"Quando a gente deixa a nossa marca, ampliamos a nossa existência". É assim que Henrique Alberto Heder, membro da equipe técnica do projeto CorArrastão, inicia a conversa com cerca de 20 crianças e jovens de diversas idades, com o objetivo de preparar-lhes para uma visita à favela conhecida como Jardim Vale da Flores, em que poderão conferir de perto pinturas nos muros e casas que estão dando nova cara à comunidade. As crianças e os jovens, que ouvem atentamente as instruções, fazem parte do Arrasta-Lata, grupo que utiliza a percussão para divulgar a importância da preservação ambiental. Tanto o CorArrastão como o Arrasta-Lata são programas desenvolvidos pelo Projeto Arrastão, ONG que promove diversas atividades com a população moradora da região do Campo Limpo, zona sul de São Paulo, e parte do município de Taboão da Serra.
Coordenado pela designer Kitty Carvalho, o CorArrastão busca transformar a vida da comunidade por meio da pintura dos muros e casas - realizada em conjunto com os moradores. De acordo com Kitty, a pintura funciona como um impulso. "Depois de ter a fachada da casa pintada, a pessoa, muitas vezes, faz uma reforma, constrói em cima, vai procurar emprego. A cor resgata a auto-estima". A idéia de colorir as favelas não é nova. Projetos como esse já foram e continuam sendo desenvolvidos em outros bairros de São Paulo e em outros Estados do país com resultados bastante animadores.
Logo que o grupo adentra a
comunidade, uma senhora que aparenta cerca de 70 anos reclama sobre um problema
de infiltração de água em sua casa. Henrique promete pensar em uma solução para
ajudá-la a resolver essa situação. A cena é comum, e se repete diversas ao
longo das quase duas horas de passeio. As dificuldades enfrentadas pelos
moradores sobrecarregam os membros do Projeto Arrastão, vistos pela comunidade
como facilitadores na resolução dos problemas do dia-a-dia.
Eram 9 horas da manhã de uma quarta-feira e, contrastando com o caos característico
do horário no centro da cidade de São Paulo, a comunidade estava tranqüila e
relativamente vazia, sem muitos carros ou pessoas na rua. Casas do norte,
cabeleireiros, bares e pequenos armazéns formam o pacato comércio local.
O grupo para em frente a uma grande escada. Há mosaicos coloridos entre cada degrau e uma série de pinturas no muro que a ladeia. Festas populares e uma vegetação composta por cactos e mandacarus são alguns dos desenhos que podem ser observados. A inspiração para o trabalho é a terra natal da maior parte dos moradores da comunidade: o nordeste. O resgate da origem nordestina e o trabalho com a cor são realizados em atividades coletivas. "O pessoal vem para São Paulo e vira cinza. A cidade impôs isso, e eles esquecem a cor", lamenta Kitty.
Com o objetivo de gerar referências para suas pinturas, os moradores foram também convidados a visitar exposições em instituições como o MAM - Museu de Arte Moderna de São Paulo e o MAC - Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, assim como para participar de oficinas e realizar pesquisas sobre artistas brasileiros.
Além das pinturas, poesias criadas pelos próprios moradores são também escritas nos muros. Ao passar em frente ao muro no momento em que este era contemplado pelo grupo, Ailton Rosa, um dos autores de uma poesia ali inscrita, é apresentado por Henrique. Sua poesia é lida em voz alta por uma das crianças e Aílton é ovacionado.
Henrique reconhece bem os moradores e, ao longo da jornada, vai cumprimentando quase todos que encontra pelo caminho. "Nossa missão é formar cidadãos capazes de transformar a realidade e o meio em que vivem, sempre considerando o espírito coletivo", afirma.
Como costuma acontecer em projetos realizados no interior de favelas, é preciso saber lidar com o tráfico de drogas. No ponto mais distante do percurso, é possível sentir a presença do tráfico e o seu domínio sobre o pedaço. Vestindo camiseta do Projeto e crachá, Henrique anda sempre identificado, e garante que o tráfico respeita o trabalho desenvolvido pelo Arrastão.
Após subidas e descidas em
meio a vielas estreitas, chegamos a uma série de casas com suas fachadas
pintadas. Uma moradora ouve o movimento, abre a porta e, quando questionada, dá
sua impressão sobre a nova fachada: "Eu adorei".
Junto com o programa de revitalização das casas por meio da pintura das
fachadas, são desenvolvidas atividades diversas com o intuito de melhorar a
auto-estima e tornar o indivíduo cidadão. Muitas vezes, para determinadas
conquistas, é necessário estabelecer um diálogo com o poder público. A nomeação
e numeração das ruas foi uma delas. E, para evitar que lhes fosse dado o nome
de "dr. Fulano de Tal", como na poesia de Manuel Bandeira, uma
pesquisa sobre a flora brasileira buscou criar uma identidade entre os nomes
das ruas e o nome do bairro: Jardim Vale das Flores.
O percurso termina e, dirigindo-se às crianças e jovens, Henrique dispara: "Uma casa digna e confortável é direito de todos os brasileiros. Está em nossas mãos mudar o mundo".