Acabei de fazer 70 anos, agora em abril. Interessei-me tardiamente por essa questão de folclore. Me formei em psicologia no Rio de Janeiro – sou carioca –, e ingressei nesse mundo da cultura popular pela outra porta, não a da academia, da antropologia, mas a da própria cultura popular, por meio dos Movimentos de Cultura Popular, os MCPs dos anos 60.
Eu trabalhava no Movimento de Educação de Base (MEB), que era um Movimento de Cultura Popular ligado às idéias de Paulo Freire, e foi aí, precisamente em 1963, que comecei a pesquisar. Curiosamente, não por razões acadêmicas, mas por razões de pedagogia política. Comecei a fazer pequenas pesquisas e tive um primeiro contato com o que, naquele tempo, chamava-se Campanha Nacional de Defesa do Folclore, com Édison Carneiro e aquela belíssima geração de pessoas. Depois me reencontrei com a questão do folclore quando eu já morava em Goiás, e aí sim fui fazer antropologia.
Continuo trabalhando com educação popular até hoje – faço parte do Instituto Paulo Freire. Em Goiás, comecei a trabalhar com camponeses. Quase todos os meus livros são sobre mundo rural, negros e, sobretudo, rituais e festas: Folia de Reis, Festa do Divino, Festa de Nossa Senhora do Rosário. Fazia pesquisas e escrevia livros, alguns até publicados pela Funarte.
Mantive esse interesse de 1963 até hoje, quase sem quebra de continuidade, mas sempre com um pé na educação popular – na junção que ela tem com a cultura popular, no sentido paulo-freiriano mais político da palavra – e o outro pé na pesquisa acadêmica.
O que é folclore?
Eu tenho um livrinho que esse nome, “O que é folclore”, e vou responder com o começo desse livrinho, que eu gosto muito. Posso contar uma historinha? Antropólogo não gosta de definição. Nesse livrinho, começo dizendo que estava em Pirenópolis documentando as Cavalhadas. Isso em 1973, tempo em que quase ninguém ia e Pirinópolis era uma estradinha de terra perdida em Goiás. Antes da apresentação, estava ali fotografando, me preparando, e, de repente, veio um sujeito meio estrangeirado puxar conversa comigo. Ele era búlgaro, e eu nunca tinha visto um búlgaro! Ele estava com uma mulher, muito bonita por sinal, e me deu uma das definições mais bonitas de folclore que eu conheço. Ele dizia: “Vocês são um povo feliz, fazem isso como festa, como uma expressão de liberdade”. Búlgaros, poloneses e todo aquele pessoal dos Bálcãs têm uma vida muito sofrida, marcada por opressões e invasões estrangeiras. E continuava: “Isso que para vocês é folclore e motivo de festa, para nós eram símbolos identitários quando havia a proibição de cantar o hino nacional ou hastear uma bandeira”. E teve um momento em que ele disse essa coisa bonita, que eu até botei no livro: “As nossas bandeiras eram as saias bordadas das nossas mulheres”. É uma concepção dramática, mas que mostra esse sentido identitário profundo da cultura popular. Essa é a melhor definição de folclore que eu conheço, muito melhor do que a do criador da palavra folclore.
O Folclore é um produto das classes populares?
Isso é uma questão extremamente controvertida. Depende muito do olhar e da abordagem, mas, em princípio, se pudermos trabalhar com uma primeira aproximação mais grosseira, poderíamos dizer que o folclore é constituído por modos de pensar, de sentir e de traduzir isso sob as mais diferentes formas, que vão de lendas, mitos, crenças, poemas, epopéias líricas, teatros populares – como os nossos mamulengos e o bumba-meu-boi –, até a criação artesanal, que, inclusive, não se expressa apenas no que a gente pode comprar.
Essa questão poderia ser respondida em três gradações: a primeira é aquela em que se demarca o folclore ou a cultura popular – os dois nomes, às vezes, vão ser sinônimos, às vezes, vão ser diferenciados, até hoje isso é polêmico – como “do povo” num sentido de classe social. Seria a visão, talvez, mais gramsciniana, e era essa a leitura que nós fazíamos nos tempos em que eu trabalhava com cultura popular. Inclusive, tenho textos e livros em que trabalho com essa posição: numa sociedade desigual, a cultura popular é a cultura das classes operárias, das classes subalternas, das classes oprimidas. Eram esses os termos que usávamos no tempo de militância. É a visão que, até hoje, algumas pessoas têm quando fazem uma leitura mais marxista, mais gramsciniana. Ou seja, na sociedade desigual, cultura popular é a cultura das classes dominadas e se opõe à cultura erudita, que nós preferíamos chamar de “cultura dominante” ou “cultura hegemônica”.
Tanto assim que houve um episódio muito interessante. Uma vez eu estava em um congresso da UNESCO em Havana, Cuba, junto com pessoas de vários países da América Latina e Europa, e havia um alto funcionário do Ministério da Cultura local. E, no lugar onde nós estávamos – era um hotel, um centro de convenções –, havia representações muito bonitas muito semelhantes aos nossos orixás do candomblé. Eu me interessei pela peças. No intervalo, conversando com o funcionário, apontei e perguntei para ele o que era aquilo, e ele respondeu que era uma coisa antiga, existente naquele local desde antes da revolução cubana. Então eu disse que era antropólogo, tinha um interesse muito grande por religiões populares e gostaria de saber mais e, se possível, conhecer alguma coisa da arte e da cultura popular em Cuba. Ele me interrompeu com uma cara séria e disse: “Cultura popular é uma coisa que existe em países como o seu, que são sociedades capitalistas onde o povo é oprimido. Aqui não existe mais cultura popular, existe cultura proletária”. É aquela idéia gramsciniana, de que uma cultura proletária de uma classe revolucionária tendia a se confundir, agora, com a cultura cubana. Ele continuou: “Tudo o que se faz aqui é uma cultura pós-revolucionária, uma cultura de um proletariado libertário”. Aí comentei com ele: “Mas fiquei sabendo que aqui ainda tem cultos equivalentes ao candomblé do Brasil, uma outra derivação africana”. Ele respondeu: “Não, isso é uma cultura residual que, no processo cultural da revolução, tende a se extinguir”. Bom, então esta é uma primeira visão.
Uma segunda visão vai bater lá na origem da própria definição de folclore, identificando o folclore como essas diferentes manifestações do viver, pensar, sentir e criar do povo, mas sem essa conotação de classe. Então você tem uma cultura erudita e uma cultura do povo – uma cultura popular. Essa cultura popular tem, inclusive, um valor muito grande enquanto um repositório, um lugar social de preservação de tradições arcaicas. Alguns estudiosos do século XVIII e XIX, os primeiros antiquaristas e depois folcloristas, como os irmãos Grimm ou, aqui no Brasil, Câmara Cascudo, vão se voltar a essas tradições populares não apenas por ser algo do povo, mas por ser aquele lugar cultural onde se preservam as tradições de um povo na sua visão e versão mais pura – o romantismo alemão tem uma influência muito grande nesse sentido.
E uma terceira visão, que hoje em dia está sendo muito trabalhada – não se opondo a essa segunda, mas relativizando-a – é a idéia de uma circularidade de culturas e, ao mesmo tempo, hibridização. Ou seja, as culturas circulam e se intercomunicam muito mais do que nós imaginamos, e não só em termos geográficos. Por exemplo: o que faz com que São Luis se apresente como a capital do reggae brasileiro? E o hip-hop, o que é? Há pouco tempo, cerca de dois meses, eu estava no instituto Paulo Freire – em São Paulo, na Rua Cerro Corá, eu vou muito lá – e havia um folder divulgando um encontro paulista de hip-hop. Eu estranhei. Era um encontro não só com apresentações, mas com oficinas, mesas redondas, palestras e contava o patrocínio do Instituto Paulo Freire e da Ação Educativa, que são duas ONGs grandes, e da Prefeitura de São Paulo. E comentei com o Paulo Roberto Padilha, diretor do Instituto: “Olha, não me convidem, porque eu não vou. Eu ainda sou pesquisador antigo, de Folia de Reis, de Catira, não quero saber de hip-hop”. E eles me questionaram: “Mas os jovens de agora se comunicam através do hip-hop, do reggae, do rock, e não importa se isso vem de fora ou não, é o que eles vivem hoje”. De fato, para encontrar um jovem em uma Folia de Reis, tem que ser filho de um folião ainda devoto. Interessante essa discussão, essa questão da hibridização de culturas, não só desse ponto de vista geográfico, onde, de repente, o rock se apresenta, num mundo globalizado, como uma espécie de música não mais americana nem inglesa, mas universal – apesar de eu não gostar e nunca ter gostado, alguns vão dizer que é a única música universal do ponto de vista popular e não tenho como negar isso –, mas também num sentido vertical, no sentido de que, muitas vezes, a Folia de Reis, um ritual camponês, tradicional e popular, pode aparecer gravada por Martinho da Vila ou Ivan Lins, e, de repente, ser retrabalhada por um músico erudito e aparecer dentro de uma suíte como um movimento – “segundo movimento: Folia de Reis” –, assim como Villa-Lobos trabalhou as cirandas e cirandinhas brasileiras e musicou para orquestras e piano depois. Então a pergunta seria: será que ainda podemos lidar com essas divisões duais num mundo em que tudo se mescla, se hibridiza e se intercomunica? Será que não seria mais interessante procurarmos compreender – como o pessoal do Instituto Paulo Freire estava colocando para mim – não a pergunta “O que é que é folclore?” ou “Quem pratica o folclore?”, mas, por exemplo: “Se eu saio de um lugar com esse, Caldas, pequena cidade no sul de Minas, vou para uma periferia de Campinas e depois para um loteamento clandestino de São Paulo, o que encontro entre as pessoas? O que elas estarão fazendo – os jovens, os adultos e os idosos? O que rola e circula enquanto crença religiosa, enquanto ocupação criativa dos tempos de lazer, enquanto manifestação musical?”. Por outro lado, você vê o movimento oposto. No mesmo momento em que se coloca a questão de que a cultura popular tradicional ou o folclore arcaico do povo brasileiro estaria morrendo, fizemos uma pesquisa no município de Uberaba – eu assessorei – e descobrimos 157 ternos de Folia de Reis! Inclusive com a maior parte concentrada não mais no meio rural, mas na cidade. Se você for a São Paulo, não duvido que tenha mais de mil. O que é estar se perdendo ou estar acabando quando você vê esse renascimento? Muita gente diz: “Bom, o folclore dos negros em Minas Gerais é residual, existe ali nos Arturos, em algumas comunidades mais arcaicas”. Mas, há pouco tempo, ouvi falar de uma associação – não lembro se de congadeiros ou envolvendo também catupés, moçambiques – e tinha quinhentos e tantos grupos afiliados! Fora os que não estão afiliados. Vê-se o reggae, o Bumba-meu-boi, a Folia de Reis migrando para a cidade, essas tradições do tipo Congo realmente re-explodindo. Uma ex-aluna minha foi construir uma casa e disse para o pedreiro: “Quero uma casa tipicamente mineira”. Uma moça carioca, fazendo mestrado na Unicamp, que vêm para cá e faz uma casa no padrão mineiro. Há toda essa flutuação de inter-influências na música, na pintura e na própria arquitetura de hoje, rompendo fronteiras, quebrando balizas e incorporando o erudito no popular e o popular no erudito.
Das três visões que você acabou de apresentar, é a primeira delas que você defende no livro “O que é folclore?”, escrito na década de 1980. Hoje, como enxerga essa questão?
Quando escrevi isso, vocês nem tinham nascido, ou estavam no colégio ainda! Na verdade, eu nunca tive uma visão propriamente marxista. Sempre fui mais ligado a uma esquerda de Igreja Católica, de movimentos de ação popular. Sou da geração de Betinho, Frei Beto, Paulo Freire, Leonardo Boff. Todo esse pessoal é da minha idade. Foi toda uma esquerda de Igreja que, aliás, se mantém, em grande medida, até hoje. Nós fazíamos uma leitura mais gramsciniana, mais interessada na questão da cultura, e tínhamos um projeto revolucionário de criação de uma sociedade socialista. Era essa visão de cultura popular como uma cultura que incorporava a maneira popular de viver e sentir, desde os tempos dos escravos até agora, e, ao mesmo tempo, era algo imposto às classes populares. A hegemonia erudita controlava toda essa produção através de vários aparelhos de Estado, como a própria educação e a mídia. Então tinha muito essa visão, não só de uma sociedade dual, mas de uma cultura popular com essa dupla cara. Hoje em dia, diria que trabalho muito mais com uma integração entre a segunda e a terceira visões.
O próprio mundo mudou muito dos anos 1980 para cá. A globalização não existia, a idéia de um mundo em que, de repente, algo que é produzido na Malásia chega aqui ao Brasil e se transforma em moda. Isso não existia. O próprio mundo em que nós vivíamos nos apresentava essa face muito mais dualizada, as próprias ciências com que nós trabalhávamos naquele tempo, a antropologia, havia “o selvagem e o civilizado”, “o popular e o erudito”. Eu me lembro até de um número daquele jornal Movimento, um jornal do final do tempo da ditadura, que trouxe um artigo muito interessante chamado “Do índio à Boca do Lixo”. “Boca do Lixo” fazia referência àquela boca do lixo onde ficava a estação rodoviária do meu tempo, ali onde tem a Júlio Prestes, a Luz e a rodoviária – antes de ser a rodoviária Tietê. Como eu peguei muitos ônibus ali, conhecia bem o lugar. O artigo falava que os antropólogos e estudiosos da cultura, estavam, de repente, saindo desses mundos distantes – o quilombo dos negros, a tribo dos índios –, e passaram a analisar não só o mundo rural, como eu fiz – o José de Souza Martins até me chamou de “um caipira nascido em Copacabana”, pois eu nasci em Copacabana –, mas também mergulharam nesses mundos “da prostituta”, “da favela”. É um momento interessante. Nos anos de 1970 e 1980 começam a aparecer trabalhos sobre o carnaval carioca. Era a primeira vez que a antropologia trabalhava com a Estação Primeira de Mangueira. A Alba Zaluar estudava uma coisa desconhecida do carnaval chamado Clóvis, um tipo de uma brincadeira – meio violenta até – do Rio de Janeiro, o carnaval do Recife, os trios elétricos. De repente, há um momento em que acontecem duas coisas: primeiro, a antropologia descobre o folclore. A filha do Geisel, a Lucy Geisel, que era a diretora do INF, abre o órgão a antropólogos, mesmo sendo filha do presidente da República. Depois a Lélia Coelho Frota faz a grande abertura. Então muitos de nós – Antônio Augusto Arantes, o Mauro, pesquisando no nordeste, eu, em Goiás – começamos a participar de concursos de folclore tradicionais – Mário de Andrade, Roquette Pinto – e começamos a ganhar os prêmios, pois tínhamos embasamento maior. Eu mesmo ganhei quatro prêmios, um em Goiás e três nacionais, o que causou até uma certa ira de folcloristas mais tradicionais, como Rossini Tavares de Lima, que chegou a me escrever uma carta muito bravo, dizendo que se eu quisesse falar de folclore, que me matriculasse na escola dele em São Paulo e fosse aprender! Mas é toda uma leva de antropólogos – Regina Prado, Laís Mourão Sá, Roberto da Matta, orientando essas meninas, eu, depois a Alba Zaluar, Antônio Arantes, um mundo de gente – que descobre outros mundos, o cotidiano do mundo urbano, não só na festa e no ritual, mas na própria vida cotidiana, prostituição, violência. Todos vêm dessa origem. E aí há um momento em que – não só por isso – o mundo do folclore, que estava arrumadinho na cabeça do folclorista e nas cartas do folclore, que o definiam – “é o popular, anônimo, tradicional...” –, começa a sofrer uma revolução concreta, uma transformação na própria compreensão do que ele era ou até do que ele não era, pois chega um momento em que mesmo a gente tem dificuldade em definir o que ele é.
Diversos autores teorizaram sobre a questão da hibridização, como o Canclini...
O Canclini, o Peter Burke. O Peter Burke, inclusive, é tão híbrido que se casou com uma brasileira, a Maria Lucia!
Após a contribuição desses autores, ainda há sentido em distinguir cultura popular e cultura erudita, ou mesmo arte popular e arte erudita?
Eu acho que ainda há. Quando a Lélia Coelho Frota publica o Pequeno Dicionário da Arte do Povo Brasileiro, ou quando Frei Chico vai publicar esse enorme – 1670 páginas! – Abecedário da Religiosidade Popular, eu acho que ainda há algo de específico que caracteriza com muita clareza o que é esse mundo e o que o torna peculiar, que começa lá na história do búlgaro e poderia terminar numa outra historinha muito interessante.
Uma vez eu estava dando um curso sobre cultura popular em Belém do Pará, falando de cultura popular paraense, que conheço pouco. Aí uma aluna do curso, uma professora, disse o seguinte: “O professor me desculpe, mas acho isso uma caretice, esse negócio de ficar falando de Carimbó, de Candomblé, de Folia, eu acho que isso é querer manter o povo atrasado, a gente tem que globalizar essa gente, tem que modernizar”. E ela fez uma argumentação inteligente, não foi boba, não. Quando ela acabou, eu, que gosto de contar caso, disse: “Olha, ao invés de fazer uma discussão teórica, deixa eu te perguntar uma coisa: vamos supor que você vá passar um período sabático, uns três meses, na Noruega ou em qualquer outro lugar, na Finlândia, na Inglaterra, e que você se torne muito amiga de uma moça, colega de curso. Você volta ao Brasil e, seis meses mais tarde, ela avisa que está vindo passar dois meses aqui e quer passar um mês no Pará com você – você falou tanto do Pará! Me conta uma coisa: onde você vai levar essa mulher? No McDonald’s? Em shows de rock? Seja sincera. Você vai levar para shoppings? Ou você vai levar no Ver-o-Peso, ou para ver um Carimbó, para comer pato no tucupi, tacacá?”. Ela respondeu: “Brandão, aí você tem razão, eu vou levar nessas coisas, porque ela vai dizer: ‘shopping têm na minha terra’”. Eu disse: “Pois é, isso é cultura popular”. Aí comecei a trabalhar com Canclini, dizendo: “Você pode levar essa sua amiga para ver essas coisas como sendo algo típico, ou seja, você acha que é uma coisa careta, mas é o que tem para mostrar, está levando para agradar. Então ela vai fotografar Carimbó, vai aprender a dançar, vai comer essas comidas, vai no Ver-o-Peso, vai consultar uma benzedeira, vai num terreiro de Candomblé. Mas você pode levar com um sentido de quem diz: ‘Olha, isso é o que nós temos como nosso, o que nos proporciona dialogar com vocês sendo nós como somos e quem somos. Não é McDonald’s, não é o shopping, não é aquilo em que nossa sociedade se modernizou, mas é justamente nisso que o paraense se reconhece como criador de alguma coisa que ainda é dele, que ainda lhe identifica’” – como a saia das camponesas lá no contexto búlgaro. O Canclini vai usar a expressão o “próprio”, em oposição ao “típico”.
É por isso que quando me convidaram uma vez para participar de um júri daquele Boi de Parintins, eu disse: “Não vou, não, prefiro ver na televisão”. Ali já é uma espetacularização em que se transforma uma coisa que tinha um sentido ritual próprio – ainda que com turistas e tal, mas uma vivência naquele linguajar deles, sobre eles e para eles – em um espetáculo para a TV Globo. Um espetáculo que, de repente, para se tornar extremamente visibilizado, começa a fazer concessões e perder o que lhe é próprio. Aí se começa – como acontece, às vezes, em contextos de Folia de Reis e de Congos, por exemplo – a promover concursos. Outro dia, fiquei assustado. Em uma cidade do interior, vi a Prefeitura promovendo um concurso de Congada, igualzinho carnaval: harmonia, bateria... Só não tinha um porta-estandarte, pois, em geral, é uma mocinha que carrega um estandarte e ela vem andando – como é coisa religiosa, ela não vem rebolando nem nada. E eu discuti: “Mas gente, o que caracteriza a Congada e todos esses rituais é um processo de visitas – como documentei em Catalão e em outros lugares – em que eles vão de casa em casa, visitando pessoas”. É como na Folia de Reis, em que o contexto de luta e enfrentamento é simbólico – vai rememorar a África – e aqueles ternos pertencem a uma mesma irmandade. De repente, você começa a fazer concursos, jogar um contra o outro, aí daqui a pouco as bandeirinhas estarão rebolando e dançando, como na escola de samba. Lá na escola de samba tem sentido, na Congada, não. Transforma-se um ritual de sentido comunitário próprio num espetáculo típico, que, de repente, vai perdendo aquilo que é profundamente identitário para se tornar algo ao agrado de todos, digno de um Globo Repórter.
Gostaria falar sobre tradição e mudança. O carnaval é um exemplo chave de manifestação cultural espetacularizada, tendo ganhando espaço na mídia, sendo agora cercada de camarotes e recebendo investimentos na ordem dos milhões de Reais. Da mesma forma, no Nordeste, as festas juninas tradicionais foram apropriadas até mesmo pelo poder público e transformadas em grandes espetáculos...
“O maior São João do mundo”.
Exatamente. Uma vez que, ao contrário do que muitas vezes se costuma pensar, a cultura popular é dinâmica, viva, e está permanentemente se renovando, ou seja, uma vez que não se deve tentar engessar as manifestações culturais, preservando-as de qualquer mudança (na ilusão de mantê-las intactas), como avaliar essas transformações? Como diferenciar uma transformação de fora para dentro que acaba com a manifestação cultural daquela que constitui apenas uma renovação natural do processo cultural, isto é, uma recriação que permite a própria sobrevivência de determinada cultura?
Vou contar outra história. Estava na Unicamp, numa banca de tese sobre a questão da ação cultural, e a moça que estava fazendo a defesa, num determinado momento do texto, escreveu algo a respeito do “processo de preservação de cultura” – que, aliás, é uma expressão muito usada nessas políticas culturais, embora já tenha sido mais no passado e, hoje em dia, é muito questionada. Uma colega minha, a Nádia Farage, disse uma frase de grande sabedoria: “Sou de opinião de que uma cultura que precisa ser preservada já morreu”. Eu achei essa idéia muito sábia, porque, apesar do meu contato com o pessoal do Instituto Nacional de Folclore – ainda uso o nome antigo –, sempre tive muito pudor com essa questão de “políticas culturais”, “preservação de cultura”. Acredito que, hoje em dia, a partir de pessoas como a Lélia e outras mais, muita coisa mudou, há uma visão muito mais inteligente, há toda essa discussão nacional e internacional de patrimônio cultural e imaterial etc. Mas o principal é pensar o seguinte: as culturas – melhor colocar no plural – não têm uma vida própria e independente. Uma mudança ambiental drástica pode mudar desde costumes alimentares e de construção de casas até a espiritualidade de um povo. Quando estudamos os primórdios da humanidade em paleontologia e arqueologia, vemos isso acontecer de muitas maneiras, sobretudo quando se trabalha em longo prazo – com cinco mil anos, e não com cinqüenta. Mas em termos mais próximos do que a gente está conversando, as culturas têm, de fato, uma flexibilidade e uma capacidade de inovação, de resistência e de transformação que escapam muito tanto das pequenas políticas – por exemplo, ações do MinC, aqui no Brasil – como das grandes revoluções – como aconteceu com o nazismo, na Alemanha, com o comunismo soviético, na Rússia, ou como naquele caso de Cuba, onde houve uma tentativa de congelar uma cultura ou anatematizá-la como uma cultura religiosa, residual e, que, portanto, deve ser reprimida. O que nós vemos é que, mesmo debaixo dos sistemas mais opressivos e totalitários – desde um governo militar aqui no Brasil, por 22 anos, até um contexto como o soviético, por mais de 70 anos –, há sempre formas e experiências de reprodução de crenças e mitos. A cultura, por mais massacrada que venha a ser, sempre tem uma vida subterrânea, própria – aquilo que dizia aquele búlgaro para mim: “nem que seja na saia das camponesas” – e, além disso, uma capacidade de auto-regeneração. Uma vez eu conversava com o Leonardo Boff, e ele, que esteve em Moscou algum tempo depois da queda do regime soviético, me contou que era mais difícil ingressar num noviciado para ser padre da Igreja Ortodoxa Russa do que na melhor universidade. Havia uma re-explosão do mundo religioso ortodoxo russo de tais dimensões que, de repente, uma das coisas mais cobiçadas era ser um prelado da Igreja Ortodoxa. A mesma coisa aconteceu na Galícia, na Espanha – e não só na Galícia, mas também na Andaluzia, na Catalunha, no país Basco – que, durante os quarenta anos do governo franquista, sofreu grande repressão do ponto de vista cultural. Era proibido hastear a bandeira galega, falar o galego e dançar as danças galegas. Quando aquilo acabou, em menos de um ano houve uma re-explosão. Você vai hoje em dia na Galícia e a bandeira que se hasteia é a da Galícia – tenho até uma em casa, que eu ganhei deles – fala-se galego, inclusive ensina-se na escola. Tudo aquilo que foi reprimido e sufocado re-explodiu de uma forma fulgurante. Esse processo é um processo de uma complexidade muito maior do que a gente consegue abranger, às vezes até com um estudo pormenorizado.
Você deu o exemplo do carnaval. A história do carnaval está, em grande medida, entre a prefeitura e o bicheiro, ou então entre a TV Globo e o traficante. Mas isso é só uma face do carnaval, muito mais para turista ver do que para o próprio povo ver. O que você vê renascendo hoje em dia? Os blocos de carnaval e os cordões. No meu tempo de Rio de Janeiro tinha cordão – chamava assim porque tinha uma corda. Inclusive lá em Copacabana, onde eu morava, na Rua Inhangá. Tinha também na Rua Barata Ribeiro. Havia também, em Copacabana, o baile à fantasia. Eu me lembro, o pessoal ia vestido de papel crepom com maiô por baixo e entrava no mar. Tinha brincadeira de carnaval em bonde, e a Light suplicava para não destruírem os bondes. O pessoal fazia o forrobodó e ninguém pagava. Tinha esses Clóvis. Ou seja, tinha todo um carnaval que ia desde o bailinho em casa – a minha família era muito grande, então tinha baile de carnaval da família –, até carnaval de clube, carnaval de rua – depois, quando morei na Gávea, fechavam a Rua Piratininga e a Rua Adolfo Lutz e faziam um carnaval ou um São João ali da rua. De repente, parece que tudo isso já não existe mais, mas, se você for procurar, vai encontrar. Vai encontrar não só remanescentes, mas a ressurreição de alguma coisa que foi abafada e que, de repente, se redescobre – por exemplo, o carnaval de bairro lá em Vila Isabel, no Rio Comprido, na Gávea. Vamos pegar o exemplo do carnaval, mas poderia ser o exemplo das festas religiosas. Há uma dimensão de espetacularização, que seria, por exemplo, o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. Depois há uma segunda dimensão, uma dimensão intermediária, um carnaval de raízes populares, sem investimento de prefeitura, uma coisa mais simples. E, às vezes, lá no subterrâneo – não porque está escondido, mas porque está ali naquele bairro, naquele lugar – ainda há o velho carnaval dos velhos tempos, o cordão, o bloco, e não só o bloco do Bola Preta. Aliás, o bloco do Bola Preta sai até hoje, e agora com uma banda de Ipanema, que já é uma coisa nova, veja que interessante. De repente, você vê a classe média – inclusive o pessoal de Ipanema, do Leblon – recriando alguma coisa que antes era do Rio Comprido, da favela, o pequeno bloco. Talvez já não saiam sambando, saiam tocando marchinha, que é mais fácil, mas você tem todo esse processo, que é mais do que hibridização, é uma espécie de polissemia de acontecimentos. O mais interessante do carnaval é você ter toda essa mistura acontecendo. Uma coisa não mata inteiramente a outra. Pode jogar para escanteio, pode colocar à margem, mas muito da cultura popular sempre viveu à margem mesmo, não é de hoje.
Há dez anos, estava em São Luiz com o meu filho André, num hotelzinho pequeno, como eu gosto de ficar. Perto do hotel, por coincidência, estava tendo uma festinha dessas de igreja, pequenininhas, com bandeirinhas e barraquinhas e nada mais. Eu fui lá e, conversando com o pessoal, perguntei sobre o Bumba meu Boi. Um senhor, cujo nome eu nem sei, disse: “O Bumba meu Boi? Depende. Se você quiser ver para turista, você vai à porta do hotel tal...”. Aí me deu uns três lugares. E continuou: “Nesses lugares, tem aquele Bumba meu Boi para turista, mas se quiser ver o Bumba meu Boi nosso, aí o senhor vai ter que ter coragem, vai ter que ir de noite ao bairro tal, recomendo até ir acompanhado”. O cara me deu, com a clareza de um habitante do lugar, o Bumba meu Boi de porta de hotel e o Bumba meu Boi “deles”. Os dois, talvez, acontecendo na mesma noite, na mesma hora. O que acontece? Se você chega de turista, você acredita que só tem aquele. No entanto, está tendo o outro, e talvez tenha um intermediário – eu não duvido que a Universidade Federal do Maranhão tenha um grupo de estudantes, como eu tinha alunas na Unicamp, que saíam de Campinas e iam a São Paulo dançar num Boi de um maranhense que foi para lá. Então o que é isso? É hibridização? É o quê? Eu não tenho um nome, eu não gosto muito de rótulos, mas é toda uma complexidade.
Aqui em Caldas, está tendo festa do arraial. O programa mistura música sertaneja com essas bandas mais modernas. No domingo, vai ter uma Folia de Reis no meio disso tudo, embora já seja uma Folia que vai vir aqui para cantar 15 minutos, meia hora. E vai ter uma missa lá na Pedra Branca – se tiverem coragem vão lá. Vão subir a montanha e rezar uma missa. É uma iniciativa da igreja. Folia de Reis, a dupla sertaneja e um conjuntinho não sei se de rock ou de balada. Tudo isso misturado em uma festa de arraial.
Uma vez constituído o Estado, há necessidade de essa nova instituição criar uma identidade nacional que agregue toda a população do espaço, promovendo certa homogeneização. Como ficam, nesse contexto, todas aquelas manifestações tradicionais particulares? Existe tensão entre identidade nacional e as identidades culturais tradicionais?
Acho que existe. Esse é o tipo de pergunta que eu tenho certa dificuldade em responder. Costumo dizer que, hoje em dia, nesta questão da cultura popular, tem um pessoal que trabalha “do povo para o poder”, e um pessoal – inclusive está muito na moda – que trabalha “do poder para o povo”, que discute toda essa problemática de patrimônio e políticas culturais. Nunca tive muita simpatia por esse lado. Por exemplo, nunca li um edital do MinC, nem sei como é.
Vou me remontar aos velhos tempos da cultura popular. Naquele tempo, haviam duas vertentes partindo do próprio Gramsci. Primeiro, aqueles que defendiam – como o homem lá de Cuba – que, numa sociedade sem classes, numa sociedade em que o povo se torna a classe dirigente, a cultura popular se tornaria, de maneira mais uniformizada, a cultura nacional. Então a própria identidade nacional beberia nessas raízes, mas impregnadas de valores da revolução. Daí porque o cara me disse: “Não tem mais cultura popular, tem cultura proletária”. Ele substituiu um conceito de cultura por um conceito de política de classe. E, de outro lado, nós, que trabalhávamos numa mesma vertente revolucionária, mas com um olhar mais “bricolado”, mais “de lá para cá”. Eu escrevi muito sobre isso, dizendo que, num trabalho de transformação da sociedade, o nosso papel, enquanto intelectuais, não era nunca o de criar um partido hegemônico que dirige o processo revolucionário e, depois, a construção de uma nova sociedade, era o contrário, era nos colocarmos a serviço do povo para que ele próprio, nas suas diferenças, conduzisse o processo e, depois, ele próprio definisse, inclusive culturalmente, como é que seria essa nova sociedade. Isso é muito romântico, tanto que eu era chamado o “romântico cristão”, mas eu ainda continuo com esse ponto de vista, ainda continuo achando que tanto do ponto de vista puramente político de tentativas ditatoriais de controle do processo cultural popular para a criação de uma identidade nacional, à la Hitler ou à la Stalin, quanto do ponto de vista de um jogo mais capitalista de investimento na cultura no momento em que a cultura vira um produto – como o meio ambiente, amanhã é o Dia Internacional do Meio Ambiente – e é vendável, são dois barcos com casco furado. Acho que é uma prática indevida e ineficaz. Ela não só não é justa, não carreia um caminho de cultura verdadeiro, como também é destinada, pelo próprio processo da história, a naufragar, como naufragou na Alemanha nazista, na revolução cubana e soviética e na ditadura militar do Brasil.
O processo da cultura não cabe em nenhum programa. Não acredito na possibilidade de que culturas populares venham, de alguma maneira, se transformar numa espécie de cultura identitária nacional. Eu acho que, antes, pelo contrário, a contraparte do processo de homogeneização globalizante – que, de repente, espalha Mc Donald’s por todo o mundo – é um contra-processo de busca de pluralidade, de busca de diferenças até no linguajar. É o que se vê acontecer na Europa e nos países mais globalizados de hoje. A própria Alemanha, que costumamos ver como um bloco homogêno, sobretudo depois da própria unificação, é, na verdade, uma pluralidade de povos e de culturas, que, às vezes, são mais diferenciados do que aqui no Brasil. A gente tem a mania de pensar a Alemanha e a Holanda – ao contrário de uma Espanha e de uma Itália – como países unificados. Mas, sobretudo do ponto de vista lingüístico, religioso e de tradições culturais, são muito diferenciados. Ao contrário do que parece estar acontecendo na superfície, por debaixo, nas entranhas do mundo sócio-cultural, há um processo de neo-hibridizações, de recriações, inclusive com buscas do arcaico e do passado.
Numa espécie de salto quase desvairado, eu, às vezes, costumo tentar mostrar a tradução de um grande sucesso no mundo de hoje. Por exemplo, por que filmes como O Senhor dos Anéis ou Avatar fazem tanto sucesso? O Senhor dos Anéis foi criado por um profundo estudioso de línguas arcaicas, o J. R. R. Tolkien, que fez um trabalho – que pode até ser criticado por alguém, mas eu acho interessantíssimo e genial – que depois se tornou um romance e um filme best seller. Acho que a grande razão desse sucesso é justamente o fato de que esses são filmes em que todos os planos são profundamente hibridizados. Em O Senhor dos Anéis ou em Guerra nas Estrelas, há heróis hiper-modernos, que controlam poderes galácticos com naves espaciais fantásticas e, ao mesmo tempo, guerreiros medievais de espada, que vão aprender com um mestre num planeta perdido, igualzinho como na Idade Média ou até antes disso. Então, de repente, mistura-se a princesa, o rei, o imperador galáctico, a espada, a arma super moderna, e se cria exatamente essa própria visão do que eu chamo de “desejo humano profundo”. É pensar não só numa planetarização terrena, mas universal – como no Guerra nas Estrelas, em que é o universo que está em conflito – e, ao mesmo tempo, misturar as lendas mais arcaicas e tradicionais – as vestes da princesa Lea, o imperador, o guerreiro –, com a espaçonave. É um modelo de sucesso tão grande que, se você desmontar, você vê que não tem nenhuma diferença com o filme de bang-bang, de gangster. É sempre a mesma história: os bons contra os maus, os bons vão sofrer, mas depois vai aparecer um herói que vai vencer, todo mundo vai se casar devidamente, os maus vão ser punidos etc. Eu acho O Senhor dos Anéis uma maravilha, já vi um monte de vezes, li o livro. Foi o Ivan Vilela que disse: “Você tem que ler isso!”. Li inteirinho. No fundo, é uma amostra galáctica de alguma coisa que se vê acontecer em pequena escala num Boi de Parintins. Fala a mesma coisa! Mistura efeitos de luzes fantásticos e pessoas caindo do teto, como se fossem pássaros voadores, com o boi. As pessoas bebem isso com uma volúpia enorme.
É como no carnaval carioca. Apesar de tudo, considero o carnaval um milagre. Quando se vê aquelas paradas americanas do dia 4 de julho iguaiszinhas, todos os anos, com as moças com aquelas bundas paradas, fazendo os mesmos gestos com aquelas balizas, e se compara com uma escola de samba que, a cada ano, coloca quatro mil pessoas apresentando um enredo completamente diferente, acho o carnaval uma coisa fantástica! Pode ser globalizado, mas se você esquecer o bicheiro, o traficante, a TV Globo, e imaginar as mulheres negras que chegam do trabalho e, durante o ano inteiro, vão costurar aquelas fantasias, e aquele cara que está bolando o samba-enredo, e a equipe que vai pegar um enredo proposto – inclusive muito melhor que uma turma de doutores da Unicamp – e transformar aquilo em música e em carro alegórico, é uma coisa incrível! Mas não vou assistir – mesmo se você me der um camarote, eu não vou. O meu genro, que está morando com a minha filha no Rio de Janeiro, levantou a hipótese, e eu falei: “Não, eu vejo na televisão e um só pouquinho”. Minha mulher ainda atravessa a noite vendo na televisão.
Acho que é com essa cabeça que a gente tem que pensar essas coisas todas. Outro dia eu estava vendo aquele filme chamado A lenda de Beowulf. Até pouco tempo, ninguém conhecia a lenda de Beowulf. Eu conhecia do Jorge Luís Borges, que trabalhava com a lenda em suas aulas. O filme é mal feito, mas, daqui a pouco, esse herói lendário, que vem da Escandinávia, da pré-Idade Média, já cristianizada, vai ser um game – já deve ser – e eu não duvido que venha a ser tema de escola de samba.
Você citou a Nadia Farage para dizer que “uma cultura que precisa ser preservada já morreu”. Atualmente, o trabalho de promoção do artesanato em comunidades tradicionais ou mesmo tentativas de “resgate da atividade artesanal esquecida” ocorrem por todo o país – até com o objetivo de promover inclusão social e gerar renda. Como você vê esse tipo de ação?
Bom, eu também tenho dificuldade de falar sobre isso. Quando entra economia ou política, eu tenho dificuldades. Acho um tema extremamente polêmico, e eu vou começar contando outra história. Em Uberaba, tem um artista plástico que mora numa casa muito bonita e cria obras que vão desde tecelagem até obras de barro. Não vou me lembrar o nome dele, mas é um artista de obras assinadas e muito caro – você compra um pote de barro dele por, no mínimo, duzentos e poucos reais. É considerado, inclusive, “o artista de Uberaba”. E lá na Rua Colômbia, num bairrinho popular, tem um artesão chamado Aguimar. Esse Aguimar é um caso muito interessante, não sei como eu o classificaria. A Lélia, provavelmente, o chamaria de “artista popular”, pois o trabalho que ele faz é extremamente elaborado e bonito para você chamar de trabalho repetitivo, como, por exemplo, as mulheres aqui da região, que fazem chapéus de palha de milho e cestas e vendem a R$5. São todos iguais, põe na forma e fazem iguais. O Aguimar diz: “Eu não repito nada, cada coisa que eu faço – fora as encomendas – é original”. Ele nunca se proclamou um artista. Uma vez, quando era pró-reitor, cheguei para ele e falei: “Aguimar, você faz uns trabalhos tão bonitos, eu podia conseguir uma exposição para você, não ia custar nada, o reitor acabou de inaugurar um espaço cultural aqui na universidade – tem até o nome da mãe dele”. Ele respondeu: “Ô, professor, mas que idéia boa! Eu lhe agradeço, que coisa boa!”. Eu continuei lá na casa dele e, quando estava indo embora, ao pagar as coisas que eu tinha comprado, ele falou: “Professor, aquela idéia sua é muito boa, eu lhe agradeço, mas não vou querer, não”. Eu perguntei: “Mas por que, Aguimar? É uma coisa tão boa para você”. Ele respondeu: “É por isso mesmo. Veja bem, se eu fizer uma exposição dessas, vai vir gente importante, televisão, vai ter entrevista, aí vou virar artista e vou ter que cobrar caro dos meus amigos. Eu não quero fazer isso, não”. Ele me vendia as coisas por R$10. No fim, eu comprava três, e ele dizia: “Esses outros você leva para você”. Imagina se isso pode ser um artista erudito!
Então vejo todas essas coisas com um olhar extremamente dúbio, justamente porque não tenho uma posição. De um lado, estou a favor de que o criador – eu não chamo nem de “artesão”, chamo de “criador popular de arte” – mereça reconhecimento e pagamento por aquilo que ele faz. Eu me lembro até de uma entrevista do Adoniran Barbosa – das muitas que ele deu. Ele já tinha recebido várias homenagens em São Paulo – medalhas, título de cidadão paulistano etc. – e, com aquele jeitão gozador, disse: “Olha, gente, eu prefiro que a próxima homenagem seja em dinheiro”. Acho isso extremamente válido. Uma das coisas mais depravadas que a gente tem numa sociedade como a brasileira – e acho que as outras não são tão diferentes assim – é essa desigualdade do ponto de vista de valor da criação cultural.
Pouco tempo atrás, estava em São José dos Campos, na Fundação Cultural Cassiano Ricardo – o nome faz referência a um poeta nascido lá. Estava dando uma palestra sobre folclore e me perguntaram: “A gente ouve falar em cultura popular, folclore, cultura de raiz, música de raiz, música sertaneja, música brega, música erudita... Como você vê a diferença entre essas várias dimensões de cultura?”. Eu aproveitei que não me pagaram nada por aquela palestra – mas tudo bem, porque depois publicaram um livrinho meu – e respondi: “Olha, em vez de dar definição, coisa que eu não gosto, vamos imaginar que uma cidade aqui do Vale do Paraíba vai promover uma festa – por exemplo, festa do aniversário da cidade, ou festa da padroeira, ou uma feira da pecuária, que é muito comum, enfim, uma grande festa. Vamos supor que ela convide um terno de Congo de uma Folia de Reis para vir se apresentar aqui, como é muito comum hoje em dia. O que eles vão fazer? Vão dar a condução e um prato de comida – o que chamam de “cantar pela bóia”. Às vezes, se o prefeito for generoso, vai comprar uns instrumentos novos. Isso é cultura popular, que você também pode chamar de folclore. Vamos supor que, nessa comissão organizadora, alguém diga: ‘Espera aí, vamos chamar os Paranga, que é um grupo lá de São Luiz do Paraitinga’. Aliás, esse grupo quase acabou. São os filhos da dona Cinira, cujo marido Elpídio dos Santos, um dos maiores músicos paulistas, fazia as músicas dos filmes do Mazaropi. O Elpídio dos Santos morreu pobre. Os Parangas são os filhos dele, um grupo lindo, eu tenho dois CDs. A casa da dona Cinira quase desabou, mas está lá de pé, e ela também, viva, a matriarca. Então, voltando, chamam os Parangas, ou então o Décio Marques, meu amigo aqui. Aí já não dá para pagar prato de comida, tem que combinar um cachê. Mas é um cachê de R$2.000, R$2.500, por aí. Isso é música de raiz. Vamos supor que tenha uma pessoa com gosto um pouco mais apurado, que diz: ‘Para não ficar tão popularesco assim, vamos fazer uma noite lá no teatro e chamar a orquestra sinfônica. Não precisa ser a orquestra sinfônica completa, mas uma orquestra de câmara, para tocar Vila Lobos’. Aí vai ter que pagar R$10.000. Isso é música erudita. Alguém levanta e fala: ‘Mas não podemos deixar de chamar Chitãozinho & Xororó’. R$80.000. Isso é música country. Por fim, alguém diz: “E vamos terminar com Ivete Sangalo”. R$250.000. Isso é música brega”.
Eu vejo exatamente essa situação, não é uma brincadeira que eu fiz – pelo que eu sei, é exatamente isso. Esses artistas populares, às vezes extremamente criativos – desde um Aguimar até uma Mirian Cris, uma moça luthier lá de São José dos Campos, fabricante de violas, rabecas – ganhando muito pouco. É uma diferença gritante e brutal entre essas diferentes categorias, que são concretas e reais, não são abstrações, são pessoas reais: um mestre de Folia de Reis e seus foliões, um Décio Marques, um Paranga, um Chitãozinho & Xororó, uma Ivete Sangalo... Muitas vezes, eu já ouvi: “Mas é que eles atraem público, Décio Marques não atrai; Décio Marques vai cantar para 50 pessoas, Ivete Sangalo para 50 mil”. Só que o Décio Marques me disse várias vezes: “Eu não canto para público, eu canto para pessoas. Prefiro 15 olhando nos meus olhos a 50 mil, e eu berrando no microfone”. Aliás, ele nunca fez isso.
O disparate, não só em termos econômicos, mas em termos de publicidade e celebrização, se tornou tão abissal, que eu acho inacreditável. Eu escrevo muito melhor do que o Paulo Coelho, e devo vender, por ano, o que ele vende por hora, então também sou vítima disso, estou no mesmo barco. Sem falar que a Zíbia Gaspareto deve vender, por minuto, o que eu vendo por ano. Mas espero que quando ninguém mais ler o livro dela, ainda leiam alguns dos meus. É a única vingança que a gente pode ter. Quando ninguém mais ouvir Ivete Sangalo, ainda vão ouvir Elpídio dos Santos e, talvez, Folia de Reis.
De certa forma, políticas culturais podem ajudar nesse sentido: Pontos de Cultura, programas de promoção de artesanato, inclusive com pontos de vendas associado ao turismo. São várias coisas que eu não entendo e nem gosto muito. Mas há um lado perigoso, porque, de repente, pode acontecer a mesma coisa... aliás, já aconteceu, basta pegar o livro da Lélia, o pequeno dicionário dela. Pela qualidade e peculiaridade do seu trabalho, alguns artesãos e artistas populares acabam vendendo muito e ganhando dinheiro com isso – embora eu não conheça nenhum deles que tenha ficado rico. O próprio Zé Coco do Riachão, que eu conheci – lá foi ao contrário, eu que fui fazer entrevista com ele – me deu uma bronca: “Eu não agüento mais as pessoas virem me entrevistar, publicar livro, ganhar dinheiro, e eu continuo aqui, morando nesse rancho”. Não era bem um rancho, mas era uma casa muito simples, igual a do Aguimar. Mas há “uma elite” de artesãos populares. No fundo, não se resolve o problema, você continua tendo uma massa de gente produzindo e vendendo muito barato, como as mulheres aqui da região, que vendem chapéus a R$5. Aí você vai ter uma elite erudita – Fayga Ostrowe, por exemplo, uma gravurista de alto nível, pintora fantástica –, uma elite popular – como vários dos citados no trabalho da Lélia –, e o povão continuando na mesma.
Eu tenho muita relação com o México, vou muito lá, além de já ter morado naquele país, que é muito rico em artesanato e conta, inclusive, com políticas promocionais já há muitos anos. O que você tem lá é exatamente esse cenário. Você chega em Patzcuaro, por exemplo, que é a cidade onde eu morei – uma cidade muito antiga, muito bonita, de tradição indígena tarasca –, e vai à Casa dos Onze Pátios, uma casa antiqüíssima. Na verdade, são várias lojas, uma espécie de shopping que vende o que eles chamam “artesanato tarasco” – típico, antigo. É caríssimo. Entrei e saí sem comprar coisa nenhuma. São artesãos – você os vê fazendo as peças –, mas já são coisas vendidas por um alto preço, não sei se diretamente por eles ou em cooperativa. E aí, quando você sai, vai ao mercado e encontra as mesmas coisas por um décimo do preço! Então eu pergunto: será que uma solução desse tipo resolve alguma coisa ou apenas cria uma nova elite? Como é que se socializaria um pouco mais em termos de direitos para dar a quem cria o que a pessoa merece? Ou então ficaríamos com a resposta do Aguimar: “Eu não quero ficar famoso para não ter que vender caro”.