogar roupa suja, e objetos que são investidos de
novos significados. Inclusive, creio que essa é a ponte que nos permite apreciar
objetos indígenas como objetos de arte. Eles não foram feitos com essa
intenção, nem para essa finalidade, mas os efeitos que eles podem nos causar,
de admiração, de beleza, de nos intrigar, de serem inusitados, belos etc. é o que
nos permite incluí-los em galerias, museus e em exposições de arte. Alguém já
escreveu que o sentido da obra de arte não está nela, mas no nosso encontro com
ela.
Sobre o que pensam as comunidades
indígenas a respeito disso, não saberia lhe responder, mas não acho que, por
enquanto, tal questão possa despertar nelas maiores inquietações.
Há alguns anos, a pintura corporal dos
índios Wajãpi tornou-se patrimônio imaterial da humanidade e, com isso, adquiriu
grande visibilidade. A exposição e o reconhecimento de seu valor gerou muitos
interesses na exploração comercial dessa pintura por parte de empresas, dentro
e fora do Brasil. Como os índios têm lidado com o problema da propriedade
intelectual de suas criações?
Uma das razões pelas quais os Wajãpi,
do Amapá, resolveram submeter os padrões de sua arte gráfica e os saberes orais
a ela associados como obra-prima do patrimônio oral e imaterial da Humanidade,
assim proclamada pela Unesco em 2003, foi justamente a dificuldade que
encontravam para proteger essa arte do uso indiscriminado para fins comerciais
e publicitários.
Não sem espanto, em diferentes
situações, os Wajãpi viam seus padrões gráficos em camisetas, publicações,
ilustrações, sendo apropriados sem nenhuma referência, sem nenhum
reconhecimento de sua autoria e propriedade. Ao mesmo tempo, os jovens dessa
comunidade recusavam-se a se pintar, pois sentiam preconceito e discriminação
por parte de não índios. Como lidar com essa contradição? Foi para enfrentá-la
que esses índios se lançaram na realização de um inventário de sua arte gráfica;
e que órgãos como o Iphan e a Unesco a reconheceram, no sentido de apoiá-la
para que pudesse ter continuidade e seguisse sendo transmitida entre gerações.
Os Wajãpi, conforme relatos da antropóloga Dominique Gallois, que tem acompanhado
e assessorado esse processo, têm constantemente manifestado que seu interesse
em registrar essa arte visa garantir o interesse das novas gerações sobre
práticas e conhecimentos que, se não mantiverem sua cadeia e suas formas
tradicionais de transmissão, serão perdidos.
Isso coloca uma questão interessante:
os processos são fundamentais quando falamos de patrimônio imaterial, mais até
que os produtos. Eles têm mais a ver com a continuidade entre gerações do que
com fórmulas fixas. Isto está presente em instrumentos jurídicos nacionais e
internacionais que visam proteger os patrimônios materiais e imateriais. Nesses
textos, vemos termos como, por exemplo, “propriedade intelectual” e “salvaguarda”.
São conceitos novos para os índios e também para muitos que trabalham com eles,
mas fazem parte de um novo cenário, em que os índios e suas organizações
representativas têm atuado em defesa de seus interesses.
Resumidamente, e acompanhando uma
reflexão da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, que vem estudando esses assuntos,
há que se equacionar a questão de assegurar as formas culturais de produzir e,
ao mesmo tempo, assegurar direitos intelectuais e critérios de remuneração dos
produtores e detentores de patrimônios culturais. Esse é um tema novo ainda,
mas que tem gerado debates interessantes e coloca, claramente, limites para a
exploração comercial desimpedida de padrões gráficos, de cantos, de
conhecimentos indígenas.
É importante superar a ideia do índio
como o “bom selvagem”?
Penso que é mais que necessária a
superação dessa dicotomia bom e mau selvagem, índios puros, vivendo na Amazônia
versus índios já contaminados pela civilização, aculturados – embora eu reconheça
que essa dicotomia encontre ainda muito apelo na mídia e na sociedade em geral.
O quadro de desinformação e preconceito
que cerca a compreensão da questão indígena no Brasil é grande e precisa ser
superado. Ainda há pessoas que creem que os índios são todos iguais, falam
tupi, e cultuam tupã e jaci. Nosso sistema escolar e nossos livros didáticos
contribuem para essa desinformação, na medida em que os povos indígenas são
quase sempre apresentados como pertencentes ao passado, em função dos feitos do
colonizador, operando com a noção de índio genérico, ignorando a diversidade
que sempre existiu entre esses povos e generalizando traços culturais próprios
de um povo para todos os povos indígenas. As universidades, o governo, as
próprias organizações indígenas e indigenistas têm um papel importante a
cumprir no sentido de informar melhor a sociedade como um todo sobre a
realidade indígena hoje no país.
Os índios são cidadãos brasileiros, estão cada vez mais cientes e conscientes de seus direitos, participam em comissões de governo que discutem políticas voltadas às suas comunidades e estão preocupados com o que ocorre em seus territórios e o que acontecerá com suas futuras gerações. Penso que o Brasil como um todo precisa redescobrir os índios na atualidade e perceber que eles são muito diferentes do que a nossa literatura romântica consagrou e bem diversos do que nossa pintura histórica registrou. Um país que desconhece segmentos do povo que o compõe terá muita dificuldade para superar desigualdades e intolerâncias.