"Na parte do acabamento, tem de ter um
toque feminino"
Alcides Ribeiro é artesão de viola de cocho, filho do mestre Caetano Ribeiro dos Santos.
Os homens de sua família confeccionam
violas de cocho há, pelo menos, quatro gerações. Quando e como você aprendeu o
ofício e começou a produzi-las? Qual a influência do seu pai, o mestre Caetano
Ribeiro dos Santos, e a do mestre Manoel Severino nesse processo?
Desde criança, sempre ajudei meu pai,
mas não me sustentava da viola de cocho. Fui trabalhar em outro campo e ela representava
apenas 20% da minha atividade. Depois que casei, já dependia de sua confecção para
o meu sustento. Até hoje, mantenho a minha família com a viola de cocho e
passei a viver exclusivamente disso.
Manoel Severino é um companheiro do meu
pai. Nós três trabalhávamos juntos. Na época, eu tinha uma Saveiro e corria
atrás da matéria-prima para que eles pudessem fazer a viola de cocho. Eu
trabalhava de segunda a sábado. No sábado, do meio-dia para a tarde, e no
domingo, eu saia no mato extraindo a madeira, que é a matéria-prima que
utilizamos.
Qual a origem da viola de cocho? Desde
quando ela é produzida no Mato Grosso?
A viola de cocho tem cerca de 280 anos.
Ela existe desde a fundação de Cuiabá. Conta-se a história de que, com a vinda
dos Bandeirantes, alguém trouxe um instrumento parecido. Quando esse homem foi
embora, levando o instrumento, o pessoal daqui copiou e fez um instrumento
chamado viola de cocho.
O nome viola de cocho faz referência à técnica
de escavação da tora de madeira. É a mesma técnica utilizada para fazer o cocho
do curral de boi, usado para alimentar o gado, e a canoa de cocho pantaneira.
Qual a diferença entre a viola de cocho
e as violas comuns?
A viola de cocho tem um som muito
especial, tendo sido classificado por pesquisadores como som de veludo. Hoje,
músicos da MPB se encantam por esse som suave, “de veludo”. E a viola de cocho
é genuinamente brasileira. Ela é original mesmo daqui.
Além de produzir as violas, você também
toca esse instrumento?
Sim, toco os ritmos Cururu e Siriri.
Vamos colocar nesses termos: eu sou aprendiz. Os mestres mesmo são os mais
velhos.
Qual o volume de sua produção de violas
de cocho?
Hoje, faço de trinta a cinquenta peças
por mês. Isso varia muito. Tem vezes em que trabalho dois meses só produzindo e,
no outro mês, faço só o acabamento. Hoje, a cultura se expandiu muito, vendo
para todos os estados. Tenho um ajudante que estou treinando para que seja um
novo artesão. Minha esposa e meus filhos trabalham comigo e me ajudam no
acabamento.
A produção da viola de cocho é um
ofício tradicionalmente masculino. Por quê?
Porque você trabalha com uma tora de
madeira e vai ter que entalhar e escavar usando facão, usando só ferramentas
cortantes. De repente, vai haver um dia em que vai ter mulher fazendo viola de
cocho, por que não? Mas é um trabalho pesado. Na minha família, a mulher entra
na parte de acabamento. Aí tem de ter um toque feminino.
É importante que o acabamento seja
feito por uma mulher?
Eu faço um acabamento bem feito, mas
prefiro que a mulher faça, pois ela tem uma delicadeza a mais. Tem de ter uma
sensibilidade no acabamento, porque o que vende, hoje, é a qualidade. Às vezes,
por conta de um detalhezinho no acabamento, o cliente recusa a viola.
O que é mais importante na hora de
fazer uma viola de cocho? Que ela seja bonita, ou que ela toque bem, isto é, que
ela soe bonito?
A ressonância da viola de cocho é o
mais importante. Não adianta ser uma viola de cocho bonita na aparência se, na hora
do uso, em que você precisa da ressonância e da afinação, ela não está
boa. É igual violão. Nem todos os violões que são fabricados são bons. O pesquisador
Roberto Correia uma vez me fez uma pergunta: “porque a cada dez violas que você
faz, as dez são bonitas, mas três não tocam bem?”. É uma coisa inexplicável, mas
todos os instrumentos de corda têm isso. Quando você compra um violão, tem de ir
até um mestre que entenda do instrumento para ver se ele não está empenado. Um violão
pode estar com o acabamento perfeito, e tudo o que se fez em um, se fez no
outro, mas um deles não dá um som bom. Você afina, mas o instrumento não segura
a afinação. Tem vários detalhes que fazem com que a viola não fique boa de ressonância.
Mas também já aconteceu de ela não estar bonita de aparência, mas estar bonita
de som. Assim como tem algumas pessoas que falam “eu quero que ela esteja
bonita de tudo, boa na aparência e boa de som”, têm outros que dizem “eu quero
que seja mais barato e não quero tocar nada” – aí você faz a viola que não tem
uma ressonância 100%, e vende até com desconto. O problema é que, de repente,
eu mando uma dessas para São Paulo e um músico fica sabendo que fui eu que fiz.
Por isso eu peço para o dono da viola explicar a situação.
As violas de cocho estão muito presentes
em manifestações culturais de natureza religiosa ou não no Mato Grosso e no
Mato Grosso do Sul. Atualmente, esse instrumento é mais utilizado para a
diversão ou para a devoção?
A viola de cocho é utilizada para tudo,
mas começou pela devoção. Até os anos 1940 e 1950, antes da chegada da
televisão, o que divertia o povo, principalmente o povo ribeirinho – nós temos
aqui treze municípios beirando o rio Cuiabá – era o Cururu, o Siriri e o
Rasqueado, o famoso limpa banco, como nós chamamos aqui.
Sinto-me privilegiado de gostar dos
três tipos de festa. O Cururu é tocado com viola de cocho e ganzá, que é como
um reco-reco feito de bambu entalhado à faquinha e tocado com osso. No Siriri,
entra o mocho, ou tamboril, feito com uma armação na qual fica o couro de boi.
No Rasqueado, você pode entrar com o mocho, com o ganzá e com a viola de cocho,
mas o ritmo muda. Cada ritmo tocado nessas manifestações é diferente um do
outro. Eu gosto de tudo que envolve a viola de cocho.
No tempo das festas religiosas, a
devoção ao santo começava com o Cururu, tocado com a viola de cocho. No final,
ficavam só aqueles que fizeram a festa – a comunidade, o povo da casa – e se falava
assim: “vamos fazer um Siriri agora”. No Cururu, dançam apenas os homens; no Siriri,
dançam homens e mulheres. Então, no final da festa, juntava-se os cururueiros e
o pessoal da casa e começávamos a tocar. Vinham as cozinheiras e todas as
pessoas que trabalharam na organização da festa para fazer valer o seu trabalho,
festejando. Alguns que gostavam de Siriri ficavam também. Eu sempre participei
dessas festas com os meus pais. Aqui em Cuiabá, viajamos longe, porque a
tradição é muito grande, abrangendo todo o estado.
Hoje em dia, tais manifestações ainda
são celebradas?
Hoje, temos a Federação Mato-grossense
de Cururu e Siriri. Fizemos um mapeamento e descobrimos grupos de Cururu e Siriri
que não conhecíamos. Percebemos que é ainda mais rico do que pensávamos. Por um
tempo, essas manifestações quase foram esquecidas. E o que aconteceu? Trabalhamos
muito nesses últimos dez anos e as resgatamos. Hoje, temos a maior manifestação
cultural do estado, o Festival de Cururu e Siriri. Há 43 grupos de
Siriri e mais de duzentos cururueiros. Tem até aqui na região aqueles que chamamos
de “os gaúchos”, o pessoal do Sul. Eles vieram para plantar soja, mexer com
agricultura no norte do Mato Grosso e já estão aderindo à nossa cultura, aprendendo
a dançar o Cururu e o Siriri. Isso é muito importante e muito bonito.
Parte das manifestações do Cururu e do
Siriri no Mato Grosso deixou de ser organizada pela comunidade, tendo sido substituída
por festas grandiosas, promovidas pelo poder público. Nesse caso, são festas
com hora marcada para começar e terminar, com um número restrito de grupos
participantes e tempo definido de apresentação. Como você avalia essa nova
situação?
Quando a festa é feita pelo poder
público, não dá para colocar todo mundo. Somos duzentos cururueiros. Temos 143
grupos e a festa dura três dias. Não dá para atender a todos. Por noite, das
19hs às 23hs, o máximo que dá para fazer são seis ou sete apresentações de trinta
minutos. Mas ainda existem festas que não têm nada a ver com o poder público,
nos interiores e aqui dentro da cidade mesmo, porque, às vezes, a festa de Cururu
vai a noite inteira, com os cururueiros tocando e cantando. No Siriri, como eu
falei, dança-se à vontade. Não tem padrão nem regulamento a ser seguido. É à
vontade, como é o tradicional no povo da região da baixada cuiabana.
Como a difusão da cultura pop
influenciou as manifestações culturais tradicionais?
Houve um ponto negativo. Nós quase
chegamos a desanimar, mas, hoje, isso está sendo revertido. Temos avós,
bisavós, netos e bisnetos, todos dançando na mesma roda, juntos. O poder
público, principalmente aqui no município, investiu muito na cultura. E o que
aconteceu? As crianças, vendo suas mãe e avós dançarem, também estão dançando.
Houve mudanças nas manifestações
culturais atuais em relação às do passado? E na viola de cocho?
Com certeza muda. Um pouco vai mudando,
não restam dúvidas quanto a isso. É como no caso do fogão. Antes, cozinhávamos
no tacuru, em que se juntavam três pedras, sobre as quais eram colocadas a
panela e as lenhas. E foi mudando. Primeiro, chegou aquela chapa de ferro,
aquele fogãozinho com chaminé, tudo de barro. Depois, veio o fogão de ferro –
de lenha, mas de ferro –, em que já se tem o forno para assar. Finalmente, hoje,
temos o fogão de gás e o micro-ondas.
Com a viola de cocho e com a nossa
tradição é a mesma coisa. A mudança atingiu nossa cultura. Hoje, a viola costuma
manter o chitão, aquele tecido todo floreado, mas tem grupos que, de vez
em quando, já estão usando outro tipo de tecido. Nós também aprimoramos um
pouco a qualidade. Tenho uma relíquia aqui, uma viola de cocho mais velha – ando
comprando violas de cocho do interior, em outros municípios, para colecionar e
ver como cada artesão fazia, pois cada um tem seu jeito. Antigamente, a viola
de cocho era rústica, fazia-se só no facão, não tinha lixa industrializada, usava-se
folha de embaubeira ou quebrava-se uma garrafa e fazia-se a lixa do caco de
vidro, raspando a madeira até chegar à espessura que soltasse a ressonância.
Algumas mudanças facilitaram a produção da viola de cocho, mas ela não deixou
de ser rústica. Não abandonamos o facão, o enxó e o formão.
Devido
às leis ambientais e à praticidade do uso de novas matérias-primas, os
materiais tradicionalmente utilizados na confecção da viola de cocho têm sido
substituídos. Tradicionalmente, a colagem das partes da viola era feita
usando-se o sumo da batata sumbaré ou o grude feito da vesícula natatória de peixes
(poca); hoje, adotam-se colas industrializadas. Da mesma forma,
tradicionalmente, as cordas da viola eram produzidas a partir de tripa de
animais; hoje, foram substituídas por linhas de pesca. Como a comunidade tem
lidado com essas transformações?
As tripas do ouriço-cacheiro, aquele
porco-espinho, são muito boas para as cordas da viola. Ou as do macaco bugio.
Os antigos usavam assim, mas, com o tempo, foi mudando, ficou a corda de nylon.
Não se pode matar os animais, e é bom que não deixem mais matar os bichos. Além
disso, o fio de nylon dura mais tempo. A unha acabava cortando a corda feita de
tripas de animais, arrebentando-a muito facilmente.
Houve
mudança na sonoridade da viola com o uso do fio de nylon em vez de tripas de
animais?
Mudou um pouco, deu um timbre mais forte na
viola. Então, mudou para melhor. Todas as mudanças foram ótimas.
Os
mais velhos concordam com isso?
Concordam, tanto que tocam até hoje.
A forma da viola de cocho varia de
acordo com quem faz?
Cada artesão tem um estilo de fazer.
Uns fazem com cabo curto, outros fazem com cabo mais comprido. Eu fazia três
tipos de tamanho: pequena, média e grande. Agora, fiz um quarto tipo para
atender um músico. Antigamente, no tempo do meu pai, era só viola de corda
pequena que tocava aqui na região do Pantanal. Mas, devido à procura de músicos
que tocavam músicas populares brasileiras, nós fomos adaptando e fazendo num
tamanho um pouquinho maior. Eu fiz um novo molde e coloquei em prática. Hoje,
ela é muito bem aceita no mercado.
O modo de fazer viola de cocho foi
registrado no Livro dos Saberes do Iphan e tornou-se Patrimônio Cultural do
Brasil. Qual a importância desse registro?
A viola de cocho é um patrimônio nacional.
Eu estive trabalhando junto com o Iphan nesse registro – se eu não me engano, foi
o terceiro bem imaterial a ser registrado. Com isso, hoje, temos a salvaguarda
do modo de fazer viola de cocho. Mas, até agora, não temos um registro do
Cururu e do Siriri. Estamos tentando, junto à associação daqui, registrar a
nossa dança. Muitas danças de outros estados já estão registradas, mas não o
Cururu e o Siriri, que são tocados pela viola de cocho.
Sobre o registro do modo de fazer viola
de cocho, já tem quatro anos que a gente vem trabalhando com o Iphan, mas não
gostei do jeito que fizeram. Tudo era patrocinado pelo governo do Mato Grosso
do Sul, estado em que há alguns artesãos de viola de cocho, nas cidades de Corumbá
e Ladário, próximos à divisa com a Bolívia. O que aconteceu? Todo o trabalho
técnico foi feito aqui em Mato Grosso, mas não colocaram nossa voz. Na hora de
falar dos artesãos, disseram que eram todos de lá. Na época, eram seis artesãos
no Mato Grosso do Sul. Hoje, só têm dois. Fiz um mapeamento e descobri que em
Mato Grosso nós temos mais de quarenta artesãos de viola de cocho. Além disso,
aqui já tem muito jovem querendo aprender a fazer, estou até dando oficina de viola
de cocho. Então, eu fui um dos que reclamaram.
E o que houve em seguida?
Dissemos que se fosse daquele jeito, não
iríamos fazer. Eu, meu pai, Manoel Severino e outros cururueiros reclamamos e, então,
eles chegaram à conclusão de que estavam errados. Aí mudaram o registro: “o
modo de fazer viola de cocho predomina em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul”. Eu
ainda queria que colocassem o seguinte: “predomina 90% em Mato Grosso e 10% em
Mato Grosso do Sul – apenas em Corumbá e Ladário”. Tanto que, hoje, nós temos uma
manifestação enorme em nosso estado e lá ficou esquecido. Estou em contato
direto com pessoas do Mato Grosso do Sul e até aperfeiçoei um menino de lá que
esteve mais de um mês comigo fazendo viola de cocho. E ele comentou: “depois
que voltei ao Mato Grosso do Sul, não fiz viola, não tem respaldo”. Aqui em
Mato Grosso é diferente. Aqui você tem respaldo do poder publico. Às vezes, é
possível até conseguir a doação da madeira. Lá está difícil para trabalhar. Nem
matéria-prima está tendo.
Para
os artesãos, qual foi o impacto do registro do modo de fazer viola de cocho
como Patrimônio Cultural do Brasil?
Tudo o que você pensar foi muito bom para os
artesãos. Em termos de preço, produção, divulgação. A viola de cocho saiu muito
na mídia. Você está em São Paulo? Vou contar uma história. Quando trabalhava na
casa do meu pai, um dia eu estava na oficina e tocou o telefone: “eu queria
falar com Alcides Ribeiro dos Santos”. Então, eu perguntei: “quem gostaria de
falar?”, porque, geralmente, quando fala o nome completo é cobrador. Mas não
era. “É João Viena, de São Paulo; olha, Alcides, há cinco anos, eu procurei um
contato com você em Cuiabá e não consegui, ninguém te conhece, só na Secretaria
de Cultura deram o telefone do senhor”. É assim mesmo. Santo de casa não faz
milagre. É mais fácil ser conhecido fora do estado do que aqui. A situação
melhorou muito com o registro. Hoje, vendo muitas violas em São Paulo.
As
vendas são maiores para cidades de fora do Mato Grosso?
Com certeza. Eu vendo quase tudo para fora.
Aqui, vendo muito para o governo estadual e municipal – os presentes que o
prefeito e o governador dão são sempre violas de cocho. É um instrumento que
ganhou importância nacional e internacional. Agora, Cuiabá é sede da Copa do
Mundo do Brasil, e a viola de cocho será nosso patrimônio. Com a Copa, a
produção de viola de cocho vai aumentar muito.
Atualmente,
quais as maiores dificuldades enfrentadas pelos artesãos de viola de cocho?
A maior dificuldade está na produção, pois
não estamos conseguindo mão de obra; não estamos conseguindo mais artesãos para
ajudar. O trabalho é cansativo. O jeito de fazer viola de cocho original é
manual. Quem faz, hoje, bonitinho, 100% bonito, está fazendo industrializado. Se
você quiser a viola de cocho original, venha a Cuiabá e procure o Alcides, que
a dele é original, feito de um único tronco de madeira maciça, tudo artesanal. É
um jeito muito delicado de fazer. Tem mais dificuldades? Tem. Só que ela tem
mais valor, tem mais reconhecimento. Tudo o que é feito manualmente é especial.
Já mudamos o jeito de fazer, mas não devemos chegar a esse ponto de
industrializá-la.
Os saberes estão sendo transmitidos às novas gerações? Os mais jovens têm interesse em
aprender o ofício?
Certa vez, estive em Brasília num congresso e me perguntaram: “há novos artesãos de viola de cocho surgindo em Cuiabá?”. Eu respondi: “olha, que eu saiba, eu sou o mais velho artesão fazendo viola de cocho em Cuiabá”. Em seguida, continuei: “sou o mais velho artesão porque os mais novos estão com 60, 70, 80 anos de idade”. Todo mundo riu. Na verdade, ninguém mais está querendo fazer viola de cocho, porque ela é rústica. É cansativo, tem que procurar madeira no mato, andar a pé, tem muito bicho peçonhento, muitas dificuldades para enfrentar. Só nós mesmo que gostamos. No meu caso, fui aprendendo a gostar desde criança. Até estamos ensinando os mais jovens, mas, hoje, é mais fácil mexer no computador do que em facão e enxó.