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A CASA E O MUNDO
Jum Nakao

ENTREVISTA

JUM NAKAO

Publicado por A CASA em 24 de Novembro de 2009
Por Daniel Douek

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"Tenho de pensar em como criar uma nova história"

 

Jum Nakao é estilista e diretor de criação.

 



Em 2004, você apresentou a coleção A Costura do Invisível, em desfile realizado na São Paulo Fashion Week. Ao final, as modelos, que vestiam roupas de papel, rasgaram seus trajes em plena passarela. Creio que você já esteja cansado de falar sobre esse assunto, mas é inevitável. Tratava-se de um “desfile-manifesto” como, às vezes, se costuma chamar?

É uma pergunta recorrente mesmo. Por mais que o tempo passe, as pessoas sempre pedem para que eu fale sobre esse desfile. É que como aquela coisa de banda: tem que tocar o hit, senão é como se não tivesse o show.

Acredito que o desfile tenha sido muito mais uma performance do que um manifesto. A ideia era discutir certas questões. Nesse momento de tanta velocidade, tanta produção, vemos um grande vazio de conteúdo, tanto por parte de quem produz como por parte de quem consome. Hoje, as pessoas passam por tudo e se relacionam muito superficialmente com as coisas. A ideia era mostrar, primeiro, o quanto essa relação está apenas na superfície, não ganha profundidade, não ganha densidade. Por isso houve o rasgo, para mostrar que a superfície era o que menos importava num trabalho. Em segundo lugar, a ideia era mostrar que alguns valores devem ser repensados. Atualmente, as pessoas pensam muito naquilo do qual é feito, em qual é a marca, no quanto custa e esquecem que o principal não está no do que é feito, mas no como é feito, por que é feito, com que intenção é feito.

Isso surgiu de uma inquietação coletiva, não era uma preocupação específica em relação à área de moda. Eu sempre trabalho com uma equipe muito grande e vejo esses questionamentos nas áreas de design, música, artes. Tudo se formou em função de um comércio alicerçado em valores que eu critico. Então, fiz esse projeto para que esses valores fossem repensados.

 

Em 2007, você apresentou uma instalação em Curitiba composta por réplicas em miniatura dos vestidos de papel e ratos que iam, aos poucos, consumindo-os. Quais eram os objetivos dessa instalação?

Essa instalação chamava-se Revolver. Revolver no sentido de remexer lá no fundo do baú e fazer com que aquilo que estava sedimentado voltasse à tona, resgatando uma série de coisas que considerávamos importante.

Fiz o projeto em conjunto com o cenógrafo Julio Dojcsar e com Kiko Araújo, da área de cinema. Tudo começou com um convite da primeira-dama do governo do Paraná, Maristela Requião, que cedeu o espaço do museu Oscar Niemeyer para uma retrospectiva da minha carreira. A ideia era colocar dentro do museu os principais projetos que eu tinha realizado até o desfile de papel, mas achava que era um pouco cedo para falar em retrospectiva – ainda tenho que produzir mais. Então, ela sugeriu que ao menos eu fizesse uma menção ou incluísse alguma referência ao desfile de papel, que ela considerava memorável.

A partir disso, fizemos um projeto em que trabalhávamos com questões como: o que é um museu? Qual o papel do museu? Interessava-nos o fato do museu preservar a memória, manter viva uma história e passar sensações para a sociedade através de seu acervo material. Começamos a trabalhar a ideia de fazer com que o museu testemunhasse a própria deterioração do seu acervo. Queríamos problematizar a questão da materialidade e do valor atrelado ao suporte.

Então, ocupamos um museu que era quase do tamanho de um campo de futebol society com o vazio, basicamente eram só projeções. Além disso, havia uma pequena maquete, um simulacro. Dentro desse simulacro, nós colocamos o real, mas em escala reduzida: bonecos de trinta centímetros de altura vestindo réplicas das roupas feitas para o desfile de 2004. Havia câmeras captando imagens dessas peças, e essas imagens eram projetadas em grande escala no museu. Ou seja, tínhamos, dentro do simulacro, o real, e, dentro do real, o virtual.

Para criar a sensação de deterioração, substituímos o efeito do tempo por algo físico: os ratos, que para manter as presas num determinado tamanho, devem roer o tempo inteiro. Os ratos passaram a roer todo o conteúdo do simulacro do museu, e aquilo era projetado em grandes dimensões.

Tínhamos um paredão de seis metros de altura por trinta metros de largura, ou seja, havia ratos do tamanho de um ônibus passeando dentro do museu e as pessoas interagindo, porque quando elas olhavam para a maquete, eram projetadas também, já que a estrutura era transparente. Então, quando alguém olhava para a maquete, era como se estivesse olhando o museu de fora; quando sua imagem era projetada na parede em grandes dimensões, era como se a pessoa estivesse dentro do museu, sendo observada por um gigante. Havia uma inversão dos papéis o tempo inteiro, era ver e ser visto, e aquilo tudo ia desaparecendo gradativamente, dia a dia.

Trabalhávamos com um software que fragmentava esse tempo, então tínhamos imagens do primeiro dia mescladas com imagens do último dia e, com isso, o tempo se tornava também uma variável nesse projeto: havia projeções dos vestidos intactos do primeiro dia, ele se deteriorando rapidamente, voltando. E o som também. O músico Paulo Beto criou um som para cada momento. Era uma sinfonia do acaso, tanto de imagens quanto de som.

Atrás desse grande paredão, colocamos prateleiras como se fossem de supermercado, nas quais expusemos garrafas contendo líquidos coloridos e stickers de ratos. Assim como os ratos estavam destituindo o patrimônio do museu, as pessoas podiam ir até esse supermercado e levar embora o que elas quisessem – só que por um preço de obra de arte. No último dia, como em qualquer liquidação, reduzimos o preço de tudo e as pessoas, como os ratos, esvaziaram esse acervo.

Também havia a participação da fotógrafa Sandra Bordim. Para que o visitante chegasse ao andar da instalação, ele tinha que subir diversos pavimentos. A cada pavimento, apresentávamos réplicas do andar anterior, com diferenças muito sutis. Então, o visitante subia um andar e parecia que ele estava no mesmo lugar, porque o andar era quase exatamente igual ao outro. Tínhamos, num andar, fotos de pessoas vestindo roupas e, no outro andar, fotos dos bonecos vestindo as roupas. Então, havia essa sensação de déjà vu: “pô, eu subi um andar, mas não mudou nada”. No entanto, se o visitante olhasse atentamente, perceberia que as coisas mudaram: não são mais pessoas reais, são bonecos que simulam as pessoas reais. Até que o visitante chegava ao andar seguinte, em que tudo isso se expandia espacialmente para todo o museu.

 

É necessário repensar a produção em áreas criativas como moda e design?

Temos que repensar todo esse sistema, porque ele está muito baseado em comércio de objetos. No final, estamos falando simplesmente de conferir valor ao produto, tanto em moda, como em design. O que se pensa quando se está produzindo em qualquer área de design é em como comercializar esses bens, em como inseri-los no mercado. Não se trata de repensar o sistema, mas de reiterar aquilo que já existe como valores da sociedade: o ter, o comprar, o status do objeto. Quem faz um produto acaba reforçando todos os valores que, para mim, já se tornaram obsoletos e apontam para um fim desgraçado. É simplesmente uma substituição dos protagonistas de uma história que eu não quero mais continuar. Tenho que pensar em como criar uma nova história.

Por que as pessoas não deixam de pensar em como criar mais um objeto ou mais uma roupa e passam a pensar em como propiciar à sociedade e ao entorno novos valores? As pessoas acham que precisam consumir um objeto. Eu acho que isso desumaniza a sociedade e a própria humanidade, porque o objeto é algo mecânico, estático, que precisa ser vivificado através de outros valores que não o preço, a disponibilidade ou a indisponibilidade. Temos que pensar em como criar uma sociedade melhor e, a partir daí, no que podemos produzir para que essa sociedade seja diferente, e não simplesmente continuar a alimentar um sistema que já demonstrou ser extremamente falho e insuficiente para as necessidades da humanidade como um todo. Essa mudança de protagonistas – o “novo designer”, o “novo estilista” – é o que menos importa. Gostaria que surgissem não novos protagonistas de uma história velha, mas uma história nova que tem necessidade dos protagonistas antigos. É uma mudança total de lógica.

O grande problema é que as escolas não estão fomentando essas mudanças. Elas continuam a alimentar a manutenção desse sistema falido. As escolas não produzem novas escolas de pensamento, e são poucos os meios que se empenham em procurar novos modelos, eles continuam procurando o mais novo do modelo velho.

Uma coisa que eu sempre digo: se você quer que transformações aconteçam, você precisa formar novas pessoas, pessoas diferentes. O problema é que nada está sendo feito nesse sentido. Não precisamos de mais jornalistas, de mais designers, de mais médicos, de mais engenheiros. O mundo precisa de outro formato. Temos que pensar em como criar valores que não sejam mais mediados simplesmente por objetos. Aí entra tudo nessa coisa mais intangível, menos material. Não precisamos mais do objeto? Precisamos. Mas esses objetos vão ser simplesmente o meio, a forma que vai nos conduzir à compreensão de uma mudança, e não de uma sedimentação daquilo que temos vivenciado nos últimos séculos. São novos valores por trás dos valores materiais.

 

Na abertura de seu site, há um texto que termina da seguinte forma: “há um possível ainda invisível no real”. Isso vai ao encontro dessa perspectiva que você acabou de apresentar?

Sim, porque o real é visto por uma única perspectiva. Mas esse real que embrutece também pode sensibilizar as pessoas, tirá-las desse estado de anestesia e passividade mórbida que temos em relação a tudo o que o sistema propõe.

Temos que pensar em como atribuir novos significados ao real. Prego que uma elite pensante – os artistas, a crítica – não pode estar desvinculada da realidade, senão se torna aquela coisa utópica e totalmente descompromissada, estabelecendo-se uma lacuna entre quem pode fazer com que as pessoas enxerguem aquilo que é invisível e a grande massa.

É necessária uma mudança do consumidor – que é a grande massa. Portanto, isso não pode ficar restrito a um círculo de intelectuais. Percebo que, muitas vezes, tudo fica dentro de quatro paredes, e lugares em que existem tantas pessoas pensando, muitas vezes são os lugares mais miseráveis.

 

Atualmente, você participa do projeto Floresta Móbile, trabalhando com comunidades de artesãos em diversos estados do Brasil. Trata-se de uma tentativa de buscar novos caminhos para a produção?

Desde 2004, deixei de produzir as roupas e parei de me concentrar em produtos, porque percebi que havia um espaço enorme entre o que eu estava fazendo e as mudanças que via como necessárias. Se continuasse a produzir, mediando minha relação com as pessoas através de objetos e produtos, teria que modular meu discurso por um determinado sistema de valores, até para que meu próprio negócio sobrevivesse. Comecei a perceber que, dessa forma, eu não estava colaborando de maneira eficaz para que as mudanças que eu defendo acontecessem, muito pelo contrario, eu reiterava o objeto em si como fim, e o fato de você comprá-lo, como uma atitude de redenção e suficiente por si.

Isso, para mim, não estava correto, até porque eu ainda percebia uma incapacidade de compreensão. Os valores já estavam cristalizados, e não havia como criar uma leitura diferente daquilo que eu estava produzindo através desse processo de relação com o objeto no mercado. Era como se estivesse querendo dizer algo dentro de um sistema em que a compreensão não era possível. Era como se tivesse usando o meio errado para tentar fazer que uma transformação acontecesse. A partir do momento em que me inseria dentro de um meio errado, reforçava o errado e não provocava a mudança que sentia como necessária. Então, se tornava um pouco utópico, desconectado da ênfase que pretendia dar. É a mesma coisa que você tentar falar sobre a questão do consumo e produzir produtos de consumo. Continuar a produzir dentro do mesmo sistema não é a melhor forma de propiciar uma mudança da perspectiva em relação ao consumo e a esses valores. Para questionar o sistema, eu teria que pensar em um novo sistema, e não questioná-lo dentro dele mesmo. Se não concordo, tenho que fazer algo fora e não dentro.

Imaginei que isso seria mais eficiente através da educação. Como falei, educação é fundamental. Se você quer que transformações aconteçam, precisa formar e transformar pessoas. Essas pessoas vão ser as responsáveis pelas mudanças. Então, foi como se eu saísse desse sistema em que estava inserido e partisse para outra estratégia. Essa nova estratégia foi a de transformar pessoas, formando-as através de oficinas, transferindo toda uma filosofia e um conhecimento técnico e instrumentalizando-as para pensarem e produzirem diferente.

Tenho feito isso há cinco anos. Faz cinco anos que estou empenhado em projetos como o Floresta Móbile, projetos com comunidades carentes, projetos em universidades no Brasil e fora, fazendo com que as pessoas repensem a produção. As pessoas são como vírus. Um vírus só não faz efeito. Precisávamos criar um vírus de grandes proporções que atingisse todas as pessoas e, com isso, os valores mudassem. Então, passei a educar. Em cinco anos, devo ter educado, aproximadamente, cinco mil pessoas. Dou aulas em diversas faculdades. Consigo formar, por ano, mil pessoas diretamente. Se as cinco mil pessoas que eu formei conversarem com mais cinco pessoas, são 25 mil pessoas começando a pensar em mudar as coisas.

Mas acho que, ainda assim, não adiantou muito. Adiantou um pouco, mas não o suficiente. Olhando ao redor, vejo que as coisas ainda não mudaram. Com o desfile de papel, eu me sacrifiquei – foi um harakiri mesmo. Harakiri é o ato em que os samurais cortam a própria barriga, é o suicídio. Eu me abri e falei: “está tudo errado, preciso mudar”. Desde então, faz cinco anos que estou tentando. Fiz muitos projetos, intervenções em museus, intervenções em espaços públicos. Tudo isso foi legal, mas ainda não foi suficiente.

No ano que vem, talvez eu mude um pouco a estratégia e volte a fazer “produtos vírus” para mudar o mercado. Agora, estou dentro de uma área que não tem muita tangência com o público – passei a formar os interlocutores e mediadores. Sinto que talvez seja importante voltar a ter essa comunicação direta e essa relação mais próxima com o público. Estou pensando em como inserir novamente objetos no mercado, mas objetos que tragam toda essa carga que estou querendo atribuir, todos esses novos significados.

 

Não há o risco de se recriar tudo aquilo que você acabou de criticar?

Não, porque o sistema é totalmente diferente: é tudo de graça. É tudo a partir do que as pessoas alimentam, da transformação. Trata-se de trazer de volta à vida aquilo que se tornou apenas um índice, uma memória de um passado. É fazer com que aquilo se reinsira na sociedade, para que as pessoas percebam a insignificância dos objetos. Então, teoricamente, não vai me custar muita coisa: vou usar o que você me dá para lhe devolver, e, para me ajudar a produzir, vou utilizar a mão de obra que qualifiquei durante todos esses anos. Em relação às comunidades que eu capacitei, não significa que, por estarem capacitados, eles não precisem de renda – com certeza eles precisam. Mas não vai ter aquele custo onde existe um especulador.

Não estou preocupado com a indústria, estou preocupado com a sociedade. Durante o tempo em que nos preocupamos com a indústria e com a economia, na forma como ela existe hoje, nos esquecemos da sociedade. Começamos a nos preocupar com a indústria, com os bancos, com um monte de gente que não interessa, e a sociedade acabou se desumanizando e se tornando uma máquina. A partir do momento em que insiro essas comunidades, estaríamos pagando pelo seu saber, e não para especuladores que não produzem nada. É um projeto novo, talvez aconteça no ano que vem. Ainda não sei como viabilizar, mas é uma forma que estou imaginando para interferir mais nessa cena toda.

 

Com isso, você pretende readquirir sua relação de proximidade com o público?

Sim, porque me afastei. Fiquei pensando muito em formar pessoas, mas acho que caí naquela questão: qualifico uma elite pensante, mas essas pessoas talvez não tenham esse espaço de atenção que eu tenho e não estou usando. Então, talvez volte a usar esse espaço.

 

Você já afirmou que o objetivo de seus projetos de capacitação era formar uma “guerrilha” de pessoas. Tal guerrilha não poderia ser responsável por fazer a ligação entre as ideias de transformação e a massa de pessoas da sociedade?

A ideia era que todas essas pessoas que eu formei fizessem isso, mas vejo quantas dificuldades elas enfrentam, até de acesso para chegar a essa grande massa. Tudo é dominado por meios que necessitam de recursos e, por mais que essas pessoas estejam empenhadas, acho que existe algo maior do que elas. Há um desequilíbrio de forças muito grande.

Como vou fazer com que as pessoas parem de comprar carros se o sonho das pessoas é ter um carro? Ando de bicicleta, faço o que posso, estimulo as pessoas a não andarem de carro, porque acho ridículo. Até quando sinalizo onde estou, costumo dizer: “tem uma Doblô parada na frente”. O carro virou, na verdade, uma proteção para que ninguém entre com o carro aqui na porta da minha garagem – sabe aquela coisa de gangue? Deixo o carro parado como se fosse uma estátua, uma escultura. Uso o mínimo possível. Mas como é que você vai estimular as pessoas a não comprarem mais carros? Como é que você vai estimular as pessoas a comprarem produtos feitos por comunidades dentro da sua própria sociedade, sendo que todo mundo quer levar vantagens e comprar produtos baratos feitos na China? Como é que você vai estimular as pessoas a não comprarem pela marca, mas por aquilo que está por trás de determinado produto? Se você pensar na estrutura da sociedade em que nós vivemos hoje em dia, é difícil.

Sinto que essa guerrilha de pessoas que formei ainda não tem ferramentas suficientes. Elas estão batalhando, só que precisam de algo um pouco mais impactante para acordar uma nação. Como é que vou acordar um país desse tamanho, dentro de um universo tão sedimentado em valores consolidados geração após geração? Foi daí que eu decidi “voltar às armas”, saindo um pouco da parte estratégica. Eu pensei: “não adiantou, não está adiantando”.

Se nós não tivermos rapidamente um case que dê certo, as pessoas vão desistir. Sabe quando tudo deu errado, todas as nossas estratégias, tudo aquilo em que nós acreditamos demonstrou ser insuficiente diante de um mundo como o que nós vivemos hoje? Isso quer dizer que o mundo está certo? Acho que não. Por isso estou pensando em como interferir mais diretamente no processo, não somente através das pessoas, mas criando uma estratégia como essa que mencionei.

 

Nos trabalhos que envolvem o encontro entre estilistas e comunidades de artesãos, como estabelecer uma boa relação entre as partes? Você é professor universitário, e vai até comunidades de artesãos para desenvolver projetos com pessoas cuja escolaridade costuma ser muito baixa. Como fazer um bom diálogo para que não se estabeleça uma relação desigual?

Ficando quieto. Você deve ir lá ouvir, e não falar. Você deve estimular a reflexão no sentido das pessoas se olharem no espelho e enxergarem os valores que elas têm – valores que não percebem, talvez por conta da baixa autoestima.

Geralmente, essas comunidades são extremamente ricas em termos de saberes e de conhecimentos. Em um lugar desses, eu ouço, principalmente, e faço com que as pessoas enxerguem o que elas são capazes de fazer e o que elas têm. As pessoas de fora, quando veem uma comunidade no interior do Brasil, estão interessadas nas potencialidades desse local. Não interessa o que eu acho que elas têm de produzir, interessa o que elas podem produzir. Eu, simplesmente, faço uma ponte.

O que muitas vezes acontece com essas comunidades é que elas acabam produzindo aquilo que se consome de forma genérica. O mundo em que vivemos apara as arestas, unifica, globaliza tudo dentro de uma única tendência, e as pessoas passam a produzir aquilo que se consome em qualquer lugar, aquilo que é digerido e aceito, até por uma dificuldade em inserir mudanças, em fazer com que as pessoas se sensibilizem com coisas diferentes. Atualmente, as pessoas se sensibilizam com coisas iguais, e isso é um grande problema. As coisas se tornaram absolutas. Isso é um absurdo, não há espaço para as diversidades.

Sempre falamos em diversidade, mas isso não existe. Se você for pensar, aquilo que é diferente se tornou tão marginal hoje em dia que só sobrevive raramente. É o que acontece com essas comunidades, é o que acontece com essa guerrilha de pessoas que eu tenho formado. É difícil sobreviver dentro da sua existência e de seus valores.

Por onde passo, percebo que essas comunidades estão sucumbindo, desistindo. Eu estimulo e procuro valorizar, até porque, se eu impuser, estarei reforçando esse estado atual de coisas que não acredito. Então, fico quieto, simplesmente oriento em relação aos processos, às técnicas, para que elas apliquem e aprimorem aquilo que já sabem fazer.

Na verdade, procuro olhar o que elas produzem, a forma como trabalham, e tento inserir ruídos que sejam silenciosos. É difícil. Em várias comunidades que visitei, vi resultados desastrosos. Pessoas de fora vão lá e falam: “olha, seu produto precisa disso para ser comercializado”. E isso, muitas vezes, não faz parte daquela cultura. Aquilo que era para ajudar acaba se tornando um ingrediente ao qual elas jamais terão acesso, a não ser nessa oportunidade em que um orientador esteve ali, o que vai gerar uma dependência. A essência da inserção do produto das comunidades na sociedade não é o ingrediente externo, mas o ingrediente interno. É isso o que elas têm que buscar.

 

Uma das características mais marcantes do trabalho das comunidades artesanais que o difere do trabalho industrial é a produção em pequena escala. Há consenso em relação ao fato de que não se deve esperar dessas comunidades uma produção em larga escala. Dessa forma, como evitar os produtos da China?

Não é a comunidade que precisa produzir em larga escala, é a sociedade que precisa consumir na escala adequada. O grande segredo é que não existe sustentabilidade nos padrões de consumo atual, isso é totalmente impossível, os valores estão errados.

A escala é uma grande mentira, porque você está consumindo além da sua escala de necessidades. Se você parar para pensar, está tudo muito além. As necessidades não são essas, as escalas estão fora de proporção. A métrica não é mais a métrica humana, é a métrica da máquina. A máquina, para ser lucrativa, tem de produzir “tanto”; esse sistema, para se manter, tem de ter uma demanda de “tanto”. E o centro não é a máquina nem o sistema, o centro é o homem. Não é somente a humanidade, é a Terra. Então, está tudo errado.

Recomeçamos com as pessoas parando para pensar sobre o que elas realmente precisam. O que as pessoas realmente precisam? Para se ter uma ideia, o homem das cavernas consumia, se não me engano, três mil quilocalorias por dia, que era o que ele necessitava para manter seu metabolismo funcionando. Eram as refeições, basicamente. Aí ele passou a precisar de fogo, passou a produzir energia elétrica, ar condicionado, carro. Hoje, nós consumimos quatrocentas mil quilocalorias, ou seja, mais de cem vezes mais do que o homem realmente, na sua essência, necessita.

Precisamos de muito menos do que estamos consumindo. Só que existe toda uma indústria que vende energia e produtos que necessitam dela. Não estou interessado nessa indústria, estou interessado na sociedade. É aí que entra a grande questão: o design não tem de alimentar uma indústria.

O sistema, a meu ver, está com um discurso que não se encaixa. Não tem como falar de sustentabilidade dentro desses parâmetros. É tudo mentira. Um negócio não tem como se tornar sustentável se ele não é sustentável em sua essência. É querer colocar uma maquiagem por cima de algo que não é sustentável.

O pensamento atual não é sustentável. Por exemplo, não importa o que temos de fazer a respeito de como processar o lixo. Acho que o que temos que fazer é produzir menos lixo – é diferente. Se eu der um jeito para o lixo, estarei estimulando sua produção, e eu não quero mais lixo. Uma vez, fiz uma roupa toda feita toda de lixo. Ninguém vai usar aquilo. Então, “parem de produzir lixo”. É ridículo, mas é essa a mensagem: vocês acham que precisam disso? Não, vocês não precisam disso, vocês não vão usar isso, vocês têm de produzir menos lixo. Seus valores são “um lixo”?

 

Você já disse que a base de uma nação está em sua cultura, e que uma nação sem cultura, não é uma nação. Qual a importância de buscar referências na cultura brasileira para o desenvolvimento de projetos?

Uma nação é o espelho de um país. Veja aqueles países com ditadores na África, por exemplo. São países onde há uma pessoa se dando bem à custa da miséria da população. Não se trata de uma nação. Um país é numericamente contabilizado; uma nação é um valor abstrato – como o valor de uma marca. Você consegue medir um país pelo território, pelo PIB etc. Mas o valor de uma nação deve ser muito maior. É o que acontece, hoje, com o Brasil.

Quando falamos em valores como “brasilidade”, temos que tomar um grande cuidado, porque uma nação não é constituída do imaginário popular. Isso faria com que imaginário popular se tornasse algo estático, grotesco e folclórico, atrelado a uma imagem um tanto quanto cristalizada que tira a capacidade das pessoas de imaginarem, sonharem, produzirem. Aquilo se torna algo tão forte acima dos indivíduos, que os indivíduos se apagam. Uma nação, por outro lado, é constituída do imaginário individual de cada pessoa que compõe o país.

Se pensarmos nos grandes gênios, eles não representavam o imaginário popular de um país, mas o seu próprio imaginário como artista que projetou aquele país para o mundo. A soma da produção de indivíduos capazes de produzir a partir de seu imaginário pessoal constitui, enfim, uma nação, que é muito maior.

A partir do momento em que o Brasil parar de impor, para os próprios brasileiros, que “o Brasil é isso”, abrindo mão dos rótulos e estimulando as pessoas a exercerem suas singularidades, aí sim, estaremos começando a falar e a educar corretamente.

A escola, da forma como está constituída atualmente, é o pior modelo. As pessoas têm de ficar dentro dos espaços preestabelecidos. A escola não estimula a descoberta, ela estimula a imobilidade. É preciso que as pessoas pensem no imaginário pessoal e no que elas podem conseguir a partir disso. Senão, de novo, estaremos formatando as pessoas a imaginar uma única coisa e, com isso, estaremos apagando tudo o que temos de possibilidades num país tão diverso como o Brasil. Se todo mundo pensar igual, teremos diversos covers de um modelo. Não é essa ideia.

 

Alguns sociólogos, em vez de falarem em exclusão social preferem utilizar a expressão inclusão perversa, indicando que o modelo socioeconômico é constituído de modo tal a relegar pessoas a condições miseráveis. O conceito de inclusão perversa traz em si a problematização do próprio sistema e, portanto, a saída não é “incluir” as pessoas no sistema e, sim, transformá-lo. Você já disse que, com seus projetos em comunidades de artesãos, não pretendia incluir as pessoas no sistema. Antes, trata-se de subvertê-lo. Você poderia falar um pouco mais a respeito disso?

Essas comunidades são autossustentáveis, elas não precisam do resto, mas cria-se uma dependência em que elas se sentem excluídas. Vi um documentário muito interessante sobre um menino que morava em uma favela e filmava seu cotidiano. Em determinado momento, ele falava: “olha, nessa comunidade vivem milhares de famílias e, diariamente, as mães saem daqui para trabalhar nos grandes centros e as crianças ficam abandonadas ou são deslocadas para uma creche, que fica em outro lugar”. Essas pessoas que vão trabalhar fora da comunidade, acabam fazendo compras –supermercado, roupas – em outros lugares. Forma-se um círculo vicioso de dependência em que a pessoa tem que sair de onde mora, se deslocar para outro lugar para ganhar algum dinheiro, e esse dinheiro, teoricamente, não circula em sua comunidade, porque a pessoa acaba consumindo tudo fora. O menino ainda falou: “com tudo o que cada uma dessas pessoas ganha em outro lugar, essa comunidade movimenta um valor extremamente significativo”. Se isso fosse revertido para a própria comunidade em termos de comércio local e não fosse pulverizado por onde essas pessoas circulam, aquele lugar teria autonomia e a qualidade de vida seria muito melhor. Mas isso não acontece, porque as pessoas preferem criar uma relação de dependência a criar algo que possa consolidar uma nova realidade. As pessoas perpetuam aquilo que está errado e não estabelecem mudanças.

Recentemente, estive na Holanda. Uma das análises que fiz foi a de que, infelizmente, o modelo que seguimos é o americano, e não o europeu. Na Holanda, não há hiper-mega-supermercados dentro das cidades. Os “hipers”, “megas”, “supers” ficam na estrada. Se houvesse um hiper-mega-supermercado dentro dos bairros, isso acabaria com o comércio local, pois criaria uma concorrência tão desleal que aqueles pequenos mercadinhos espalhados que se tornaram, vamos dizer assim, difusores de renda de uma forma mais homogênea, se concentrariam na mão de um único empreendedor. Uma estrutura dessas desestabiliza uma cidade. Todas as pessoas passam a se deslocar para lá. As pessoas param de circular e a vida nas ruas se torna concentrada em volta desses grandes centros.

É como se fosse um organismo que passa a ter má circulação sanguínea. Isso faz com que nesses lugares em que antes havia autonomia, em que antes havia o filho do filho do filho do avô que montou aquela boulangerie, aquele açougue ou aquele bazarzinho, tudo isso vá desaparecendo. Então, vai havendo uma gangrena, todo o sangue começa a circular só por um lugar e, nos outros, o espaço urbano fica comprometido, as ruas passam a ter menos fluxo sanguíneo, aquilo começa a se degenerar, se torna um lugar de tráfico, de prostituição, de criminalidade. É o que acontece no Brasil: aquilo que antes tinha saúde se torna algo que precisa ser revitalizado.

O Brasil é um lugar onde precisa se revitalizar um monte de coisas. Por quê? Porque houve essa má gestão. E o grande problema é que isso acontece por todo o país. Em qualquer cidadezinha que você vá, vê que estão abrindo grandes shopping centers, grandes empreendimentos. Acho que já está mais do que claro que esse modelo é errado, mas ele continua sendo repetido. Isso tem ocorrido não apenas na área comercial, mas também na área cultural. As manifestações culturais passaram a acontecer não mais nesse espaço comum e, sim, dentro de espaços privados, como galerias e museus. Tudo começou a ser mercantilizado.

Na verdade, os excluídos se excluem também. Eles permitem serem excluídos, porque não percebem toda essa potencialidade e independência possível. Há toda uma situação de desestímulo e de estímulo a um único modelo.

É preciso imaginar tudo como um corpo humano: se não circula sangue aqui, apodrece. Temos que tomar cuidado para que isso não aconteça. A partir do momento em que alguém começa a exercitar apenas um braço, vai ficar estranho, deformado. A sociedade está deformada. As pessoas não percebem que cada lugar tem sua beleza, seus valores, sua função. Esse modelo unificador faz com que todo mundo queira ser igual.

Se todos os dedos fossem ser polegares, a mão ficaria estranha. Cada dedo tem uma função, o que nos possibilita tocar piano ou qualquer outro instrumento, por exemplo. Mas todo mundo quer ser dedão, todo mundo quer ser shopping center, todo mundo quer consumir o mesmo produto, todos os lugares querem produzir o mesmo produto. Então, é difícil falar: “você tem o seu valor, você é único”. Como você vai conseguir fazer com que a pessoa seja única, se todo mundo quer o que é igual? É uma luta meio quixotesca.

 

Você se sente sozinho?

Há uma fábula que explica um pouco a importância das pessoas fazerem a sua parte. É uma história que diz que a floresta começa a pegar fogo e, enquanto todos os animais fogem desse incêndio, uma andorinha é vista sobrevoando o fogo, indo até um lago, voltando para o fogo. E, a cada vez que ela fazia isso, ela batia as asas para tentar apagar o fogo. E todos os animais começam a gritar. A raposa, as onças, todos que estão ali falam: “pare de fazer isso”. Os macacos gritavam: “você é louca, você não vai conseguir fazer nada, é impossível”. E aí, a andorinha responde: “não me importa o impossível, o que me importa é o que eu posso fazer”. Por mais que as coisas pareçam impossíveis, isso não quer dizer que você não tenha a obrigação de fazer algo. Isso difere as pessoas. Acho que as pessoas esquecem um pouco desses valores humanos, como ter dignidade, ética, fazer o que é possível ser feito.

Se me sinto sozinho? É obvio. Vejo que está todo mundo correndo para um lado e eu estou tentando ir contra essa maré, porque não me interessa me deixar ser levado. Eu prefiro fazer, durante toda minha vida, aquilo que acredito.

Eu poderia estar trabalhando, hoje, como diretor criativo em uma grande empresa, e não dando aula. Como professor, sou obrigado a viajar praticamente toda semana para dar aulas em diversas faculdades para poder pagar as contas, porque, infelizmente, professor é extremamente mal remunerado nesse país, em que a educação se tornou mais uma mercadoria. A educação, que deveria ter como foco “criar uma sociedade melhor”, se tornou um negócio para empreendedores que decidem montar uma escola, porque este é um país em que as pessoas são ávidas por um diploma universitário – como se isso mudasse alguma coisa.

Uma escola deveria ser um espaço de discussão e não um shopping, onde um monte de gente desocupada e sem interesse está ali desperdiçando a vida. Infelizmente, se você der uma volta em qualquer entorno de faculdade, verá que as pessoas não estão fazendo nada. Às oito da manhã, tem gente tomando cerveja. Não se vê gente na biblioteca, não se vê grupos propondo, discutindo, querendo mudar. As pessoas se conformam. Está tudo errado. Os alunos não estimulam os professores, os professores não estimulam os alunos. Há aquele abismo de mediocridade de ambas as partes. A mesma aula é dada o tempo todo, as pessoas não se reciclam. Quem é que está errado? Não é nem o professor, nem o aluno, é o modelo. Então as partes têm que se juntar para formar um novo modelo.