"Não é da tradição delas fazer uso dos produtos que estão desenvolvendo hoje"
Luciana Vale é gerente de projetos e consultora do Artesanato Solidário e do Sebrae-MG.
Como e com quais objetivos surgiu o
projeto Veredas?
Nasci em Bauru, interior de São Paulo. Por
conta do casamento, fui morar em Minas Gerais, na cidade de Unaí. Morei em Unaí
por dois anos e, em seguida, fui para a zona rural, onde morei por oito anos.
Nesses oito anos em que estive na roça, entrei em contato com tecelãs e
fiandeiras. Aprendi a tecer com elas e descobri que essa atividade era
tradicional da região: há cerca de quarenta anos, todas as mulheres aprendiam a
fiar e a tecer como uma obrigação doméstica – elas tinham que produzir as
roupas dos maridos, calças compridas, cobertas, toalhas de mesa, toalhas de
banho, tudo o que fosse necessário para a casa. Porém, em 1988, ano em que me mudei
para a zona rural, vi que poucas mulheres ainda mantinham a atividade viva. Então,
comprei um tear, aprendi a técnica e, junto com outras quatro tecelãs, formei
um grupo para que começássemos a produzir e a vender.
O embaixador do Brasil na Inglaterra na
época, Paulo Tarso Flecha de Lima, tinha uma fazenda nessa região. Por conta de
um trabalho que fiz na escola rural, ele me conheceu, soube que eu estava
trabalhando com as fiandeiras e, junto com sua esposa, começou a comprar os
produtos que fazíamos para dar de presente na Inglaterra e nos lugares que
frequentavam mundo afora.
Um dia, ele me ligou pedindo trezentas peças
para um chá beneficente que iria ocorrer na Inglaterra. Eu disse que
trabalhando com apenas quatro teares não conseguiria cumprir o prazo. Como ele
é muito mais antigo do que eu nessa região, ele questionou: “mas cadê aquele
monte de mulher?”. Eu respondi: “acabou tudo, elas pararam de produzir. Elas
mudam para as cidades arrumam emprego como doméstica, faxineira, cantineira...
tudo, menos trabalhos ligados à fiação e tecelagem. Elas estão perdendo o
contato com essa atividade por ser muito ligada à zona rural”. Então, ele sugeriu
que eu fizesse um projeto para que nós recuperássemos a fiação, o tingimento
natural e a tecelagem no modo como essas atividades eram feitas antigamente.
Em 1996 ou 1997, o projeto foi
implementado para oitenta fiandeiras e vinte tecelãs. Ele foi exitoso no que
diz respeito à recuperação da tecelagem tradicional, os pontos, os repassos, os
desenhos antigos que elas faziam, mas nós não conseguimos recuperar a fiação e
o tingimento: as mulheres de Unaí, para quem esse projeto foi direcionado, já
tinham perdido o contato com o algodão e com as plantas. Elas estavam morando
na cidade e não queriam voltar a mexer com isso, pois dava muito trabalho.
Então, começaram a comprar linha industrial crua nas indústrias e as tingiam com
uma cartela de corantes químicos, o que me deixou um pouco frustrada. A Tecelagem
de Unaí foi inaugurada em 1998. No mesmo ano, a doutora Ruth Cardoso estava
criando o programa Artesanato Solidário e fez uma pesquisa buscando quem já
tinha trabalhado com a atividade de resgate de tradição. Ela me chamou para
ouvir a experiência e me contratou.
Estou no Artesanato Solidário desde
1998, quando a primeira equipe foi formada. Fui trabalhar em Urucuia, com as
caixinhas de buruti, e, depois, no Vale do Jequitinhonha. Em 2002, estávamos
fazendo um mapeamento para identificar as atividades tradicionais em risco de
extinção e, então, contei sobre aquela minha frustração de nunca termos
conseguido trabalhar com as fiandeiras, e que havia muita gente que conhecia a
técnica, mas que estava acabando. Foi aí que surgiu o projeto Veredas. A
princípio, o projeto abarcava as cidades de Uruana, Sagarana e Riachinho – três
núcleos com cem fiandeiras. A partir de 2005, o projeto se expandiu para
Bonfinópolis e Natalândia.
Essas cidades se localizam no noroeste
de Minas Gerais, estando muito mais perto de Brasília (180 km) do que de Belo
Horizonte (700 km). De que modo a construção de Brasília, no final dos anos 50,
e sua instituição como capital do Brasil interferiram na produção artesanal da
região?
Para as mulheres dessa região, a fiação
e a tecelagem não eram atividades de geração de renda, mas uma obrigação
doméstica para prover a família. Elas faziam porque eram obrigadas a fazer,
senão não teriam os tecidos. Com a construção de Brasília, foram criados postos
de trabalho, estradas, e elas tiveram acesso a lojas em que podiam comprar as
roupas que antes tinham que fazer à mão. Com isso, as comunidades pararam de
produzir e muitas mulheres saíram da zona rural e foram morar em Brasília.
Se, por um lado, Brasília foi o maior
motivo para que essas mulheres deixassem de produzir, por outro lado, hoje,
para as que retomaram a atividade, é o melhor lugar para vender. A cidade tem
uma renda per capita alta, as pessoas consomem e valorizam esse trabalho
e é o centro urbano e a capital mais próxima da região. Então, o que era um
risco para a atividade é, hoje, o maior dos estímulos.
Com o projeto Veredas, houve alguma
mudança em relação a esse processo de êxodo rural?
Acho que, de certa forma, conseguimos
frear esse processo. As 180 mulheres que estão no projeto não têm interesse em
sair para Brasília. Mas não conseguimos motivar seus filhos, a próxima geração,
a seguir nessa mesma afinidade para poder dar continuidade ao trabalho. As mulheres
que estão na zona rural tiveram baixa escolaridade e não conseguem obter um
ganho maior nos centros urbanos, mas a nova geração já tem mais estudo. Para
que a atividade tenha continuidade, o estímulo vai ter que ser financeiro, uma
vez que essa não será a única oportunidade de trabalho, como ocorre no caso das
mães.
Quais os impactos mais significativos gerados
nas comunidades envolvidas com o projeto Veredas?
O mais importante foi a valorização da
atividade como arte, deixando de ser uma obrigação. Houve uma mudança de
conceito entre o grupo e nós tivemos que começar por ela para que as mulheres pudessem
acreditar no projeto e soubessem que aquilo não era mais uma obrigação e, sim, uma
atividade que tem valor cultural.
A inserção dessas mulheres no mercado
também foi muito importante, e elas têm diversas motivações. Muitas já são
aposentadas, o que lhes garante um salário mínimo como renda fixa. Ao mesmo
tempo, o que conseguimos colocar de dinheiro na mão das fiandeiras no final do
mês não ultrapassa esse valor, ou seja, a questão financeira não é a sua principal
motivação. Mas elas voltaram a se encontrar, recuperaram os mutirões, se
sentiram valorizadas enquanto artesãs e artistas, foram reconhecidas como um
movimento cultural muito forte na região e, com grande frequência, têm sido
convidadas a se apresentar fiando, cantando e contando sua história em diversos
eventos importantes. Nesse sentido, o impacto maior é na inclusão social; só depois
vem a questão da geração de renda.
O que eram os mutirões?
Os mutirões eram manifestações de
solidariedade entre as comadres. Nas roças, as mulheres dividem a atividade de
fiar com outras inúmeras tarefas da casa como lavar, passar, cozinhar, levar
marmita para o marido, fazer queijo, farinha, preparar a galinha etc. Mas, se
após ser colhido, o algodão for guardado, sem que o fio seja preparado, ele
caruncha. Então, quando alguma dessas mulheres se atrasava por qualquer motivo e
as vizinhas e comadres percebiam que ela iria perder a matéria-prima, se organizavam
e faziam o mutirão. Sem avisar, elas chegavam à casa da beneficiária cantando e
levando comidas típicas e a roda, seu instrumento de trabalho, para auxiliar
aquela pessoa que estava com o serviço acumulado. Chamamos isso de mutirão, mas
elas falam em traição, porque a beneficiária era pega de surpresa. Aconteciam
também mutirões quando alguma delas iria casar a filha na roça e tinha que
prover todo o enxoval. Nessas ocasiões, as mulheres passavam o dia fiando,
cantando, conversando, rezando. À noite, os maridos se juntavam a elas, e esses
mutirões acabavam em festa, com forró e tudo o que tinha direito.
Como isso foi retomado?
Quando começamos o projeto, fazia mais
de vinte anos que elas não organizavam mutirões. Então, resolvemos fazer um
mutirão na sede da associação de Sagarana para ver quantas fiandeiras
conseguíamos juntar. E foi um sucesso, deu mais de 150 fiandeiras. De lá para
cá, a cada ano, um dos grupos do projeto Veredas é o anfitrião e recepciona os
outros grupos e as fiandeiras que não estão associadas. Esses mutirões chegam a
reunir, ao todo, duzentas fiandeiras. É o dia inteiro de festa, têm comidas
típicas, cantorias, apresentações culturais. Vem gente de longe para vê-las
fiando e cantando. Elas apresentam a comida da forma como faziam na roça, tem
muito biscoito assado na folha de bananeira. É muito interessante, vale a pena
conferir.
O projeto Veredas obteve o 1o
lugar na categoria Ação Socioambiental do 1o Prêmio Objeto Brasileiro.
Qual a importância dessa conquista?
Em primeiro lugar, a premiação em
dinheiro foi muito interessante. O valor recebido foi dividido entre os cinco
grupos e cada um usou de uma forma diferente. Em um dos grupos, as mulheres dividiram
o dinheiro e cada uma ficou com uma parte; em outro, decidiram investir em
matéria-prima; em outro, fizeram uma festa.
Além disso, as duas mulheres que foram
a São Paulo receber o prêmio representando o grupo fizeram uma avaliação muito
legal, de que o prêmio havia sido bastante concorrido, de que o nível estava altíssimo.
Elas realmente ficaram muito felizes, foi um marco. Como realmente havia bons
projetos do país inteiro concorrendo e, mesmo assim, elas ganharam, se sentiram
valorizadas.
Há um antes e um depois
do prêmio também no que se refere à visão que os parceiros locais e regionais
têm do projeto. Quando você ganha um prêmio de uma dimensão como essa, a
prefeitura fica orgulhosa, e os parceiros percebem que vale a pena investir e
ajudar. Essas mulheres estão fazendo por merecer, e o projeto está sendo
valorizado não só por nós aqui na região.
Você atua como consultora do Artesanato Solidário em projetos ligados ao
artesanato. Qual o papel do consultor em projetos dessa natureza?
No caso dos projetos do Artesanato
Solidário, seguimos uma metodologia com duração de 18 a 24 meses para
implementá-los, o que envolve a organização dos grupos, o apoio à sua
formalização etc. Por conta da natureza da atividade, que é lenta, e devido ao
perfil dos grupos, você acaba se envolvendo e virando amiga, psicóloga,
contadora, despachante, além de consultora que deve ajudá-las a buscar
resultados. Estabelecemos uma relação de confiança muito interessante. Particularmente,
sinto-me muito envolvida e comprometida com os grupos. Temos muita afinidade e
conseguimos fazer com que as ações em campo fluam bem. Mensurar os ganhos de um
projeto não é uma coisa muito fácil. É um trabalho de formiguinha, que ocorre no
dia a dia mesmo.
Você também atua no sentido de sugerir adequações
nos produtos de modo a inseri-los no mercado ou trata-se de um trabalho mais
administrativo, de gestão?
Eu faço de tudo. Por exemplo, recentemente,
nós desenhamos uma mochila que nos foi encomendada por um congresso. Desde a escolha
do tamanho, o forro, a alça, a busca de fornecedores, o estabelecimento do
controle de qualidade até a eleição da nova diretoria da associação, eu acompanho
tudo.
O Artesanato Solidário fica cerca de dois
anos em cada grupo. Aqui, já tem mais tempo, porque como a tipologia é muito
lenta e o trabalho é em rede, isto é, uma fia, outra tinge, outra tece, sendo cada
uma de uma associação, todos entenderam que era muito mais difícil fazer com
que isso funcionasse. Então, os parceiros do Artesanato Solidário me mantiveram
aqui de modo que eu pudesse continuar apoiando e que o trabalho que já havia
sido feito não fosse perdido, porque elas ainda não estavam prontas para andar
sozinhas.
Agora mesmo, estamos criando uma
central para diminuir um grande problema de mercado que temos que é a
logística. As transportadoras não vão buscar mercadorias na maioria dos lugares
em que trabalhamos, então fica muito difícil levar às lojas aquilo que
vendemos. Da mesma forma, pela precariedade de estradas, sempre tivemos
dificuldades em sair da região quando vamos participar de feiras. Então, para
podermos ir a uma feira, eu tinha que trazer os produtos de Bonfinópolis,
Natalândia, Uruana, Sagarana e Riachinho aqui na minha casa. Como poderei sair
desse processo? Quando o grupo estará autônomo? O que é necessário fazer?
Pensando nessas questões, o Artesanato
Solidário e seus parceiros, principalmente a Fundação Banco do Brasil e o
Sebrae, que estão aportando recursos, criou, no meio do ano passado, a Central
Veredas de Artesanato, que tem uma personalidade jurídica própria e irá apoiar
a comercialização. É uma entidade que também não visa lucro e recebe a produção
artesanal de oito associações – as cinco do projeto Veredas e outras três que
trabalham com buriti. Temos ali amostras de todos os produtos que elas fazem em
uma quantidade de quatro ou cinco peças para cada tipo de produto. Agora, quando
há uma feira, quem vai é a central, representando as oito associações. Na hora em
que voltamos, ligamos imediatamente para os grupos e pedimos novos produtos
para reposição. Essa central ainda é incipiente, mas espero que dê certo. Estou
tomando conta dela até o final do ano para fazê-la funcionar junto aos grupos. Ela
foi criada para eles e em função deles para agilizar a venda e garantir a
introdução de gente nova na atividade. Como falei, o estímulo terá que ser
financeiro.
Minha participação é essa. Quando necessário,
atuo também na qualidade dos produtos, na intervenção, no design, na busca de alguém
que possa ajudar, uma costureira profissional para qualificar nosso acabamento,
por exemplo. Cada momento, estamos em um setor. Envolvemos-nos também com outras
questões. Em Minas Gerais, as associações não podem ter bloco de notas, não
podem comercializar, devem seguir outro caminho para regularizar sua situação
tributária junto à Receita Federal. Algumas ainda não estão regularizadas,
então, fico acompanhando e vendo o que é necessário fazer. Por exemplo, no
final do ano passado, houve troca de diretoria em quatro das oito associações
que a central atende. Verifico se as atas foram registradas e se tudo foi feito
de acordo com as normas, porque é nisto que elas têm dificuldade: gestão. A
grande maioria das pessoas que integram algum dos grupos do projeto Veredas tem
baixa escolaridade. Muitas mulheres não sabem ler ou escrever. Se as mulheres
não sabem nem ler, como vão fazer planilhas? Estamos treinando pessoas que não
são artesãs para acompanhar essas atividades necessárias à gestão da associação
e à gestão da produção. Chamamos essas pessoas de “agentes de desenvolvimento”, e há uma em cada associação sendo
treinada por mim para que eu possa sair e os grupos adquiram autonomia.
Como estabelecer uma boa relação entre
artesãos e consultores que atuam no projeto?
Até hoje, os consultores que vieram fazer
alguma intervenção foram selecionados pelo Artesanato Solidário, instituição que
tem essa preocupação de chamá-los antes, conversar, mostrar o perfil do
trabalho.
Várias designers já vieram. Chamo a atenção
para o caso específico da Bia Cunha, que é uma tecelã e designer da indústria
têxtil de São Paulo. O tear dela é moderno, todo automatizado, computadorizado,
e ela veio dar consultoria para o que tem de mais primitivo nessa tipologia,
que são teares feitos à mão – todo equipamento das mulheres aqui da região é feito
por elas mesmas, e são rudimentares. E o que aconteceu? Além de ter um preparo
do Artesanato Solidário, de já ter conhecimento a respeito de qual era a
proposta, a Bia Cunha também veio com a intenção de aprender o máximo possível.
Só depois que ela teve tempo para aprender a linguagem das mulheres é que ela pode
introduzir algo novo. Essa consultoria foi muito eficiente.
Tenho admiração por esse modelo, porque
é necessário ter muita sensibilidade. Nesse projeto, por exemplo, nunca quis
ter consultorias, palestras ou oficinas sobre a questão de gênero, isto é,
sobre como as mulheres vão fazer para assumir outros compromissos fora as atividades
domésticas, sobre como lidar com o marido, sobre como administrar essa nova
fase em casa, o fato de elas terem dinheiro e não dependerem mais só dos cônjuges.
Como a tecelagem é um processo muito lento, todas essas questões foram
abordadas não na forma de uma oficina de gênero, que consta na metodologia do
Artesanato Solidário, mas eram assuntos que permeavam as atividades durante
todo o tempo em que estávamos com o grupo. Essa flexibilidade é muito
importante.
Além disso, se o consultor vier com uma
linguagem difícil, não dá certo. Ao tratarmos de preço, por exemplo, é muito
complicado, pois entra em conceitos como “depreciação” etc. É muita conta, são
muitos conceitos novos, então pedimos para que os consultores tenham
sensibilidade na hora de transmitir isso. Algumas coisas as mulheres assimilam.
Às vezes, elas entendem tudo durante a oficina, mas nem todas conseguem aplicar
depois o que aprenderam, por causa dessa dificuldade de ler e escrever que elas
têm.
Nos relatos sobre o programa, é comum
observarmos afirmações de que se trata de um resgate de técnicas artesanais
ancestrais (“resgatar”, “recuperar”, “revalorizar” são termos bastante comuns).
Da maneira como isso é colocado, a impressão que dá é a de que há uma espécie
de retorno a uma condição que existiu no passado, mas estava esquecida. No
entanto, uma análise mais minuciosa mostra que, apesar da utilização de determinadas
técnicas ancestrais, o que se configura é algo radicalmente novo, sem muita
ligação com o passado: há presença de consultores, divisão do trabalho,
adequação dos objetos a um mercado consumidor interessado em valores que não os
da própria comunidade, estabelecimento de cooperativas e associações, a
transmissão dos saberes não é mais apenas intrafamiliar, há participação dos
artesãos em grandes feiras de negócios etc. Até que ponto é possível dizer que
existe um retorno em vez de uma configuração completamente nova e condizente
com o contexto atual?
No caso do projeto Veredas, fazemos um
resgate da atividade em si, porque as mulheres estavam parando de fiar e de
tecer, mas a introdução do designer não visa garantir que elas façam o mesmo
produto que faziam há trinta ou quarenta anos. Isso nem seria possível, pois
não conseguiríamos viabilizar as vendas e essa relação com o mercado. Por
exemplo, tradicionalmente, elas faziam colchas para as suas camas; hoje, elas
fazem a colcha com a mesma linha, com a mesma técnica tradicional da tecelagem,
mas há uma intervenção enorme no produto para adequá-lo ao mercado. Há um
padrão de tamanho do produto que vai para a loja, para citar apenas um exemplo.
O designer vem com essa finalidade de
adequar a produção ao mercado, mas a técnica tradicional se mantém. Os produtos
não são tradicionais, as técnicas é que são. Elas fazem jogos americanos e
mantas para sofá. São coisas para o mercado. A maior parte delas não tem nem sofá
em casa e não sabe para que serve um jogo americano – elas aprenderam agora.
Não é da tradição delas fazer uso dos produtos que estão desenvolvendo hoje.
Muitas continuam fazendo produtos
tradicionais, como os cortes de calças para os maridos e o cochonilho, usado debaixo
da sela do cavalo. Porém, se o cochonilho, para elas, é um apetrecho para andar
a cavalo, para nós, é tapete. Então, elas continuam fazendo os mesmos produtos
com outros usos, e produtos novos com a mesma técnica.
É a mesma coisa no caso das caixinhas
de buriti. Antes, o buriti era usado para fazer brinquedos. As caixinhas foram
desenvolvidas a partir do mesmo manejo da planta, mas o produto é completamente
novo. Tem caixa de bombom, caixa de joias, caixa de sabonete – as pessoas
compram caixas para tudo o que você puder imaginar. Então, são outros usos para
uma atividade tradicional.
Não são gerados conflitos a partir do
momento em que se sugere que elas façam coisas que não têm tanto sentido em
suas vidas, como um jogo americano ou uma manta para sofá?
Não, elas acham o máximo as pessoas
comprarem aquilo e elogiarem. Há alguns conflitos em relação ao corante
natural, pois elas queriam outras cores. O corante natural produz tons pastéis
e teve certo período em que a moda era roxo, laranja, rosa-choque e não conseguíamos
atingir essas cores utilizando tintas naturais. Elas queriam fazer seus
produtos com as cores da moda, então queriam comprar tintas industrializadas.
E mesmo no caso dos produtos. Elas
falam assim: “nossa, esse pessoal das feiras adora essas mantas e essas
estolas”, mas as artesãs mesmo não usam isso. Por outro lado, tem produtos que
elas fazem para elas. É possível encontrar em suas casas colchas, tapetes,
bornal, que é uma espécie de bolsa que se usa muito na zona rural para levar
mantimentos. Algumas coisas, elas assimilaram. Hoje, parte delas enfeita a cama
com xales na beirada. Mas, em geral, elas usam pouco aquilo que fazem para o
mercado. Algumas mulheres começaram a usar jogo americano, mas a grande maioria,
não, elas não assimilam.
Enfim, não criamos nenhum conflito,
houve apenas certa resistência no começo, com elas perguntando: “para que vamos
fazer isso?”, “para que serve isso?”. Mas, depois, elas começaram a vender. É o
caso, das cortinas, por exemplo. Elas não têm cortina na casa, mas vendemos muitas
cortinas, e elas acham o máximo poder vender cortinas, mesmo não tendo. Então,
isso não é problema para esse grupo.
Há venda para o mercado local?
Muito pouco, porque como o produto
remunera de três a quatro pessoas, elas o consideram caro. Além disso, como
todo mundo da região sabe fazer, elas não valorizam tanto quanto o mercado
externo.
Como a venda local é insignificante, sempre
temos que sair para vender em feiras e eventos. Caso contrário, o projeto para.
Vendemos localmente esses tapetes usados para por debaixo do arreio do cavalo,
e corte de calça, que é tradicional da região. Alguns homens ainda mantém essa
tradição de se vestir como antigamente e compram muito. Mas são apenas esses
dois produtos, não conheço mais nenhum que tenha venda local.
A antropóloga Aline Sapiezinskas, em
sua tese de doutorado, faz a seguinte afirmação: “com isso, somos forçados a
nos apartar daquela ideia romântica do artesão que vive meio isolado do mundo,
produzindo um artefato apenas pela ‘arte’, ou simplesmente para ser vendido a
preços baixíssimos no meio da calçada de uma rua qualquer. O artesão de que
estamos tratando está inserido numa rede de relações, vive num mundo
globalizado, em que exportação e feiras internacionais não são realidades tão
distantes. (...) A busca por conquistar o mercado consumidor torna-se uma etapa
necessária para garantir a sustentabilidade do projeto de artesanato com
finalidade de geração de renda, e não um fim em si mesmo. Observar esse dado
permite a apreensão de novos significados para as antigas práticas”. Você
concorda com essa afirmação?
Concordo plenamente, ela está
certíssima. Hoje, a primeira renda do artesão é para comprar um telefone celular,
ele está por dentro de tudo, quer escolher as feiras que vai. Não existe mais esse
artesão que vai fazer para vender baratinho. Ele conhece o preço justo de seu
produto, ele tem referências.
Como você enxerga o futuro das
atividades de fiação, tingimento e tecelagem?
Hoje, enxergo o futuro com preocupação.
Inclusive, por causa da faixa etária avançada das mulheres que estão
produzindo. A tecelagem não me preocupa, o que me preocupa é a fiação, que é
uma das etapas da cadeia produtiva, porque as novas gerações não querem se
manter na roça, mesmo ela tendo melhorado. Esse grupo de mulheres que está no
projeto Veredas viveu na zona rural de forma extremamente precária para os
parâmetros de hoje. Não tinha energia, não tinha estradas. Hoje, as pessoas têm
muito mais facilidade para sair.
Estimular os mais jovens a manter a
atividade é uma coisa que deve começar dentro de casa com o repasse da técnica,
como era feito tradicionalmente. Isso, nós estamos conseguindo, mas não no
volume que era esperado. Temos casos de meninas que com 12 ou 13 anos já estão
fiando, querem aprender, ajudam as mães em casa. Não associamos, porque
crianças não podem entrar nas associações nem no mercado de trabalho, mas o
repasse do conhecimento está sendo feito. Estimulamos isso no projeto, mas nada
garante que elas vão permanecer na atividade. Isso é uma preocupação muito
grande que temos aqui.
O grande desafio desse projeto é
estimular as pessoas a se manterem na atividade, tanto pelo aspecto de geração
de renda – então, teríamos de ter regularidade nas vendas, de forma a
possibilitar um ganho mínimo que as satisfaça – como pelo aspecto cultural –
elas teriam que entender isso como uma valorização da própria cultura. Se as
pessoas da nova geração não se interessarem, elas vão romper com esse processo
de transmissão de conhecimento entre gerações.
Tentamos conscientizá-las em relação a
esses dois aspectos. Mas o ganho ainda é pequeno, então temos o desafio de
conseguir mercado para que elas possam ter uma renda similar a uma atividade
que pleiteiam normalmente.
Você disse que a tecelagem não lhe preocupa
e, sim, a fiação. Por quê? Quais as principais diferenças entre esses dois
saberes?
A fiação ocorre na zona rural. A
fiandeira colhe o algodão e, na hora em que está em casa, divide essa atividade
com as outras. Então, de manhã, ela tira leite, faz queijo, vai preparar a
galinha, faz comida, leva a marmita para o marido na roça e, no final da tarde,
pega o algodão e vai fiar, produzindo a linha. É um trabalho que complementa a
renda doméstica na zona rural. Já a tecelã, pega essa linha depois de tingida
ou, então, crua mesmo, e tem o trabalho de colocar no tear e imaginar qual peça
irá fazer. Ou seja, é um serviço que depende do serviço da primeira, mas ela
tem de sentar no tear e dedicar de seis a oito horas por dia. Essa mulher vê essa
atividade como um trabalho mais assíduo – “vou produzir tantas peças para
determinada feira”. A fiandeira, não, ela faz de modo um pouco aleatório.
O projeto Veredas não compra linha, ele
faz a linha, esse é o seu diferencial. As mulheres pegam o algodão na
associação e levam para casa para fazer a linha. A linha pode ser fina, média ou
grossa. Cada uma tem um valor e é destinada a determinado produto.
Se, por exemplo, a associação de
Sagarana vende muitas cortinas e as cortinas são feitas com linha média, na
reunião mensal das fiandeiras, a presidente fala: “esse mês nós vendemos muitas
cortinas, precisamos repor o estoque de linha média”. Aí as fiandeiras fazem
linha média. Quando é corte de calça, é linha fina; quando é coberta, é linha
grossa. Então, elas variam nessas três espessuras. Algumas fiandeiras fazem só linha
média, porque não gostam de fazer as outras. Em princípio, elas são muito
livres para produzir, não lhes é cobrada nem produtividade nem espessura. Mas
quando há grandes encomendas, nos reunimos e falamos: “olha, vamos precisar de
determinada linha para cumprir um pedido”. Aí elas se organizam para produzir o
que a associação está precisando no momento.
Como conciliar a lógica mais lenta e
permanente do modelo de produção artesanal com a lógica do mercado, sempre em
busca de novidades e necessitando, por vezes, de grandes produções?
A atividade é lenta por si só, e a
capacidade de produção é limitada pelo próprio fazer artesanal. Uma fiandeira
fia, em média, dez quilos de linha por mês. O máximo que conseguimos foi que
elas passassem para vinte quilos, mas é um esforço físico muito grande. Sabendo
disso, temos como projetar sua capacidade de produção e inserir os produtos no
mercado através de uma coleção ou participando de feiras, sempre visando o
consumidor final. Nunca vamos para esse setor de grandes lojas. Isso é contraditório,
mas, agora, estamos tentando, porque, ao mesmo tempo, precisamos ter uma renda
constante.
A estratégia é participar de feiras com
frequência ou, então, deixar uma parte da produção para o setor de brindes, que
é o que estou tentando fazer agora. Queremos fazer um contrato com uma empresa
que compre mensalmente. Aí garantiríamos uma renda fixa com regularidade e poderíamos
atrair novas pessoas para o projeto – aliás, não são novas pessoas, são pessoas
novas –, deixando um percentual da produção para os produtos trançados
tradicionalmente que já têm aceitação no mercado, como as cortinas, as estolas
e os tapetes. Temos que destinar uma parte da produção para esse fim para
também não apostar em um único cliente, para diversificar e ter certa segurança.
Trabalhamos com elas o seguinte: levando em consideração todas as questões que interferem na produção, quanto cada associação consegue produzir? As questões que interferem na produção são, por exemplo: o período de chuva, em que a fiação é muito mais lenta, a colheita do algodão é mais difícil e o transporte é mais complicado, as festas religiosas, já que elas têm um calendário religioso muito grande e para nas festas, não adianta querer que elas produzam na Semana Santas etc. Então, é preciso adequar tudo isso a uma produção de estoque e a uma quantidade definida para que eu possa acertar com o mercado, porque também não tem como dar um passo maior do que a perna. Nosso grande desafio é este: achar um ponto de equilíbrio entre a produção e o que o mercado quer, de forma a garantir renda para todo mundo.