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Fernanda Martins e Sâmia Batista, do Mapinguari Design

ENTREVISTA

FERNANDA MARTINS

Publicado por A CASA em 15 de Dezembro de 2009
Por Daniel Douek

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"A metodologia participativa dá voz aos artesãos, mas não prescinde do designer como condutor e mediador"


Fernanda Martins é designer gráfica e diretora do Mapinguari Design.

 



Qual a importância de um projeto de identidade visual para as associações de artesãos?

É uma oportunidade de inserção em um mercado global excludente. Produtos manufaturados ligados a comunidades tradicionais tendem a ser pouco valorizados na origem, pois estas não possuem as ferramentas para explicitar os valores que vêm imbuídos em seus objetos, nem sua origem ou qualidade. Uma marca e demais produtos gráficos a ela associados, quando bem desenvolvidos (e, principalmente, quando desenvolvidos pela comunidade), são ferramentas poderosas de comunicação, possibilitando que o público consumidor compreenda melhor uma realidade distante e ajudando a criar uma ligação entre ambos.

As associações de artesãos são detentoras de conhecimentos e saberes importantes e devem ser valorizados por essas qualidades. Para se inserirem em um mercado competitivo, elas devem saber dialogar no mesmo nível.

 

Sustentabilidade, identidade, tradição. Como transpor essas ideias (abstratas) para os produtos (concretos)?

Tradição ou modernidade, artesanato ou tecnologia, são faces da mesma questão. Há diversos caminhos a seguir na abstração. Marcas partem de conceitos que são ideias que devem ser formadas na mente de cada pessoa que entra em contato com elas. Existem elementos comuns a serem trabalhados e compreendidos por todos: cores, tipografia, a forma com que as imagens são trabalhadas graficamente. O traço manual conecta-se à mão que cria. Volumes, brilhos e reflexos remetem à tecnologia – vide a quantidade de marcas com essas características no mercado. Tradição não quer dizer antigo, nem simples. Não há uma regra. Depende do processo de cada designer.

 

O que é design participativo? Em que ele se diferencia de processos tradicionais de design gráfico?

Em seu início, buscamos transformar o processo tradicional do design corporativo em uma ferramenta que possibilitasse aos artesãos serem ativos no desenvolvimento da identidade da associação e seu futuro. Hoje, diríamos que é a utilização de metodologias tradicionais do design, participativamente, para a criação de identidades visuais. Trabalhar com e não para o cliente.

 

Quais as dificuldades e limitações desse tipo de modelo?

Da parte do designer, as dificuldades residem na compreensão das diferenças culturais, pois é mais fácil assumir que temos tudo a ensinar e nada a aprender. É preciso estar aberto, saber ouvir. A adaptação da linguagem do design ao universo da comunidade também é necessária. Muitas vezes, chegamos com um discurso incompreensível para as comunidades. Parecemos ETs. Os tempos são distintos. Em nossa formação, há uma lacuna no conhecimento das metodologias participativas e a experiência em projeto é fundamental. É preciso compreender que a intervenção do designer gera muitas expectativas que, em sua maioria, serão frustradas. Por essa razão, o trabalho deve ser de longo prazo. Toda comunidade que visitei se perdeu rapidamente na continuidade do trabalho, voltando a fazer o que estava acostumada. O mais difícil mesmo é deixar o ego de lado, aceitar outros pontos de vista e trabalhar a partir deles.

Quanto às comunidades, são fatores limitantes: a falta de maturidade associativa, as rivalidades internas, a dificuldade em aceitar mudanças e seu próprio modo de vivenciar os processos novos. A dificuldade em produzir diversos modelos iguais a partir de protótipos é também um complicador. Mas a principal dificuldade é que as comunidades estão habituadas ao assistencialismo e, em sua maioria, esperam que as soluções venham de fora e de imediato.

 

A metodologia participativa concebe que o designer não deve influenciar excessivamente os resultados do projeto. Nesse processo, qual seria o papel do designer no trabalho com comunidades de artesãos? Como fazer para que a participação do designer não se sobreponha à participação dos próprios artesãos?

A metodologia participativa dá voz aos artesãos, mas não prescinde do designer como condutor e mediador. É o designer que conhece a metodologia e, por sua experiência, é quem traduz o resultado para uma linguagem de mercado. O importante é que os artesãos naveguem pela metodologia com prazer e tomem para si os conceitos que decidirem como seus. É mais importante sair da comunidade com um acordo sobre os conceitos do que com um desenho final. O resultado final sempre será acabado pelo designer, porém mais como um técnico que como autor.

É importante lembrar que o designer faz parte do processo. Ele pertence ao grupo nesse momento, e o resultado é o fruto da participação de todos, ele incluso. Essa é uma experiência coletiva e não há como imaginar um designer invisível.

O processo deve ser conduzido em suas etapas pelo designer, mas os dados e o conteúdo devem vir do grupo. As decisões e conclusões devem ser sempre tomadas coletivamente. Dessa forma, evita-se que o repertório do designer se imponha. É um momento delicado, pois nós nos entusiasmamos, e percebi algumas vezes que meu próprio entusiasmo influenciava o grupo. É o momento de sair de lado, aquietar, não dar opiniões.

Uma vez que se chega aos conceitos, o grupo deve desenhar. É a parte mais difícil, pois não estão habituados e muitos são inibidos. De posse da iconografia, chega-se coletivamente à imagem, às cores e tipografias. Deve vir deles para fora; deve ser verdadeiro, fazer sentido. O designer, então, traduz para a linguagem do mercado no qual o grupo atua.

 

Como se desenvolveu o trabalho com a Associação Ver-as-Ervas?

Ao nos depararmos com esse projeto, sentimos que era necessária uma nova forma de trabalhar. Eu morava há dois anos em Belém. Como poderia criar uma marca para uma associação que representa valores tão tradicionais da cultura paraense? Que iconografia cabia naquele universo? O ideal é que isso viesse dela.

Assim, trabalhamos com os componentes da associação as etapas de criação de identidade visual. Andamos pela cidade e identificamos quem seria sua concorrência, refletimos sobre a personalidade desses concorrentes, em que se pareciam ou se diferenciavam. Olhamos os produtos e chegamos à conclusão sobre como os erveiros ou seus produtos não deveriam se parecer. A partir daí, refletimos conjuntamente sobre os conceitos que deveriam estar representados na marca. Em uma reunião, também desconstruímos uma marca conhecida para mostrar como se transforma uma ideia em uma marca concreta; como se abstrai. Discutimos como conceitos eram demonstrados em marcas – conceitos como união, velocidade, feminilidade.

A essa altura, ainda não satisfeitas, resolvemos trazer dois artistas e solicitar que realizassem oficinas de desenho e pintura com os integrantes da associação. Foi pedido que desenhassem o dia a dia deles. Vieram à tona peixes, Ver-o-Peso, frascos de perfumes e folhas, muitas folhas – amor crescido, chega-te a mim, erva de São João, agarradinho, priprioca, chama e muitas outras ervas que representam seu cotidiano. De posse desses desenhos, fomos para o escritório e começamos a estudá-los. A partir deles, desenvolvemos três propostas que representassem união, saúde, tradição e cuidado.

Sempre buscamos trabalhar do concreto para o abstrato, do conhecido para o novo. Aplicamos as três propostas em camisetas, frascos, sacolas e rótulos. Apresentamos duas vezes em plenária. Para nossa surpresa, metade do grupo escolheu uma marca mais formal e metade a proposta que utilizava os próprios desenhos dos erveiros. Em segunda votação, esta última foi escolhida. O processo já foi aplicado em outras oportunidades, a nosso ver, com resultados positivos. As associações utilizam a marca construída coletivamente e manifestam sua aprovação.

 

De que modo o design pode contribuir no fortalecimento de comunidades tradicionais e associações de artesãos e sua sustentabilidade?

O design é o diferencial competitivo. Não é esta a definição que ouvimos sempre? Seja no desenvolvimento de produtos, seja na criação de material de comunicação, não há como um empreendimento evoluir sem design. No caso das comunidades tradicionais, o design, por sua visão sistêmica, pode colaborar na melhoria dos produtos, na melhoria da comunicação e no desenvolvimento de serviços, que considero o caminho para a sustentabilidade. Seguramente, não será estimulando o consumismo que vivemos hoje.

 

De que modo o design pode funcionar como um agente de transformação econômico-social e de promoção do desenvolvimento?

De várias formas. Hoje, o design conquistou uma atuação muito ampla por esse caráter sistêmico de desenvolver projetos, de compreender o problema e de envolver competências distintas. É através dessa forma de atuar que o design cumprirá seu papel, principalmente se o profissional da área deixar de lado o enfoque consumista dos dias de hoje. Acredito que o designer, o profissional que pensa criativamente o futuro, poderá imaginar maneiras inclusivas e inovadoras de estarmos neste mundo. Não podemos manter os padrões de consumo atuais. Projetos inclusivos devem propor novas maneiras de oferecermos o mesmo padrão de vida a todos. E mais: só promovendo a reflexão é que o desenvolvimento deixará de ser uma conquista de desejos ultrapassados para se tornar a realização de verdades que fazem sentido, no presente e no futuro.