Jum Nakao é estilista e diretor de criação.
Em 2004, você apresentou a coleção A Costura do Invisível, em desfile
realizado na São Paulo Fashion Week. Ao final, as modelos, que vestiam roupas
de papel, rasgaram seus trajes em plena passarela. Creio que você já esteja
cansado de falar sobre esse assunto, mas é inevitável. Tratava-se de um
“desfile-manifesto” como, às vezes, se costuma chamar?
É uma pergunta recorrente mesmo. Por
mais que o tempo passe, as pessoas sempre pedem para que eu fale sobre esse
desfile. É que como aquela coisa de banda: tem que tocar o hit, senão é
como se não tivesse o show.
Acredito que o desfile tenha sido muito
mais uma performance do que um manifesto. A ideia era discutir certas questões.
Nesse momento de tanta velocidade, tanta produção, vemos um grande vazio de
conteúdo, tanto por parte de quem produz como por parte de quem consome. Hoje,
as pessoas passam por tudo e se relacionam muito superficialmente com as
coisas. A ideia era mostrar, primeiro, o quanto essa relação está apenas na
superfície, não ganha profundidade, não ganha densidade. Por isso houve o
rasgo, para mostrar que a superfície era o que menos importava num trabalho. Em
segundo lugar, a ideia era mostrar que alguns valores devem ser repensados. Atualmente,
as pessoas pensam muito naquilo do qual é feito, em qual é a marca, no quanto
custa e esquecem que o principal não está no do que é feito, mas no como
é feito, por que é feito, com que intenção é feito.
Isso surgiu de uma inquietação coletiva,
não era uma preocupação específica em relação à área de moda. Eu sempre
trabalho com uma equipe muito grande e vejo esses questionamentos nas áreas de
design, música, artes. Tudo se formou em função de um comércio alicerçado em
valores que eu critico. Então, fiz esse projeto para que esses valores fossem
repensados.
Em 2007, você apresentou uma instalação
em Curitiba composta por réplicas em miniatura dos vestidos de papel e ratos que
iam, aos poucos, consumindo-os. Quais eram os objetivos dessa instalação?
Essa instalação chamava-se Revolver. Revolver no sentido de
remexer lá no fundo do baú e fazer com que aquilo que estava sedimentado voltasse
à tona, resgatando uma série de coisas que considerávamos importante.
Fiz o projeto em conjunto com o
cenógrafo Julio Dojcsar e com Kiko Araújo, da área de cinema. Tudo começou com
um convite da primeira-dama do governo do Paraná, Maristela Requião, que cedeu
o espaço do museu Oscar Niemeyer para uma retrospectiva da minha carreira. A
ideia era colocar dentro do museu os principais projetos que eu tinha realizado
até o desfile de papel, mas achava que era um pouco cedo para falar em
retrospectiva – ainda tenho que produzir mais. Então, ela sugeriu que ao menos
eu fizesse uma menção ou incluísse alguma referência ao desfile de papel, que
ela considerava memorável.
A partir disso, fizemos um projeto em
que trabalhávamos com questões como: o
que é um museu? Qual o papel do
museu? Interessava-nos o fato do museu preservar a memória, manter viva uma
história e passar sensações para a sociedade através de seu acervo material. Começamos
a trabalhar a ideia de fazer com que o museu testemunhasse a própria
deterioração do seu acervo. Queríamos problematizar a questão da materialidade e
do valor atrelado ao suporte.
Então, ocupamos um museu que era quase
do tamanho de um campo de futebol society com o vazio, basicamente eram só
projeções. Além disso, havia uma pequena maquete, um simulacro. Dentro desse simulacro,
nós colocamos o real, mas em escala reduzida: bonecos de trinta centímetros de
altura vestindo réplicas das roupas feitas para o desfile de 2004. Havia
câmeras captando imagens dessas peças, e essas imagens eram projetadas em
grande escala no museu. Ou seja, tínhamos, dentro do simulacro, o real, e,
dentro do real, o virtual.
Para criar a sensação de deterioração,
substituímos o efeito do tempo por algo físico: os ratos, que para manter as
presas num determinado tamanho, devem roer o tempo inteiro. Os ratos passaram a
roer todo o conteúdo do simulacro do museu, e aquilo era projetado em grandes
dimensões.
Tínhamos um paredão de seis metros de
altura por trinta metros de largura, ou seja, havia ratos do tamanho de um
ônibus passeando dentro do museu e as pessoas interagindo, porque quando elas olhavam
para a maquete, eram projetadas também, já que a estrutura era transparente. Então,
quando alguém olhava para a maquete, era como se estivesse olhando o museu de fora;
quando sua imagem era projetada na parede em grandes dimensões, era como se a
pessoa estivesse dentro do museu, sendo observada por um gigante. Havia uma
inversão dos papéis o tempo inteiro, era ver e ser visto, e aquilo tudo ia
desaparecendo gradativamente, dia a dia.
Trabalhávamos com um software
que fragmentava esse tempo, então tínhamos imagens do primeiro dia mescladas
com imagens do último dia e, com isso, o tempo se tornava também uma variável
nesse projeto: havia projeções dos vestidos intactos do primeiro dia, ele se
deteriorando rapidamente, voltando. E o som também. O músico Paulo Beto criou
um som para cada momento. Era uma sinfonia do acaso, tanto de imagens quanto de
som.
Atrás desse grande paredão, colocamos
prateleiras como se fossem de supermercado, nas quais expusemos garrafas
contendo líquidos coloridos e stickers de ratos. Assim como os ratos
estavam destituindo o patrimônio do museu, as pessoas podiam ir até esse
supermercado e levar embora o que elas quisessem – só que por um preço de obra
de arte. No último dia, como em qualquer liquidação, reduzimos o preço de tudo
e as pessoas, como os ratos, esvaziaram esse acervo.
Também havia a participação da fotógrafa
Sandra Bordim. Para que o visitante chegasse ao andar da instalação, ele tinha
que subir diversos pavimentos. A cada pavimento, apresentávamos réplicas do
andar anterior, com diferenças muito sutis. Então, o visitante subia um andar e
parecia que ele estava no mesmo lugar, porque o andar era quase exatamente
igual ao outro. Tínhamos, num andar, fotos de pessoas vestindo roupas e, no
outro andar, fotos dos bonecos vestindo as roupas. Então, havia essa sensação
de déjà vu: “pô, eu subi um andar, mas não mudou nada”. No entanto, se o
visitante olhasse atentamente, perceberia que as coisas mudaram: não são mais
pessoas reais, são bonecos que simulam as pessoas reais. Até que o visitante
chegava ao andar seguinte, em que tudo isso se expandia espacialmente para todo
o museu.
É necessário repensar a produção em
áreas criativas como moda e design?
Temos que repensar todo esse sistema,
porque ele está muito baseado em comércio de objetos. No final, estamos falando
simplesmente de conferir valor ao produto, tanto em moda, como em design. O que
se pensa quando se está produzindo em qualquer área de design é em como
comercializar esses bens, em como inseri-los no mercado. Não se trata de repensar
o sistema, mas de reiterar aquilo que já existe como valores da sociedade: o ter,
o comprar, o status do objeto. Quem faz um produto acaba reforçando
todos os valores que, para mim, já se tornaram obsoletos e apontam para um fim
desgraçado. É simplesmente uma substituição dos protagonistas de uma história
que eu não quero mais continuar. Tenho que pensar em como criar uma nova
história.
Por que as pessoas não deixam de pensar
em como criar mais um objeto ou mais uma roupa e passam a pensar em como
propiciar à sociedade e ao entorno novos valores? As pessoas acham que precisam
consumir um objeto. Eu acho que isso desumaniza a sociedade e a própria
humanidade, porque o objeto é algo mecânico, estático, que precisa ser
vivificado através de outros valores que não o preço, a disponibilidade
ou a indisponibilidade. Temos que pensar em como criar uma sociedade
melhor e, a partir daí, no que podemos produzir para que essa sociedade seja
diferente, e não simplesmente continuar a alimentar um sistema que já
demonstrou ser extremamente falho e insuficiente para as necessidades da
humanidade como um todo. Essa mudança de protagonistas – o “novo designer”, o “novo estilista” – é o que menos
importa. Gostaria que surgissem não novos protagonistas de uma história velha,
mas uma história nova que tem necessidade dos protagonistas antigos. É uma
mudança total de lógica.
O grande problema é que as escolas não
estão fomentando essas mudanças. Elas continuam a alimentar a manutenção desse
sistema falido. As escolas não produzem novas escolas de pensamento, e são poucos
os meios que se empenham em procurar novos modelos, eles continuam procurando o
mais novo do modelo velho.
Uma coisa que eu sempre digo: se você
quer que transformações aconteçam, você precisa formar novas pessoas, pessoas
diferentes. O problema é que nada está sendo feito nesse sentido. Não
precisamos de mais jornalistas, de mais designers, de mais médicos, de mais
engenheiros. O mundo precisa de outro formato. Temos que pensar em como criar
valores que não sejam mais mediados simplesmente por objetos. Aí entra tudo
nessa coisa mais intangível, menos material. Não precisamos mais do objeto?
Precisamos. Mas esses objetos vão ser simplesmente o meio, a forma que vai nos
conduzir à compreensão de uma mudança, e não de uma sedimentação daquilo que
temos vivenciado nos últimos séculos. São novos valores por trás dos valores
materiais.
Na abertura de seu site, há um texto
que termina da seguinte forma: “há um possível ainda invisível no real”. Isso
vai ao encontro dessa perspectiva que você acabou de apresentar?
Sim, porque o real é visto por uma
única perspectiva. Mas esse real que embrutece também pode sensibilizar as
pessoas, tirá-las desse estado de anestesia e passividade mórbida que temos em relação
a tudo o que o sistema propõe.
Temos que pensar em como atribuir novos
significados ao real. Prego que uma elite pensante – os artistas, a crítica – não
pode estar desvinculada da realidade, senão se torna aquela coisa utópica e
totalmente descompromissada, estabelecendo-se uma lacuna entre quem pode fazer
com que as pessoas enxerguem aquilo que é invisível e a grande massa.
É necessária uma mudança do consumidor
– que é a grande massa. Portanto, isso não pode ficar restrito a um círculo de
intelectuais. Percebo que, muitas vezes, tudo fica dentro de quatro paredes, e
lugares em que existem tantas pessoas pensando, muitas vezes são os lugares
mais miseráveis.
Atualmente, você participa do projeto Floresta
Móbile, trabalhando com comunidades de artesãos em diversos estados do Brasil.
Trata-se de uma tentativa de buscar novos caminhos para a produção?
Desde 2004, deixei de produzir as
roupas e parei de me concentrar em produtos, porque percebi que havia um espaço
enorme entre o que eu estava fazendo e as mudanças que via como necessárias. Se
continuasse a produzir, mediando minha relação com as pessoas através de
objetos e produtos, teria que modular meu discurso por um determinado sistema
de valores, até para que meu próprio negócio sobrevivesse. Comecei a perceber
que, dessa forma, eu não estava colaborando de maneira eficaz para que as
mudanças que eu defendo acontecessem, muito pelo contrario, eu reiterava o
objeto em si como fim, e o fato de você comprá-lo, como uma atitude de redenção
e suficiente por si.
Isso, para mim, não estava correto, até
porque eu ainda percebia uma incapacidade de compreensão. Os valores já estavam
cristalizados, e não havia como criar uma leitura diferente daquilo que eu
estava produzindo através desse processo de relação com o objeto no mercado.
Era como se estivesse querendo dizer algo dentro de um sistema em que a
compreensão não era possível. Era como se tivesse usando o meio errado para
tentar fazer que uma transformação acontecesse. A partir do momento em que me
inseria dentro de um meio errado, reforçava o errado e não provocava a mudança
que sentia como necessária. Então, se tornava um pouco utópico, desconectado da
ênfase que pretendia dar. É a mesma coisa que você tentar falar sobre a questão
do consumo e produzir produtos de consumo. Continuar a produzir dentro do mesmo
sistema não é a melhor forma de propiciar uma mudança da perspectiva em relação
ao consumo e a esses valores. Para questionar o sistema, eu teria que pensar em
um novo sistema, e não questioná-lo dentro dele mesmo. Se não concordo, tenho
que fazer algo fora e não dentro.
Imaginei que isso seria mais eficiente
através da educação. Como falei, educação é fundamental. Se você quer que
transformações aconteçam, precisa formar e transformar pessoas. Essas pessoas
vão ser as responsáveis pelas mudanças. Então, foi como se eu saísse desse
sistema em que estava inserido e partisse para outra estratégia. Essa nova
estratégia foi a de transformar pessoas, formando-as através de oficinas, transferindo
toda uma filosofia e um conhecimento técnico e instrumentalizando-as para
pensarem e produzirem diferente.
Tenho feito isso há cinco anos. Faz
cinco anos que estou empenhado em projetos como o Floresta Móbile, projetos com
comunidades carentes, projetos em universidades no Brasil e fora, fazendo com
que as pessoas repensem a produção. As pessoas são como vírus. Um vírus só não
faz efeito. Precisávamos criar um vírus de grandes proporções que atingisse todas
as pessoas e, com isso, os valores mudassem. Então, passei a educar. Em cinco
anos, devo ter educado, aproximadamente, cinco mil pessoas. Dou aulas em
diversas faculdades. Consigo formar, por ano, mil pessoas diretamente. Se as
cinco mil pessoas que eu formei conversarem com mais cinco pessoas, são 25 mil
pessoas começando a pensar em mudar as coisas.
Mas acho que, ainda assim, não adiantou
muito. Adiantou um pouco, mas não o suficiente. Olhando ao redor, vejo que as
coisas ainda não mudaram. Com o desfile de papel, eu me sacrifiquei – foi um harakiri
mesmo. Harakiri é o ato em que os samurais cortam a própria barriga, é o
suicídio. Eu me abri e falei: “está tudo errado, preciso mudar”. Desde então,
faz cinco anos que estou tentando. Fiz muitos projetos, intervenções em museus,
intervenções em espaços públicos. Tudo isso foi legal, mas ainda não foi
suficiente.
No ano que vem, talvez eu mude um pouco
a estratégia e volte a fazer “produtos vírus” para mudar o mercado. Agora,
estou dentro de uma área que não tem muita tangência com o público – passei a
formar os interlocutores e mediadores. Sinto que talvez seja importante voltar
a ter essa comunicação direta e essa relação mais próxima com o público. Estou
pensando em como inserir novamente objetos no mercado, mas objetos que tragam toda
essa carga que estou querendo atribuir, todos esses novos significados.
Não há o risco de se recriar tudo aquilo
que você acabou de criticar?
Não, porque o sistema é totalmente
diferente: é tudo de graça. É tudo a partir do que as pessoas alimentam, da
transformação. Trata-se de trazer de volta à vida aquilo que se tornou apenas
um índice, uma memória de um passado. É fazer com que aquilo se reinsira na
sociedade, para que as pessoas percebam a insignificância dos objetos. Então, teoricamente,
não vai me custar muita coisa: vou usar o que você me dá para lhe devolver, e, para
me ajudar a produzir, vou utilizar a mão de obra que qualifiquei durante todos
esses anos. Em relação às comunidades que eu capacitei, não significa que, por estarem
capacitados, eles não precisem de renda – com certeza eles precisam. Mas não
vai ter aquele custo onde existe um especulador.
Não estou preocupado com a indústria, estou
preocupado com a sociedade. Durante o tempo em que nos preocupamos com a indústria
e com a economia, na forma como ela existe hoje, nos esquecemos da sociedade. Começamos
a nos preocupar com a indústria, com os bancos, com um monte de gente que não
interessa, e a sociedade acabou se desumanizando e se tornando uma máquina. A
partir do momento em que insiro essas comunidades, estaríamos pagando pelo seu saber,
e não para especuladores que não produzem nada. É um projeto novo, talvez
aconteça no ano que vem. Ainda não sei como viabilizar, mas é uma forma que
estou imaginando para interferir mais nessa cena toda.
Com isso, você pretende readquirir sua relação
de proximidade com o público?
Sim, porque me afastei. Fiquei pensando
muito em formar pessoas, mas acho que caí naquela questão: qualifico uma elite
pensante, mas essas pessoas talvez não tenham esse espaço de atenção que eu
tenho e não estou usando. Então, talvez volte a usar esse espaço.
Você já afirmou que o objetivo de seus
projetos de capacitação era formar uma “guerrilha” de pessoas. Tal guerrilha não
poderia ser responsável por fazer a ligação entre as ideias de transformação e a
massa de pessoas da sociedade?
A ideia era que todas essas pessoas que
eu formei fizessem isso, mas vejo quantas dificuldades elas enfrentam, até de
acesso para chegar a essa grande massa. Tudo é dominado por meios que
necessitam de recursos e, por mais que essas pessoas estejam empenhadas, acho
que existe algo maior do que elas. Há um desequilíbrio de forças muito grande.
Como vou fazer com que as pessoas parem
de comprar carros se o sonho das pessoas é ter um carro? Ando de bicicleta,
faço o que posso, estimulo as pessoas a não andarem de carro, porque acho
ridículo. Até quando sinalizo onde estou, costumo dizer: “tem uma Doblô
parada na frente”. O carro virou, na verdade, uma proteção para que ninguém
entre com o carro aqui na porta da minha garagem – sabe aquela coisa de gangue?
Deixo o carro parado como se fosse uma estátua, uma escultura. Uso o mínimo
possível. Mas como é que você vai estimular as pessoas a não comprarem mais
carros? Como é que você vai estimular as pessoas a comprarem produtos feitos
por comunidades dentro da sua própria sociedade, sendo que todo mundo quer
levar vantagens e comprar produtos baratos feitos na China? Como é que você vai
estimular as pessoas a não comprarem pela marca, mas por aquilo que está por
trás de determinado produto? Se você pensar na estrutura da sociedade em que
nós vivemos hoje em dia, é difícil.
Sinto que essa guerrilha de pessoas que
formei ainda não tem ferramentas suficientes. Elas estão batalhando, só que
precisam de algo um pouco mais impactante para acordar uma nação. Como é que
vou acordar um país desse tamanho, dentro de um universo tão sedimentado em
valores consolidados geração após geração? Foi daí que eu decidi “voltar às armas”,
saindo um pouco da parte estratégica. Eu pensei: “não adiantou, não está
adiantando”.
Se nós não tivermos rapidamente um case
que dê certo, as pessoas vão desistir. Sabe quando tudo deu errado, todas as
nossas estratégias, tudo aquilo em que nós acreditamos demonstrou ser
insuficiente diante de um mundo como o que nós vivemos hoje? Isso quer dizer
que o mundo está certo? Acho que não. Por isso estou pensando em como
interferir mais diretamente no processo, não somente através das pessoas, mas
criando uma estratégia como essa que mencionei.
Nos trabalhos que envolvem o encontro
entre estilistas e comunidades de artesãos, como estabelecer uma boa relação
entre as partes? Você é professor universitário, e vai até comunidades de
artesãos para desenvolver projetos com pessoas cuja escolaridade costuma ser muito
baixa. Como fazer um bom diálogo para que não se estabeleça uma relação
desigual?
Ficando quieto. Você deve ir lá ouvir,
e não falar. Você deve estimular a reflexão no sentido das pessoas se olharem
no espelho e enxergarem os valores que elas têm – valores que não percebem,
talvez por conta da baixa autoestima.
Geralmente, essas comunidades são
extremamente ricas em termos de saberes e de conhecimentos. Em um lugar desses,
eu ouço, principalmente, e faço com que as pessoas enxerguem o que elas são
capazes de fazer e o que elas têm. As pessoas de fora, quando veem uma
comunidade no interior do Brasil, estão interessadas nas potencialidades desse
local. Não interessa o que eu acho que elas têm de produzir, interessa o que
elas podem produzir. Eu, simplesmente, faço uma ponte.
O que muitas vezes acontece com essas
comunidades é que elas acabam produzindo aquilo que se consome de forma
genérica. O mundo em que vivemos apara as arestas, unifica, globaliza tudo
dentro de uma única tendência, e as pessoas passam a produzir aquilo que se
consome em qualquer lugar, aquilo que é digerido e aceito, até por uma
dificuldade em inserir mudanças, em fazer com que as pessoas se sensibilizem
com coisas diferentes. Atualmente, as pessoas se sensibilizam com coisas iguais,
e isso é um grande problema. As coisas se tornaram absolutas. Isso é um
absurdo, não há espaço para as diversidades.
Sempre falamos em diversidade, mas isso
não existe. Se você for pensar, aquilo que é diferente se tornou tão marginal
hoje em dia que só sobrevive raramente. É o que acontece com essas comunidades,
é o que acontece com essa guerrilha de pessoas que eu tenho formado. É difícil
sobreviver dentro da sua existência e de seus valores.
Por onde passo, percebo que essas
comunidades estão sucumbindo, desistindo. Eu estimulo e procuro valorizar, até
porque, se eu impuser, estarei reforçando esse estado atual de coisas que não
acredito. Então, fico quieto, simplesmente oriento em relação aos processos, às
técnicas, para que elas apliquem e aprimorem aquilo que já sabem fazer.
Na verdade, procuro olhar o que elas
produzem, a forma como trabalham, e tento inserir ruídos que sejam silenciosos.
É difícil. Em várias comunidades que visitei, vi resultados desastrosos. Pessoas
de fora vão lá e falam: “olha, seu produto precisa disso para ser
comercializado”. E isso, muitas vezes, não faz parte daquela cultura. Aquilo
que era para ajudar acaba se tornando um ingrediente ao qual elas jamais terão
acesso, a não ser nessa oportunidade em que um orientador esteve ali, o que vai
gerar uma dependência. A essência da inserção do produto das comunidades na sociedade
não é o ingrediente externo, mas o ingrediente interno. É isso o que elas têm
que buscar.
Uma das características mais marcantes
do trabalho das comunidades artesanais que o difere do trabalho industrial é a
produção em pequena escala. Há consenso em relação ao fato de que não se deve
esperar dessas comunidades uma produção em larga escala. Dessa forma, como
evitar os produtos da China?
Não é a comunidade que precisa produzir
em larga escala, é a sociedade que precisa consumir na escala adequada. O
grande segredo é que não existe sustentabilidade nos padrões de consumo atual,
isso é totalmente impossível, os valores estão errados.
A escala é uma grande mentira, porque
você está consumindo além da sua escala de necessidades. Se você parar para
pensar, está tudo muito além. As necessidades não são essas, as escalas estão
fora de proporção. A métrica não é mais a métrica humana, é a métrica da
máquina. A máquina, para ser lucrativa, tem de produzir “tanto”; esse sistema,
para se manter, tem de ter uma demanda de “tanto”. E o centro não é a máquina
nem o sistema, o centro é o homem. Não é somente a humanidade, é a Terra. Então,
está tudo errado.
Recomeçamos com as pessoas parando para
pensar sobre o que elas realmente precisam. O que as pessoas realmente
precisam? Para se ter uma ideia, o homem das cavernas consumia, se não me
engano, três mil quilocalorias por dia, que era o que ele necessitava para
manter seu metabolismo funcionando. Eram as refeições, basicamente. Aí ele
passou a precisar de fogo, passou a produzir energia elétrica, ar condicionado,
carro. Hoje, nós consumimos quatrocentas mil quilocalorias, ou seja, mais de cem
vezes mais do que o homem realmente, na sua essência, necessita.
Precisamos de muito menos do que estamos
consumindo. Só que existe toda uma indústria que vende energia e produtos que necessitam
dela. Não estou interessado nessa indústria, estou interessado na sociedade. É
aí que entra a grande questão: o design não tem de alimentar uma indústria.
O sistema, a meu ver, está com um
discurso que não se encaixa. Não tem como falar de sustentabilidade dentro
desses parâmetros. É tudo mentira. Um negócio não tem como se tornar
sustentável se ele não é sustentável em sua essência. É querer colocar uma
maquiagem por cima de algo que não é sustentável.
O pensamento atual não é sustentável. Por
exemplo, não importa o que temos de fazer a respeito de como processar o
lixo. Acho que o que temos que fazer é produzir menos lixo – é
diferente. Se eu der um jeito para o lixo, estarei estimulando sua produção, e
eu não quero mais lixo. Uma vez, fiz uma roupa toda feita toda de lixo. Ninguém
vai usar aquilo. Então, “parem de produzir lixo”. É ridículo, mas é essa a
mensagem: vocês acham que precisam disso? Não, vocês não precisam disso, vocês
não vão usar isso, vocês têm de produzir menos lixo. Seus valores são “um
lixo”?
Você já disse que a base de uma nação está
em sua cultura, e que uma nação sem cultura, não é uma nação. Qual a
importância de buscar referências na cultura brasileira para o desenvolvimento
de projetos?
Uma nação é o espelho de um país. Veja aqueles
países com ditadores na África, por exemplo. São países onde há uma pessoa se
dando bem à custa da miséria da população. Não se trata de uma nação. Um país é
numericamente contabilizado; uma nação é um valor abstrato – como o valor de
uma marca. Você consegue medir um país pelo território, pelo PIB etc. Mas o
valor de uma nação deve ser muito maior. É o que acontece, hoje, com o Brasil.
Quando falamos em valores como “brasilidade”, temos que tomar um
grande cuidado, porque uma nação não é constituída do imaginário popular. Isso
faria com que imaginário popular se tornasse algo estático, grotesco e
folclórico, atrelado a uma imagem um tanto quanto cristalizada que tira a
capacidade das pessoas de imaginarem, sonharem, produzirem. Aquilo se torna
algo tão forte acima dos indivíduos, que os indivíduos se apagam. Uma nação,
por outro lado, é constituída do imaginário individual de cada pessoa que
compõe o país.
Se pensarmos nos grandes gênios, eles
não representavam o imaginário popular de um país, mas o seu próprio imaginário
como artista que projetou aquele país para o mundo. A soma da produção de
indivíduos capazes de produzir a partir de seu imaginário pessoal constitui,
enfim, uma nação, que é muito maior.
A partir do momento em que o Brasil
parar de impor, para os próprios brasileiros, que “o Brasil é isso”, abrindo
mão dos rótulos e estimulando as pessoas a exercerem suas singularidades, aí
sim, estaremos começando a falar e a educar corretamente.
A escola, da forma como está
constituída atualmente, é o pior modelo. As pessoas têm de ficar dentro dos espaços
preestabelecidos. A escola não estimula a descoberta, ela estimula a
imobilidade. É preciso que as pessoas pensem no imaginário pessoal e no que
elas podem conseguir a partir disso. Senão, de novo, estaremos formatando as
pessoas a imaginar uma única coisa e, com isso, estaremos apagando tudo o que
temos de possibilidades num país tão diverso como o Brasil. Se todo mundo
pensar igual, teremos diversos covers de um modelo. Não é essa ideia.
Alguns sociólogos, em vez de falarem em
exclusão social preferem utilizar a expressão inclusão perversa,
indicando que o modelo socioeconômico é constituído de modo tal a relegar
pessoas a condições miseráveis. O conceito de inclusão perversa traz em
si a problematização do próprio sistema e, portanto, a saída não é “incluir” as
pessoas no sistema e, sim, transformá-lo. Você já disse que, com seus projetos
em comunidades de artesãos, não pretendia incluir as pessoas no sistema. Antes,
trata-se de subvertê-lo. Você poderia falar um pouco mais a respeito disso?
Essas comunidades são autossustentáveis,
elas não precisam do resto, mas cria-se uma dependência em que elas se sentem
excluídas. Vi um documentário muito interessante sobre um menino que morava em
uma favela e filmava seu cotidiano. Em determinado momento, ele falava: “olha,
nessa comunidade vivem milhares de famílias e, diariamente, as mães saem daqui para
trabalhar nos grandes centros e as crianças ficam abandonadas ou são deslocadas
para uma creche, que fica em outro lugar”. Essas pessoas que vão trabalhar fora
da comunidade, acabam fazendo compras –supermercado, roupas – em outros
lugares. Forma-se um círculo vicioso de dependência em que a pessoa tem que
sair de onde mora, se deslocar para outro lugar para ganhar algum dinheiro, e
esse dinheiro, teoricamente, não circula em sua comunidade, porque a pessoa
acaba consumindo tudo fora. O menino ainda falou: “com tudo o que cada uma
dessas pessoas ganha em outro lugar, essa comunidade movimenta um valor
extremamente significativo”. Se isso fosse revertido para a própria comunidade
em termos de comércio local e não fosse pulverizado por onde essas pessoas
circulam, aquele lugar teria autonomia e a qualidade de vida seria muito
melhor. Mas isso não acontece, porque as pessoas preferem criar uma relação de dependência
a criar algo que possa consolidar uma nova realidade. As pessoas perpetuam
aquilo que está errado e não estabelecem mudanças.
Recentemente, estive na Holanda. Uma
das análises que fiz foi a de que, infelizmente, o modelo que seguimos é o
americano, e não o europeu. Na Holanda, não há hiper-mega-supermercados dentro
das cidades. Os “hipers”, “megas”, “supers” ficam na estrada. Se houvesse um
hiper-mega-supermercado dentro dos bairros, isso acabaria com o comércio local,
pois criaria uma concorrência tão desleal que aqueles pequenos mercadinhos
espalhados que se tornaram, vamos dizer assim, difusores de renda de uma forma
mais homogênea, se concentrariam na mão de um único empreendedor. Uma estrutura
dessas desestabiliza uma cidade. Todas as pessoas passam a se deslocar para lá.
As pessoas param de circular e a vida nas ruas se torna concentrada em volta
desses grandes centros.
É como se fosse um organismo que passa
a ter má circulação sanguínea. Isso faz com que nesses lugares em que antes
havia autonomia, em que antes havia o filho do filho do filho do avô que montou
aquela boulangerie, aquele açougue ou aquele bazarzinho, tudo isso vá
desaparecendo. Então, vai havendo uma gangrena, todo o sangue começa a circular
só por um lugar e, nos outros, o espaço urbano fica comprometido, as ruas
passam a ter menos fluxo sanguíneo, aquilo começa a se degenerar, se torna um
lugar de tráfico, de prostituição, de criminalidade. É o que acontece no
Brasil: aquilo que antes tinha saúde se torna algo que precisa ser revitalizado.
O Brasil é um lugar onde precisa se
revitalizar um monte de coisas. Por quê? Porque houve essa má gestão. E o
grande problema é que isso acontece por todo o país. Em qualquer cidadezinha
que você vá, vê que estão abrindo grandes shopping centers, grandes
empreendimentos. Acho que já está mais do que claro que esse modelo é errado, mas
ele continua sendo repetido. Isso tem ocorrido não apenas na área comercial,
mas também na área cultural. As manifestações culturais passaram a acontecer
não mais nesse espaço comum e, sim, dentro de espaços privados, como galerias e
museus. Tudo começou a ser mercantilizado.
Na verdade, os excluídos se excluem
também. Eles permitem serem excluídos, porque não percebem toda essa
potencialidade e independência possível. Há toda uma situação de desestímulo e
de estímulo a um único modelo.
É preciso imaginar tudo como um corpo
humano: se não circula sangue aqui, apodrece. Temos que tomar cuidado para que
isso não aconteça. A partir do momento em que alguém começa a exercitar apenas um
braço, vai ficar estranho, deformado. A sociedade está deformada. As pessoas
não percebem que cada lugar tem sua beleza, seus valores, sua função. Esse
modelo unificador faz com que todo mundo queira ser igual.
Se todos os dedos fossem ser polegares,
a mão ficaria estranha. Cada dedo tem uma função, o que nos possibilita tocar
piano ou qualquer outro instrumento, por exemplo. Mas todo mundo quer ser
dedão, todo mundo quer ser shopping center, todo mundo quer consumir o mesmo
produto, todos os lugares querem produzir o mesmo produto. Então, é difícil
falar: “você tem o seu valor, você é único”. Como você vai conseguir fazer com
que a pessoa seja única, se todo mundo quer o que é igual? É uma luta meio
quixotesca.
Você se sente sozinho?
Há uma fábula que explica um pouco a
importância das pessoas fazerem a sua parte. É uma história que diz que a
floresta começa a pegar fogo e, enquanto todos os animais fogem desse incêndio,
uma andorinha é vista sobrevoando o fogo, indo até um lago, voltando para o
fogo. E, a cada vez que ela fazia isso, ela batia as asas para tentar apagar o
fogo. E todos os animais começam a gritar. A raposa, as onças, todos que estão
ali falam: “pare de fazer isso”. Os macacos gritavam: “você é louca, você não
vai conseguir fazer nada, é impossível”. E aí, a andorinha responde: “não me
importa o impossível, o que me importa é o que eu posso fazer”. Por mais que as
coisas pareçam impossíveis, isso não quer dizer que você não tenha a obrigação
de fazer algo. Isso difere as pessoas. Acho que as pessoas esquecem um pouco
desses valores humanos, como ter dignidade, ética, fazer o que é possível ser
feito.
Se me sinto sozinho? É obvio. Vejo que
está todo mundo correndo para um lado e eu estou tentando ir contra essa maré,
porque não me interessa me deixar ser levado. Eu prefiro fazer, durante toda
minha vida, aquilo que acredito.
Eu poderia estar trabalhando, hoje,
como diretor criativo em uma grande empresa, e não dando aula. Como professor,
sou obrigado a viajar praticamente toda semana para dar aulas em diversas
faculdades para poder pagar as contas, porque, infelizmente, professor é
extremamente mal remunerado nesse país, em que a educação se tornou mais uma
mercadoria. A educação, que deveria ter como foco “criar uma sociedade melhor”, se tornou um negócio para
empreendedores que decidem montar uma escola, porque este é um país em que as
pessoas são ávidas por um diploma universitário – como se isso mudasse alguma
coisa.
Uma escola deveria ser um espaço de
discussão e não um shopping, onde um monte de gente desocupada e sem interesse está
ali desperdiçando a vida. Infelizmente, se você der uma volta em qualquer
entorno de faculdade, verá que as pessoas não estão fazendo nada. Às oito da
manhã, tem gente tomando cerveja. Não se vê gente na biblioteca, não se vê
grupos propondo, discutindo, querendo mudar. As pessoas se conformam. Está tudo
errado. Os alunos não estimulam os professores, os professores não estimulam os
alunos. Há aquele abismo de mediocridade de ambas as partes. A mesma aula é
dada o tempo todo, as pessoas não se reciclam. Quem é que está errado? Não é
nem o professor, nem o aluno, é o modelo. Então as partes têm que se juntar
para formar um novo modelo.