“Pinto o corpo porque não sou bicho”[1]
O homem ao transformar a si mesmo é o mais profundo da moda. O homem “se distinguie como indivíduo e grupo”, diz o historiador de arte baiano Luís Freire, e essa é a grande capacidade de fazer cultura.
O fenômeno da moda é apresentado como o ultimo estágio da democracia pelo sociólogo francês Gilles Lipovetsky[2], pois é a moda que permite a passagem das sociedades fechadas para as sociedades abertas. “Ao mesmo tempo que inventou a racionalidade técnica, o Ocidente inventou a frivolidade sistemática, a moda”. Ela é um fenômeno próprio do Ocidente e apareceu no fim da Idade Média menos como signo das ambições de classes e sim como saída do mundo da tradição. “Faz nosso destino histórico mais singular: a negação do poder imemorial do passado tradicional, a febre moderna das novidades, a celebração do presente social”.
Uma identidade cultural muda de uma época para outra. Conforme explica a Profª Ilana Goldestein, “não é um fenômeno estático, uma vez que pressupõe a ‘invenção de tradições’, termo cunhado por Eric Hobsbawm”[3]. Ela segue explicando que esta identidade não é um fato empírico, é uma idéia. Deste modo, identidade nacional é a idéia que um país faz de si mesmo, para dentro e para fora. As temáticas podem se repetir ao longo do tempo e repentinamente alguns temas serem incluídos. E é possível até expandir para além da fronteira de uma nação e termos temas chamados internacionais ou globais em uma determinada época.
Analisar os fundamentos das inspirações da criação de uma coleção de roupas a ser divulgada em um desfile de moda tem aqui o propósito de discutir os valores culturais que se apresentam e se pretende agregar a um produto e se efetivamente os produtos terão estes valores agregados. Dentre inúmeros exemplos empresariais que poderiam ser usados para ilustrar essa questão, foi escolhido um que apresenta as condições que se pretende explorar.
A história da Iódice é marcada por duas fases distintas, como costuma pontuar seu criador, Valdemar Iódice, um paulistano formado em ciências contábeis.
A marca foi criada em 1987, em São Paulo SP, com uma produção industrial de malharia, mas só uma década depois encontrou sua verdadeira identidade, explorando acessórios fashion, utilizando couros e tricô (…)
A partir daí veio uma seqüência ininterrupta de 17 desfiles. Em 1996, a marca estreava no Morumbi Fashion, precursor do São Paulo Fashion Week, onde passaria a lançar suas coleções. Em 1997, com o desfile "Universo da Dança", Valdemar Iódice finalmente cristalizou as mudanças em sua empresa, imprimindo, segundo ele, uma personalidade para a grife.
A Iódice desenvolve uma moda jovem streetwear (…)[4]
Em janeiro, no São Paulo Fashion Week 2010, a grife IODICE apresentou a coleção de inverno inspirada nas belezas naturais do Estado do Amazonas. Acompanhados de seus estilistas, os proprietários da marca estiveram em Manaus em novembro de 2009 para conhecerem a região. Na ocasião, visitaram a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SDS). Segundo a titular da pasta Nádia Ferreira,
Eles nos procuraram para obter informações acerca da região, como por exemplo, nossas reservas e artesanato. Fizemos uma reunião técnica abordando as unidades de conservação do estado e elementos da natureza, como sementes, corantes naturais, fibras, couro vegetal, couro de peixe e de jacaré. Estiveram presentes representantes da Agência de Desenvolvimento Sustentável (ADS) e do Centro Estadual de Unidades de Conservação (Ceuc). Em seguida, acompanhamos a equipe em uma visita à Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, para que conhecessem de perto a realidade local.
A inserção de elementos naturais do Estado do Amazonas na coleção de inverno 2010 da IODICE é uma das primeiras iniciativas do projeto de promoção do meio ambiente do Amazonas. A IODICE vislumbra o grande potencial do estado para o mercado nacional e internacional da moda. O Governo apoiará no que for necessário.[5]
O projeto de geração de renda nas unidades de conservação, denominado AMA, visa divulgar a importância destas reservas e a sua contribuição na garantia da biodiversidade e importância sócio econômica para as populações tradicionais do Estado.
Para Nádia Ferreira, a idéia da IODICE dá o primeiro passo para mostrar que é possível inserir sustentabilidade à moda, agregando valor a produtos extraídos da floresta, gerando renda à população local e atraindo investimentos para o Estado, como pesquisa e capacitação de mão de obra. “Essa coleção que será apresentada em um dos maiores eventos de moda do país e do mundo, ampliou nossas oportunidades de interação com a moda sustentável e o desenvolvimento desse segmento no Amazonas.
A promoção das Unidades de Conservação do Amazonas, de uso sustentável, será realizada por meio de campanhas em mídia impressa e digital, desfiles no Brasil e apresentação de coleção no exterior, além de catálogos e materiais de ponto-de-venda, vitrines de lojas que remontem as potencialidades e atrativos do Amazonas e das Unidades de Conservação.
Num outro viés para a questão, o Greenpeace - uma organização global e independente que tem como missão e valor “atuar para defender o ambiente e promover a paz, inspirando as pessoas a mudarem atitudes e comportamentos”, publica em seu site um artigo intitulado Fascínio e destruição, que descreve a investigação da exploração ilegal de madeira na Amazônia desde 1999.[6]
Segundo a organização, o ritmo de destruição segue par a par com a grandiosidade da Amazônia. “Desde que os portugueses pisaram aqui, em 1550, até 1970, o desmatamento não passava de 1% de toda a floresta. De lá para cá, em apenas 40 anos, o número saltou para 17%”. A partir da década de 1970, numa campanha para integrar a região à economia nacional, o governo militar distribuiu incentivos para que milhões de brasileiros ocupassem aquela fronteira “vazia”.
Uma das últimas grandes reservas de madeira tropical do planeta, a Amazônia enfrenta um acelerado processo de degradação para a extração do produto. Além disso, a agropecuária ocupa enormes extensões de terra, em geral com um modelo de produção antigo, e após avançar sobre as matas deixa enormes áreas abandonadas.
O modelo econômico assim descrito para a região parece deixar de fora os dois elementos essenciais na grandeza da Amazônia: meio ambiente e pessoas.
Uma das soluções apresentadas pelo Greenpeace é o Desmatamento zero: “Ao zerar o desmatamento na Amazônia até 2015, o Brasil estará fazendo sua parte para diminuir o ritmo do aquecimento global, assegurar a biodiversidade e o uso responsável deste patrimônio para beneficiar a população local. Ações contra o desmatamento e alternativas econômicas que estimulem os habitantes da floresta a mantê-la de pé devem caminhar juntas. A criação de um fundo de investimentos nacionais e internacionais tornaria a proposta viável”.
E também agregar ações nas áreas protegidas: “Uma parte do bioma é protegida legalmente por unidades de conservação, terras indígenas ou áreas militares”.
Valdemar Iódice diz ter se apaixonado pelo tema sustentabilidade e, depois de ter lido que o Amazonas preserva 98% da sua floresta, resolveu visitar reservas com o intuito de pesquisar idéias e materiais para sua coleção.[7]
A comunidade de Mamirauá, que produz artesanato, ficou responsável pela coleta de sementes locais que foram depois facetadas para ganhar sofisticação nas bijoux. Francesca Romana Diana desenvolveu as peças com uma pegada urbana usando os materiais locais, como a jarina, o tucumã e miçangas.
Mas o trabalho não é só de mão única. Francesca conta que sua equipe de criação vai para Mamirauá ensinar as mulheres da comunidade a darem acabamento diferenciado às matérias-primas.
As formas foram inspiradas nas curvas dos rios e a cartela de cores traz os tons arara azul, mata, guará, nuvem e preto, que retratam a fauna e a flora da região.
Ele declara que a intenção é fazer a capacitação da população local.
Retomando a questão cultural. A identidade nacional brasileira incorpora a preservação ambiental? É uma nova identidade universal?
Como se enquadram tanto as influências para a inspiração da criação de uma coleção de roupas quanto o consumo dessas peças por uma determinada parcela da população? É uma conseqüência do gosto ou uma causa da prática cultural?
Os indivíduos mudam seus padrões de consumo de cultura de forma pontual ou permanente. A mobilidade social e sobretudo o convívio direto com as pessoas dotadas de propriedades culturais diferentes das suas leva a mudanças nas disposições culturais individuais.[8]
Um desfile de moda consegue permitir a discussão de valores culturais? Gilles Lipovetsky[9] revela que ao contrário das interpretações sobre as perversões da moda, é o seu “poder globalmente positivo tanto em relação às instituições democráticas quanto em relação à autonomia das consciências” que a colocou “nos comandos de nossas sociedades: a sedução e o efêmero tornaram-se, em menos de meio século, os princípios organizadores da vida coletiva moderna”.
NOTAS
[1] Palestra proferida pelo Profº Drº Luiz Freire da Universidade Federal da Bahia no I Seminário de Cultura da Moda, Salvador BA, setembro de 2010
[2] Lipovetsky. O Império do Efêmero. São Paulo: Companhia das Letras, 1989 p.10
[3] Apostila MBA em Bens Culturais FGV SP, Cultura Brasileira Profª Ilana S. Golstein.
[4] http://estilo.uol.com.br/moda/estilistas/iodice.jhtm
[5]http://modaemletras.blogspot.com/2010/01/spfw-amazonas-inspira-colecao-da-iodice.html
[6] http://www.greenpeace.org/brasil/pt/O-que-fazemos/Amazonia/ C Greenpeace / Daniel Beltra
[7] http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,na-spfw-iodice-desfila-a-sustentabilidade-do
[8] Bernard Lahire, A cultura dos Indivíduos, 2006. In: Apostila MBA em Bens Culturais FGV SP, Cultura Brasileira Profª Ilana S. Golstein
[9] Lipovetsky. O Império do Efêmero. São Paulo: Companhia das Letras, 1989 p.13