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A CASA E O MUNDO

ARTIGO

DO PADRÃO DO GOSTO

Publicado por A CASA em 29 de Setembto de 2009
Por David Hume

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A grande variedade de gosto, assim como de opinião, existente no mundo é muito óbvia para ter escapado à observação de qualquer um. Homens do conhecimento mais limitado conseguem notar diferença de gosto no estreito círculo de suas relações, inclusive onde as pessoas tenham sido educadas sob o mesmo governo e imbuídas desde cedo dos mesmos preconceitos. Mas aqueles que conseguem alargar seus horizontes para contemplar nações distantes e épocas remotas ficam ainda mais surpresos com a grande inconsistência e contrariedade. Tendemos a chamar de bárbaro a tudo que se afasta bastante de nosso próprio gosto e apreensão, mas logo vemos o epíteto de reprovação se voltar contra nós. E a maior arrogância e auto confiança se vêem por fim surpreendidas ao notar uma igual segurança por todos os lados e, em meio a uma tal contenda de sentimentos, hesitam em se pronunciar positivamente a seu próprio favor.

(...)

É natural para nós procurar um padrão de gosto, uma regra pela qual se possa reconciliar os vários sentimentos dos homens, ou ao menos garantir uma decisão confirmando um sentimento e condenando o outro.

Há uma espécie de filosofia que corta qualquer esperança de êxito nesse empreendimento e representa a impossibilidade de chegar a um padrão de gosto. A diferença entre juízo e sentimento, afirma-se, é muito grande. Todo sentimento é correto, porque não tem referência a nada além de si mesmo, e é sempre real onde um homem tenha consciência dele. Mas nem todas as determinações do entendimento são corretas, porque têm referência a algo além de si mesmas, a saber, dizem respeito a fatos reais e nem sempre são conformáveis àquele padrão. Dentre mil opiniões diferentes que os homens possam ter sobre um mesmo assunto, há uma, e somente uma, justa e verdadeira, e a única dificuldade é fixá-la e assegurá-la. Ao contrário, mil sentimentos diferentes suscitados pelo mesmo objeto, são todos eles corretos, porque sentimento algum representa o que existe realmente no objeto. Ele apenas marca uma certa conformidade ou relação entre o objeto e os órgãos ou faculdades da mente, e se essa conformidade não existisse realmente, jamais poderia haver sentimento.

Beleza não é nenhuma qualidade nas coisas mesmas. Ela só existe na mente que as contempla, e cada mente percebe uma beleza diferente. Uma pessoa pode, inclusive, perceber deformidade onde outra é sensível a beleza, e cada indivíduo deve aquiescer ao próprio sentimento, sem pretender regular os dos demais. Procurar a beleza ou a deformidade reais é investigação tão infrutífera quanto pretender estabelecer o que é o realmente doce e o realmente amargo. O mesmo objeto pode ser tanto doce quanto amargo, dependendo da disposição dos órgãos, e o provérbio estabelece com justiça que é infrutífero disputar sobre gosto. É muito natural, e até bem necessário, estender esse axioma ao gosto mental, tal como ao gosto físico; e assim o senso comum, que tantas vezes diverge da filosofia, especialmente a do tipo cético, concorda, ao menos neste exemplo, em pronunciar a mesma decisão que ela.

Mas ainda que esse axioma, ao se converter num provérbio, pareça ter obtido a sanção do senso comum, há certamente uma espécie de senso comum que a ele se opõe ou, ao menos, serve para modificá-lo e restringi-lo. Quem afirmasse que Ogilby e Milton, ou Bunyan e Addison, são iguais em gênio e elegância, passaria por defensor de uma extravagância tão grande quanto se sustentasse que um monte de areia é mais alto que o Tenerife, ou que uma lagoa tão extensa quanto o oceano. Ainda que se possam encontrar pessoas que prefiram Ogilby e Bunyan, ninguém dará atenção a um gosto como este, e não temos escrúpulos em declarar que o sentimento desses pretensos críticos é absurdo e ridículo. O princípio da igualdade natural entre os gostos é então inteiramente esquecido, e se o admitimos em algumas ocasiões, quando os objetos parecem próximos de uma igualdade, ele se mostra um paradoxo extravagante, ou melhor, um palpável absurdo, quando se comparam objetos tão desproporcionais entre si.

(...)

(...) Ainda que os princípios do gosto sejam universais e, se não inteiramente, ao menos quase os mesmos em todos os homens, são poucos os qualificados para julgar qualquer obra de arte ou estabelecer o próprio sentimento como padrão de beleza. Os órgãos da sensação interna raramente são tão perfeitos para permitir pleno desempenho dos princípios gerais e para produzir um sentimento correspondente a esses princípios. Ou carregam o fardo de algum defeito, ou estão viciados por algum desarranjo e, desta maneira, despertam um sentimento que pode ser declarado errôneo. Quando o crítico não tem delicadeza, julga sem nenhuma distinção e só é afetado pelas qualidades mais grosseiras e palpáveis do objeto: os toques mais finos não são notados e levados em conta. Quando não é auxiliado pela prática, seu veredicto é acompanhado de confusão e hesitação. Quando nenhuma comparação foi empregada, as belezas mais frívolas, que antes mereceriam o nome de defeitos, são o objeto de sua admiração. Quando se encontra sob a influência do preconceito, todos os seus sentimentos naturais são pervertidos. Quando lhe falta bom senso, não é qualificado para discernir as belezas do propósito e raciocínio, as mais elevadas e excelentes. A generalidade dos homens trabalha sob umas ou outras dessas imperfeições, e por isso se observa que, mesmo durante as épocas mais polidas, um verdadeiro juiz nas artes mais finas é um caráter tão raro: só um senso forte, unido a um sentimento delicado, aprimorado pela prática, aperfeiçoado pela comparação e despido de todo preconceito pode dar aos críticos um direito a esse caráter valoroso; e a confluência de tudo isso no veredicto, onde quer que ela se encontre, é o verdadeiro padrão de gosto e beleza.

 

Tradução: Márcio Suzuki e Pedro Paulo Pimenta. Os direitos autorais desse texto pertencem à editora Iluminuras, a quem agradecemos pela disponibilização dos trechos acima para publicação em nossa biblioteca virtual.