Caroline Harari nasceu em São Paulo em 1958. É formada em História pela Universidade de São Paulo e especializada em arqueologia e restauração patrimonial. Na década de 90, começou a fazer cerâmica no ateliê de Laís Granato, onde se profissionalizou. Ao iniciar o convívio com a técnica, Caroline viu-se impressionada com a fugacidade não apenas da cerâmica, mas de tudo o que a sociedade atual produz. Por isso, de início, o que a movia era a busca da forma perene, da estrutura de peças que ficassem e passassem de uma geração para outra, que servissem de testemunho de um trabalho com uma certa permanência no tempo.
Foi dessa forma que partiu para a utilização de argilas mais refinadas, da alta temperatura dos fornos – monoqueima a 1300oC – e da dedicação mais comprometida possível, na busca de resultados de qualidade. É nisso que está o diferencial do seu trabalho, na espessura, no adelgaçamento máximo de uma peça, contando, no entanto, com a sua resistência, e com a certeza de estar concebendo um objeto que veio para ficar.
É no amanteigado da argila que ela traduz e imprime o trabalho também milenar das rendeiras brasileiras. Foi com inspiração e sensibilidade que ela descobriu uma forma de revalorizar essas prendas, atributos tão esquecidos nos dias de hoje.
O trabalho de Caroline vai além de resgatar a nobreza e o primor do trabalho dessas artesãs. Para a artista, trata-se de uma forma de reverência que se deve fazer, de tributo que se deve prestar a elas, de uma tentativa de redimi-las do desprezo e esquecimento a que foram relegadas. Ela está atrás de histórias de mulheres em pequenas aldeias de pescadores, nos povoados isolados, nas mais longínquas comunidades pelo Brasil afora, e é no desfiar, no tecer, no torcimento dos seus movimentos que ela redescobre essa arte, que vai se sucedendo de geração em geração. Os detalhes, o capricho e o acabamento de cada peça levam essa artista a querer documentar na cerâmica a dedicação e o bom gosto de cada gesto dessas artesãs.
Seu trabalho é claro, bonito e singelo por natureza. Para que o público o aprecie, não é necessária nenhuma operação de análise, interpretação ou mesmo desconstrução. Ainda assim, não se pode dizer que não exista uma estratégia por trás dele, uma idéia, séria e objetiva, de resgate de um trabalho valioso para a cultura brasileira. Melhor ainda, o que ela produz tem o poder de apaziguar nossos sentidos, mas também de surpreender pela revelação de outras expressões, que estão contidas em sua obra. Reconhecer a beleza no seu trabalho é desvendar, ou melhor, revisitar códigos de representação que nos são familiares, que nos colocam em sintonia com algo muito próximo, íntimo até, e que por isso mesmo reconhecemos e valorizamos. Trata-se de rever produtos de trabalhos domésticos, antigos, já devassados por nossas almas, antes mesmo que soubéssemos que éramos gente. Ela nos coloca em contato com a brandura do universo sensitivo e estético do regaço feminino. São saberes de mulheres, um repertório delicado que, a cada dia que passa, o tempo presente vai desalojando do seu espaço, do seu valor, extraviando o sentido dessa delicadeza numa espécie de sorvedouro de belezas puras, estéreis para os olhos argutos da proficiência e da aplicabilidade. Não, o que Caroline faz talvez não faça sentido sob esse prisma, não serve aos intentos do útil, é apenas belo. Mas, de qualquer forma, o que seria a arte além desse seduzir, desse momento de introspecção.
Nilda Jock
Sobre a curadora
Luciana Aguiar é PhD em antropologia pela Universidade de Cornell, USA, com especialização em antropologia da imagem e análise iconográfica da produção artesanal. É autora do livro Spinning Lives sobre a tecelagem do Vale do Jequitinhonha publicado pela University Press of America e de artigos para livros e revistas brasileiras. Dedica-se ao desenvolvimento e monitoramento de projetos sociais voltados para a produção artesanal brasileira. Atua como consultora em várias instituições entre elas o Programa Artesanato Solidário do Conselho da Comunidade Solidária, UNESCO e Embratur. Foi pesquisadora do CNPq junto ao Departamento de Antropologia da USP e ao Laboratório de Imagem e Som e Antropologia, onde ajudou a organizar um núcleo de pesquisa em antropologia visual. Atuou como assistente de curadoria e pesquisadora junto a Pinacoteca do Estado de São Paulo sob direção de Emanuel Araujo. Participou de projetos e organizou mostras que têm como viés a interação entre designers e artesãos para o Sebrae do Distrito Federal e Mato Grosso do Sul, bem como para Programa Nacional de Agricultura Familiar do Ministério da Agricultura nos estados do Rio Grande do Norte e Roraima.
A cerâmica: formas e usos
A cerâmica é uma técnica milenar amplamente disseminada entre os índios brasileiros e as diferentes etnias africanas que aqui aportaram. Presente nos usos e costumes das populações indígenas e afro-brasileiras, tem sua técnica disseminada entre diversas comunidades do interior do país. Peças fundamentais e constitutivas da Casa Brasileira, os utensílios em cerâmica são usados na vida cotidiana sobretudo como recipientes para o armazenamento e transporte de água - como é o caso dos potes, bilhas, porrões, caborés, talhas e moringas - na elaboração de comidas - com pratos, cumbucas, panelas, gamelas, aribés, cuscuzeiros, engana-gatos e frigideiras - e estão presentes nos rituais religiosos em forma de urnas ou alguidares e quartinhas.
Caroline Harari redescobre esta diversidade de formas que, de uma maneira quase imperceptível, permeia o cotidiano da vida brasileira. Neste processo, Caroline se apropria de algumas delas e as recria em outro tipo de argila e de técnica - monoqueima em alta temperatura. Ao dialogar com as formas e técnicas artesanais brasileiras, utiliza as rendas e bordados como um elemento que é sobreposto e absorvido pelo barro. Nesse encontro inusitado do barro com a renda, universos distintos se integram, criando uma certa reciprocidade plástica e técnica. Passam então a ser moldados de acordo com o saber fazer repleto de detalhes e segredos próprios do ofício da cerâmica.
Rendas e prendas
A renda e o bordado, ofícios seculares de freiras na confecção e adorno de paramentos eclesiásticos, eram prendas ensinadas nos conventos em Portugal, como parte da educação de fidalgas e mulheres de fino trato. Estas técnicas surgem e se aprimoram a partir de uma peculiar mistura dos saberes de vários segmentos sociais que eram trocados no espaço doméstico. Populares nos pequenos povoados à beira-mar de Portugal e, posteriormente, de Espanha, as rendas são originárias de Flandres, da França e da Itália, centros que se destacaram pela delicadeza e qualidade deste ofício a partir de meados do século XV. A renda portuguesa, porém, delas se diferencia e assume traços próprios com a influência Persa, Chinesa e Indiana trazida pelos navegantes no retorno de suas viagens ao Oriente. Com a colonização, difunde-se amplamente no Brasil, entre as comunidades de pescadores em todo o nordeste e em Santa Catarina. As rendeiras e bordadeiras inspiram-se na flora e na fauna locais, utilizando ao mesmo tempo motivos que vêm de épocas longínquas e trazem vestígios de antigos cultos pagãos. Hoje, algumas destas técnicas estão desaparecendo, desvalorizadas e relegadas a um segundo plano. O trabalho de Caroline Harari procura dar uma certa permanência a tecidos belos e frágeis que tornaram-se descartáveis nos tempos atuais.
Rendas e Bordados do Brasil
Renda: A Construção de um tecidoA renda é um tecido construído e estruturado pela própria rendeira. Nela, os motivos do desenho são feitos à medida que a rendeira produz o fundo que estrutura o tecido.
Bilro
Originária da Península Ibérica e amplamente difundida pela costa brasileira, a renda de bilro, também conhecida como “renda de almofada”, é encontrada freqüentemente junto a comunidades de pescadores no Ceará, Rio Grande do Norte e Alagoas. A rendeira utiliza um pedaço de papel que, geralmente guardado há gerações, serve como molde do desenho a ser elaborado. Este papel é então afixado sobre a almofada com a ajuda de espinhos de mandacaru ou alfinetes. Em torno deles, a rendeira então irá repassar fios de linha enrolados em pequenos bastões de madeira, semelhantes a um fuso, presos em pequenos cocos de ouricuri, para compor desenhos variados.
Filé
Esta técnica milenar também era largamente difundida entre os Egípcios e Persas, de onde se disseminou para a Península Ibérica, particularmente Portugal. Envolve originalmente o uso de diferentes tipos de materiais na sua confecção. Em Portugal, é comum encontrar filé confeccionado com fios de linho ou mesmo de seda, porém sem o uso de pérolas de vidro ou fios de ouro e prata, como difundido sobretudo nos estados de Alagoas e Ceará, onde se utiliza como matéria-prima apenas o fio de algodão. O filé surge a partir de uma rede simples, composta de malhas e de nós, e por isso é também denominado “rede de nó”, seguindo a técnica de confecção da rede de pescador, que lhe serve de inspiração. Existe uma diferença entre o filé simples e o filé bordado. O filé simples restringe-se a uma rede de nó tecida a mão; já o filé bordado utiliza a rede de nó como suporte para o bordado, a ponto de passagem, que recobre alguns quadros da rede, de acordo com o desenho a ser criado.
Renascença
A renda renascença é uma técnica têxtil que teve sua origem na ilha de Burano, em Veneza, Itália, no século XVI. É confeccionada com agulha, linha e lacê de algodão. Em uma primeira etapa, faz-se o desenho sobre papel, que é preso sobre a almofada. O lacê é então afixado sobre o papel com a ajuda de alfinetes e entremeado pelos diferentes pontos da renda. Cada ponto é nominado segundo elementos da natureza, comidas, ou expressam na renda sentimentos e esperanças de quem os criou: aranha, abacaxi, traça, cocada, xerém, amor seguro, laço, sianinha, malha e amarrado.
Irlandesa
A renda irlandesa, ou ponto de Irlanda, surge na Europa, possivelmente no norte da Itália, em torno dos séculos XVI ou XVII. Sua tradição foi mantida nos conventos da Irlanda, de onde se difundiu para diversas partes do mundo. No Brasil, este tipo de renda é executado há várias gerações pelas artesãs sergipanas de Divina Pastora, fazendo parte do seu patrimônio cultural. Caracteriza-se pelo uso de lacê, um cordão sedoso, que a diferencia da renda renascença. É elaborada com linha e agulha que, seguindo o roteiro de desenhos feitos em papel grosso e que é preso em almofada, perpassam os meandros e os florões delineados com o lacê, formando assim uma variada combinação de pontos.
Bordado – A desconstrução e ornamentação do tecido
O bordado é um trabalho de ornamentação feito com agulha sobre um tecido que lhe serve como suporte. Todo o trabalho, executado sobre tecido desfiado, do qual se retiram fios da trama ou do urdume, é considerado bordado, pois os fios que permanecem servem de suporte para a ornamentação.
Labirinto
Trazida pelos colonizadores portugueses, e difundida em todo o nordeste do Brasil, esta técnica de bordado se confunde muitas vezes com a renda, porém o trabalho se estrutura em um tecido que é cortado e desfiado. Este processo requer muita destreza da artesã, pois ela deve retirar partes iguais de pequenas seções do tecido sem atingir as bordas, que devem permanecer intactas. Nesta fase, a artesã define o desenho que irá compor o tecido. Depois, com ajuda de linha e agulha, a artesã “torce”, isto é, envolve os pequenos desenhos quadriculados para que eles não se desfaçam, e então “enche” ou borda sobre as partes que compõem o desenho. Na última etapa, ela irá perfilar o desenho, retirando o excesso de linha e acertando as arestas do tecido.
Redendê
A “renda de dedo”, ou redendê, corruptela da denominação de um ponto nórdico chamado hardanger, é uma herança portuguesa que se estabelece nas comunidades ribeirinhas do Rio São Francisco, provavelmente em torno do século XVIII. Com linha, agulha, bastidores, as mulheres bordam sobre o linho, criando desenhos geométricos com nomes variados. Para que surjam os desenhos, é preciso a contagem paciente dos pontos a partir dos fios do tecido. Depois de bordado, o tecido de linho, preso em um bastidor, é então desconstruído com a ajuda de tesoura, que retira do centro do bordado as partes do linho que não foram cobertas pela linha. Este processo acrescenta o vazado ao bordado e compõe assim o redendê.
Boa noite
Uma variação do redendê, o boa-noite é uma reinvenção peculiar das bordadeiras de Ilha do Ferro, comunidade ribeirinha do Rio São Francisco. As flores nativas desta localidade, especialmente a flor denominada boa-noite, servem de inspiração para os bordados aplicados sobre os fios desfiados do linho.
Sobre a técnica
Caroline Harari aplica sobre a argila, sem chamote importada e nacional, a técnica de pintched ou “beliscão”. Talvez o beliscão venha do fato de usar os dedos em movimento de pinça. Para a produção de peças grandes, usa como apoio os moldes de gesso. Durante a secagem, retira os excessos de argila até atingir a forma desejada com uma estrutura mínima e sintética. A impressão da renda se dá no período de moldagem, respeitando a estrutura do tecido e a espessura da argila. Na monoqueima rápida em alta temperatura, o forno elétrico atinge 1300o C, tendo como resultado peças leves e resistentes.
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Guarinello, Norberto. Os primeiros habitantes do Brasil. São Paulo: Editora Atual, 1994.
Herança: a expressão visuala do brasileiro antes da influência do Europeu. José Valença, organizador. São Paulo: Dow do Brasil, 1984.
Medeiros, Carlos. Bordados e Rendas – Nos bragais de entre Douro e Minho. Lisboa: Programa de Artes e Ofícios Tradicionais/EMBFE, 1994.
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Paiva, Veronica e Raul Lody. Vivendo o São Francisco: bordados de Entremontes. Rio de janeiro: Funarte, CNFCP, 2001 – (Sala do Artista Popular, 96).