Fale um pouco sobre a sua trajetória. Desde a formação até o envolvimento com o artesanato brasileiro, o Museu de Folclore Edison Carneiro e a Sala do Artista Popular.
Comecei a me envolver no mundo do objeto e do objeto artesanal quando estudante de faculdade. Eu fiz Ciências Sociais na UFF, em Niterói, na década de 1970, e, logo que entrei para a faculdade – no segundo semestre da faculdade –, fui estagiar no Setor de Etnografia do Museu Nacional. Ali eu descobri esse grande mundo do objeto artesanal, numa reserva que tinha objetos do século XIX, objetos artesanais de tradição indígena, objetos populares do século XX, objetos da Oceania, da África, esquimós etc. Os tais dos objetos artesanais constituíam acervo de museu. Foi o meu primeiro choque, de uma pessoa que se via, dentro do mundo industrializado, convivendo com objetos da indústria, e, de repente, tem um universo inteiro do artesanato na frente, objetos feitos à mão, extremamente impregnados de valores culturais, de identidade étnica. Isso tudo marcou a minha vida. A partir daí, desde a década de 1970, não me desliguei mais deste mundo. Fiquei no Setor de Etnografia do Museu Nacional durante onze anos, e saí dali em 1983 para ir trabalhar no Museu de Folclore Edison Carneiro, convidado pela Lélia Coelho Frota – que, infelizmente, faleceu hoje, e que era uma mulher fantástica, eu acho que uma das grandes pensadoras desse universo da arte e da arte popular no país. A Lélia, que era consultora de alguns projetos do Setor de Etnografia do Museu Nacional, assumiu, em 1982, a direção do então Instituto Nacional do Folclore e, em 1983, ela me convidou para ir trabalhar no Instituto. A proposta inicial era reformular as exposições do Museu de Folclore e a política do museu em si. Tanto o museu quanto o instituto eram instituições marcadas pela questão do folclore no país. O instituto tinha sido criado em 1958 como a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, e era o “espaço do folclore nacional”. Ele sempre foi administrado por folcloristas. Existe todo um campo enorme de discussão disso aí – “como é que surgem e se implementam os estudos do folclore no Brasil?” –, uma guerra, eu diria, uma disputa muito forte pelo campo intelectual entre o folclore e as ciências sociais que se dá no momento de constituição das ciências daqui. O folclore perde essa luta, isto é, ele não consegue se institucionalizar como uma ciência no Brasil. Ao contrário da política, da sociologia, da antropologia, das ciências sociais, que se transformam então, o folclore é alijado da academia, da carreira universitária, ele fica reduzido a poucas instâncias, uma delas era a Campanha do Folclore Brasileiro, posteriormente transformado em Instituto Nacional do Folclore, ligado à Funarte. É nesse contexto que a Lélia entra ali, para promover uma transformação neste instituto, no sentido de dar uma dinamização a esta instituição, que significava aproximar esse universo do campo das ciências sociais. Ela vai buscar justamente uma aproximação com o Programa de Pós-Graduação em Antropologia no Museu Nacional e daí surge, então, esse convite para eu ir para o Museu. Fui para o Museu para trabalhar com as suas coleções, definir uma política de aquisição de acervos, uma política de exposições, repensar a exposição permanente. Então eu simplesmente transferi o meu universo de interesse sobre o objeto artesanal, do mundo indígena para o mundo da cultura popular. Aí criei uma Unidade de Antropologia dentro do Museu, que pensava a questão da pesquisa antropológica voltada para o registro desse objeto museológico, no caso o objeto de tradição popular, de origem popular. Nessa época, em 1983 também, a Lélia cria algo que eu considero extremamente importante na instituição: a Sala do Artista Popular, que está aí até hoje. A Sala é criada por ela como uma opção de trabalho com o objeto artesanal. Naquela instituição, todo o trabalho com o objeto estava voltado para pensá-lo como objeto folclórico, isto é, se definia como um objeto anônimo, coletivo, feito por comunidades tradicionais e, portanto, seu caráter autoral pouco importava. A Lélia parte de um pressuposto de que cada objeto tem um autor, tem uma marca autoral, que deve estar explicitado. Cada objeto desses, além de ser uma “alma do povo brasileiro”, como se pensava e se queria, tinha o caráter também de ser a identidade de um grupo, e era importante que o público fosse informado sobre isso. Esses objetos de origem popular, do folclore, do artesanato, eram comercializados no país como um objeto extremamente anônimo, despersonalizado, sem identidade, porque eles eram um objeto coletivo – com poucas exceções. Eles eram comercializados nas feiras tradicionais, nos mercados municipais, especialmente das cidades ou comunidades do interior, ou então em lojas nos grandes centros urbanos que vendiam o artesanato – aquela coisa empilhada, as prateleiras cheias de objetos. Nessas lojas, se você perguntava para o vendedor a procedência daquilo, ele sequer saberia te informar, e te dizia: “Ah, pouco importa, isso é feito pelo povo brasileiro”, é o máximo que interessava. Exceção a isso era, por exemplo, a loja aqui em São Paulo, O Bode , da Maureen Bisiliat e seu marido, Jacques , que foram dos primeiros a tratar esse objeto como um objeto especial, um objeto de arte, um objeto que tinha uma identidade, tinha uma autoria, que tem um indivíduo por trás etc. E a Lélia Coelho Frota era outra pessoa que também deu esse tratamento a esse objeto. Ela publica, ao que me parece, o primeiro livro que dá essa dignidade grande a essa produção popular, um livro chamado Mitopoética de nove artistas brasileiros, onde ela vai discutir justamente todos os conceitos de arte que estavam presentes nas discussões de uma arte erudita. Ela faz a transposição de um campo de arte erudita para o campo do popular, mostrando como são objetos que participam de um mesmo estatuto de dignidade da arte erudita, do artista erudito. Então ela cria a Sala do Artista Popular, que pressupõe um espaço que iria receber exposições de uma comunidade ou de um artista específico, mostrando a relação entre aquilo que este produzia e a sua vida, a sua visão de mundo, o seu contexto etc. Dessa forma, toda exposição era precedida – e é até hoje – de uma pesquisa, onde se procura situar esse indivíduo nesse contexto, fazer uma documentação fotográfica, editar um catálogo, de modo a informar o público sobre o objeto que ele está adquirindo. Eu estou trabalhando nesse espaço desde 1983. São 27 anos de trabalho e mais de 150 exposições realizadas.
O trabalho com a Sala do Artista Popular nos deu uma relação muito próxima com todo esse universo do artesanato no país. E o que acontecia com essas comunidades que expunham nesse espaço, um espaço de frente de rua, na Rua do Catete, em frente à estação do metrô? Cada comunidade levada a expor ali tinha um sucesso de venda muito grande. A gente realiza, no máximo, oito exposições por ano – cada uma delas permanece na Sala durante 30 ou 40 dias – e comercializamos sua produção pelo preço definido pela própria comunidade. Se, no início, a gente buscava as comunidades para expor ali, hoje a gente praticamente não precisa sair de lá, porque as comunidades passaram a nos procurar. A gente tem um cadastro de comunidades – talvez chegue a 300 – esperando a oportunidade de comercializar sua produção. Isso nos impede totalmente de repetir exposições. Se uma comunidade expôs ali, ela não poderia voltar tão cedo, porque a gente quer atender a todos os outros. Só que o sucesso da mostra era grande e fazia com que as comunidades quisessem voltar. Ficavam nos bombardeando com pedidos: “Quando é que a gente pode voltar a comercializar ai?”. E eu dizia: “Ah, não pode nunca mais”. Atender a 300 não vai ser fácil. E aí começamos a criar alguns artifícios para retorno dessas comunidades. Por exemplo: “Em dezembro, vamos fazer uma exposição com temática de presépio”, de modo que podemos convidar para participar todas as comunidades que já passaram pela SAP e que fazem presépio. Aí no outro ano inventávamos: “Ah, vamos fazer uma exposição só de imaginária sacra”, de modo a chamar todas as comunidades que fazem figuras de santo, imaginária. Mas isso era muito esporádico e muitas outras ficavam de fora. Então a gente acabou estendendo, criando um espaço de venda permanente. Ficamos com o espaço da frente de rua, onde realizamos exposições temporárias, e um espaço atrás, onde as comunidades que passaram por ali, pelo primeiro espaço, podem expor e comercializar seus trabalhos. Só expõe nesse segundo espaço quem já passou pelo primeiro, porque ele foi objeto de uma documentação, de modo a podermos dizer para o público que objeto é aquele que ele está comprando, quem é que fez, em que comunidade, “está aqui um catálogo dessa comunidade, onde você pode ler sobre esse objeto, sobre esse povo”. E aí passamos a vender os objetos, nesse segundo espaço, permanentemente. São os próprios artesãos que definem o valor das peças e, sobre esse valor, é embutido o percentual de 20%, que ajuda na administração do espaço e na contratação da pessoa que faz a venda. Como o espaço abre aos sábados, domingos, feriados, era preciso ter uma pessoa contratada, e, embora esse dinheiro não cubra totalmente os gastos, ajuda bastante. Ao final de cada mês, é feito o cômputo de vendas, é depositado no banco o total de venda de cada comunidade e é mandado pelo correio, e-mail ou fax a relação dos objetos vendidos de modo a comunidade poder fazer a distribuição do valor recebido entre o grupo e, ao mesmo tempo, controlar o seu estoque de objetos no museu. É um sistema que poderia ser dito de consignação, mas, ao mesmo tempo, não é uma consignação. Vejo aquele espaço como um espaço dos artesãos em si, são eles que promoveriam a venda se estivessem lá fisicamente. Na verdade, com esses 20% eles pagam uma pessoa para fazer a venda pra eles. Há toda uma estrutura da instituição, do Estado, do Ministério da Cultura, montada para atender a necessidade de comercialização desses artesãos.
Dessa forma, aparentemente, a gente solucionou tudo: há uma exposição temporária, editamos um catálogo, fazemos fotografias e passamos a vender a produção dessa pessoa lá. Só que aí começamos a observar que, às vezes, o público começa a solicitar peças de determinada comunidade: “Ah, a comunidade de renda de Marechal Deodoro fez uma exposição aqui, quando é que você vai ter mais peças deles para vender?”, “Não tem peças deles?”, “Não tem, não tem”. E a gente entrava em contato e descobria que eles não estão mandando peças por algum problema lá na produção. “Ah, a gente não está conseguindo a linha que a gente usava para bordar”, “A gente não está conseguindo o barro que a gente usava para fazer as panelas, o barreiro foi fechado porque era de uma fazenda e o dono atual não deixa a gente tirar o barro”, “Ah, a gente não está tendo a lenha para queimar as peças”. Enfim, tinha sempre uma questão que inviabilizava a própria produção. Aí a gente pensou: “Olha, não adianta a gente querer atuar no apoio a essas comunidades agindo apenas na comercialização, lá no ponto final dessa cadeia, é preciso que a gente esteja presente também na produção”. E aí montamos um projeto chamado PACA – Programa de Apoio a Comunidades Artesanais –, onde a gente pretendia então desenvolver uma coisa mais a longo prazo, pegando a cadeia como um todo. Só que isso dependia de recursos. Esse projeto foi montado na década de 1990 e ficou na gaveta esperando a oportunidade de conseguirmos recursos para poder então botá-lo em prática. Até que, no governo Fernando Henrique, nós fomos procurados pela doutora Ruth Cardoso, que já tinha a família dos Solidários. Ela vinha atuando com a Alfabetização Solidária, com Universidade Solidária, com o grupo dos Solidários, e queria trabalhar com artesanato também. E nos buscou, pensando numa instituição que pudesse definir os parâmetros de uma atuação consciente com relação ao artesanato, sem ser numa atitude assistencialista, que era comum nos governos municipais e estaduais e no governo federal. As primeiras-damas sempre mexeram com o artesanato de forma a conceder coisas para o povo e captar votos para seus partidos, para os candidatos, etc. A Ruth, uma mulher intelectual de grande saber, conhecimento, inteligência e sensibilidade, queria trabalhar com artesanato, mas sem essa marca assistencialista, e nos buscou naquele momento. Isso foi em 1998 e foi perfeito, porque a gente tirou o PACA da gaveta, ofereceu para ela, e surgiu o Artesanato Solidário. O Artesanato Solidário foi uma transformação dessa metodologia pretendida do PACA. Trabalhamos num primeiro projeto, experimental, que foi em Candeal, no norte de Minas Gerais, município de Cônego Marinho, uma comunidade produtora de cerâmica. Essa comunidade também era muito interessante porque quando eu estava à frente da Unidade de Pesquisa do Museu de Folclore, uma das linhas que eu vinha desenvolvendo era um programa de registro de tecnologias tradicionais do Brasil. A partir da análise do acervo do Museu de Folclore, detectei uma lacuna que dizia respeito à documentação de objetos da tecnologia tradicional, especialmente os objetos de transformação de produção de artesanato, o complexo de fazer cerâmica, torno, forno, certos complexos de madeira, de tecelagem, de renda, tear etc., que deveriam estar dentro do acervo e que o Museu não dispunha. Era preciso incrementá-lo. Havia também uma lacuna na questão da alimentação, isto é, toda a tecnologia de processamento de alimentos: farinha, o complexo de gado no sul do país, castanha do Pará, uma série de elementos. Dentro disso, logo detectei a ausência de instrumental ligado à aguardente, à cachaça. A cana de açúcar é um negócio presente na história do país e o Museu do Folclore não tinha praticamente nada de aguardente, de rapadura, de açúcar etc. Então, em 1986, se não me engano, resolvi montar um projeto de aquisição de acervo sobre cana de açúcar. Pesquisando, percebi que a região norte de Minas Gerais aparecia como uma região emblemática na produção de aguardente no país. Considerava-se que as melhores cachaças vinham do norte de Minas, de Salinas e também de Januária, que foi um dos primeiros pólos de colonização daquela região. Aí fui até Januária para pesquisar sobre aguardente, cachaça, e trazer o complexo da cachaça para o Rio de Janeiro, para o acervo do Museu. Chegando em Januária, fui ao mercado municipal – porque torna-se vício, quando você quer conhecer uma cidade, você vai aos mercados e vai às feiras, e ali você tem um retrato do que é aquela comunidade, aquele município, aquela região, ali você encontra tudo o que é produzido. E lá havia, junto a frutas, legumes e verduras, os objetos artesanais, especialmente uma cerâmica, que me chamou muito a atenção. Eram potes, panelas, travessas, colocadas naqueles estandes do mercado. Me falaram que esses objetos eram de uma região próxima dali, chamada Candeal, um lugar “próximo-distante”, que ficava a cerca de trinta e poucos quilômetros, mas era muito complicado de chegar, não havia estrada decente. Eu fui cuidar da aguardente, da cachaça, e consegui resolver tudo no Brejo de Amparo, que é uma das localidades ali. Quando terminei a coisa da cachaça, sobrou um tempo, e consegui ir ao Candeal para ver a origem daquela cerâmica. Me impressionou muito a extrema pobreza da população. Era uma população de zona rural que passava por uma crise terrível. Cheguei em casas de pessoas que, há três dias, estavam sem comida. O fogão apagado e eles sobrevivendo de cana de açúcar e laranja, uma laranja azedíssima, que eu não consegui chupar de tão azeda. Era só o que tinha. Enfim, um estado de pobreza, de indigência, muito grande. Aquilo me impressionou muito e sempre que eu pensava em população de baixa renda, população que precisasse de uma ação intervencionista, eu me lembrava do Candeal. Isso ficou e acho que estava na minha cabeça quando a gente formulou o projeto PACA, e, em 1998, quando a Ruth Cardoso apareceu, eu propus que, de imediato, se atuasse no norte de Minas, no Candeal. Era um momento em que se decretava uma grande crise nessa região, que era uma região da Sudene, e havia uma grande preocupação, porque passava-se por um período de seca muito intenso e, portanto, um período de flagelo, de necessidades do povo. E a Ruth dispunha de recursos justamente da Sudene para atuar no projeto. Então as coisas casaram e a gente montou o primeiro projeto piloto do Artesanato Solidário no Candeal. Nesse momento, a gente guardou na gaveta o rótulo PACA e adotou o rótulo Comunidade Solidária. O projeto foi muito bem sucedido e mostrou o caminho que a gente queria seguir – como lidar com essas comunidades, como atuar com essa realidade de forma não impositiva, não de cima para baixo, mais em diálogo, em construção com as populações locais, com os artesãos, com as artesãs. Isso permitiu ao Artesanato Solidário construir outras relações e adotar uma metodologia que foi sendo testada no dia a dia e gerou toda sua ação, que irá atuar até o final do governo do Fernando Henrique. Nesse período, no Museu, atuamos em 26 comunidades pelo país, apoiando a questão da produção do artesanato local. No final do período do Fernando Henrique, o Artesanato Solidário sai do âmbito do governo e se transforma numa OSCIP, no ArteSol, e prossegue com o trabalho. Esse foi o modo de garantir sua continuidade evitando, portanto, aquelas rupturas trágicas de mudanças de governo, que desmontam tudo. Nós permanecemos lá no Centro,atuando muito via Sala do Artista Popular, que hoje já fez mais de 150 exposições. Hoje temos quase 250 contas bancárias para administrar a distribuição de recursos. Isso significa um número grande de comunidades, de famílias etc.
Recentemente, retomamos a necessidade de atuar de forma mais intensa nesse universo e montamos um programa chamado Promoart – Programa de Promoção do Artesanato de Tradição Cultural. O princípio é esse mesmo: atuar apoiando comunidades que produzem artesanato, agora pelo viés muito intenso do reconhecimento do valor cultural desses objetos, da identidade desses grupos produtores. O Programa tem um aporte financeiro do Mais Cultura, uma contrapartida do BNDES, e vem sendo desenvolvido pela Associação de Amigos do Museu de Folclore Edison Carneiro. Ele é realizado em 65 pólos de produção de artesanato pelo país, está presente em praticamente todos os Estados, com raríssimas exceções. Nesse conjunto, o Programa atua com seis povos indígenas, que são administrados diretamente por meio de uma parceria com o Museu do Índio, que tem toda uma metodologia de trabalhar com as especificidades indígenas. E o Centro Nacional de Folclore, com o know how desse tempo todo de trabalho, atua com as comunidades chamadas brasileiras ou da cultura popular. Sim, o Centro Nacional do Folclore e Cultura Popular é aquele Instituto Nacional do Folclore da Funarte que, num determinado momento, tem o seu nome alterado, sai do campo da Funarte e vai para o Iphan, integrando então o Departamento de Patrimônio Imaterial. É isso. Um pequeno histórico.