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A CASA E O MUNDO

ENTREVISTA

NATACHA RENA

Publicado por A CASA em 25 de Novembro de 2010
Por Daniel Douek

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Você é arquiteta de formação e, atualmente, desenvolve projetos sociais levando design e artesanato a comunidades de Belo Horizonte, especialmente o Aglomerado da Serra, um conjunto de vilas e favelas. Como foi essa trajetória?

Minha idéia sempre foi unir a teoria à prática. Fiz faculdade na UFMG e, logo quando me formei, comecei a dar aula no curso de arquitetura. Em seguida, entrei para o mestrado e, quando terminei, passei a dar aula em vários lugares. Também tinha um escritório de arquitetura. Já fui uma arquiteta reconhecida e ganhei diversos prêmios, sempre com projetos mais arrojados, mais conceituais – isto quando tinha o escritório em Belo Horizonte com meu ex-marido, Silvio Todeschi. Sempre achei que participar da CASA COR, por exemplo, era um jeito de usar o meu nome “lado A” – um nome meio celebridade, meio pop – para bancar as coisas que eu queria fazer no “lado B”. Então nessa época, implementamos e começamos a coordenar um curso de arquitetura bastante experimental na Unileste, no Vale do Aço. Ao mesmo tempo em que a gente fazia sucesso no mercado da arquitetura – ganhávamos prêmios como Revista Espaço D, Casa Cláudia, Um sonho de banheiro Deca –, estávamos trabalhando com um curso bastante alternativo e com viés muito político lá no Vale do Aço. Foi aí que comecei a trabalhar com cultura popular.

Logo depois, comecei o doutorado em Comunicação e Semiótica na PUC, em São Paulo. Como ficou muito puxado, saí da Unileste e fiquei na FUMEC, onde comecei a dar aula no curso de design. Em 2005, a Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) de Belo Horizonte nos convidou para fazer um trabalho que se chamava Sempre Savassi – inclusive, ganhamos uma menção honrosa no 1° Prêmio Objeto Brasileiro com esse projeto. Até então, eu não entendia nada deste universo de capacitação em artesanato. Além de não entender nada, nunca fui uma pessoa muito afeita e esse artesanato tradicional. Ainda tinha muito preconceito com esse artesanato “Tiradentes”, “São João Del Rei”, “Bichinho”, o artesanato tradicional em pedra-sabão, essa coisa “mineira demais”. Achava que havia muita cópia, muito do mesmo, pouca inovação. Mas quando fomos desenvolver esse projeto, eu e mais duas professoras que também dão aula na FUMEC, a Cássia Macieira e a Juliana Pontes, começamos a pesquisar muito, e quem nos ajudou bastante na época foi o SEBRAE de Minas Gerais. Além disso, todo ano eu coordeno a mesa Design Social na mostra de design Café com Letras, em Belo Horizonte. A gente já levou pra falar na mostra pessoas importantes deste universo: a Paula Dib, a Ana Maria Andrade, do Imaginário Pernambucano, o Eduardo Barroso, a Heloísa Crocco, o Fernando Maculan. Não entendíamos muito, então utilizamos a academia e outros dispositivos para poder nos aproximarmos mais do assunto. Finalmente, isso virou uma coisa muito forte na FUMEC. Esses projetos foram crescendo e aí tivemos a idéia de fazer o ASAS – Artesanato Solidário do Aglomerado da Serra.

 

O que é o projeto ASAS? Em linhas gerais, quais os objetivos, a metodologia e os resultados alcançados pelo projeto?

O ASAS é um projeto de extensão universitária, que surgiu a partir de uma parceria com a Escola Municipal Padre Guilherme Peters, lá no Aglomerado, cuja diretora, na época, estava muito animada em fazer parcerias com a universidade por causa dos programas Escola Aberta e Escola Integrada, em que as crianças ficavam o dia inteiro na escola.

Nossa idéia inicial era capacitar 30 jovens para trabalhar com estamparia. Já tínhamos uma noção e algumas metodologias desenvolvidas a partir do Sempre Savassi, que envolvia pessoas que já faziam artesanato e eram mais velhas. Nossa metodologia envolvia oficinas de criatividade e aulas teóricas. Mas a metodologia que funcionou muito bem com artesãs mais velhas, não funcionou com trinta jovens. Os meninos iam para namorar, para andar dentro da universidade, não prestavam atenção, foi uma loucura. No meio dos trinta jovens, tínhamos oito pessoas do EJA (Educação de Jovens e Adultos). Essas pessoas ficaram no projeto. Já os jovens, desapareceram do dia para a noite, sumiram. Então a primeira coisa que a gente fez foi rever a metodologia. Começou um questionamento dentro do grupo: “Como pensar metodologias para atingir jovens?”.

Antes dos jovens desaparecerem, a gente inscreveu esse projeto de extensão no prêmio na época chamado Banco Real Universidade Solidária, hoje Santander Universidade Solidária. Isso foi uma coisa muito importante para profissionalizar o nosso trabalho, porque eles são extremamente rigorosos e, além do recurso, que foi de R$ 40 mil no primeiro ano e R$ 40 mil no segundo, dão um acompanhamento, fazem visitas trimestrais ao projeto, conversam com as pessoas. Então não adianta camuflar os resultados, eles vão. E uma coisa interessante é que a gente não tinha o costume de trabalhar com indicadores de avaliação, e isso é fundamental. Havia os indicadores qualitativos da UniSol, mas havia também os quantitativos do banco. Para nós, isso foi muito importante. Esses encontros trimestrais faziam com que a gente se movimentasse muito, tanto os artesãos lá na favela quanto a equipe de alunos. Com certeza absoluta, o ASAS não seria o que ele é hoje se a gente não tivesse tido apoio financeiro e de metodologia da UniSol. Apesar de que, por conta do banco, a metodologia deles é muito focada em resultados e, na universidade, a gente sabe que o processo é mais importante do que os resultados. Mesmo assim, foi muito bom nos obrigar a ter resultados.

Ao longo desses anos, quais foram os resultados do trabalho com esses adultos do EJA? O foco da nossa metodologia sempre foi empodeirar o artesão 100%, e não só no sentido de gestão e comercialização, mas também no sentido da criação. Do ponto de vista do design, o mais importante é tirar a força da atuação do designer, fazendo com que este profissional se transforme em um agenciador, em alguém que vai mediar as informações, que vai trazer coisas novas. Há uma palavra muito comum em projetos desse tipo que nós não gostamos muito: “Beneficiários”. Um “beneficiário” da favela é tão beneficiário quanto nós. Todo mundo é beneficiado!

Eu brinco com os meus alunos que a gente já escolhe fazer design ou arquitetura por conta de ego, vaidade, vontade de ser famoso. Senão a gente ia fazer outra coisa, que daria mais dinheiro e outro tipo de estabilidade. Cursos de design, arquitetura e todos os outros que envolvem criação acabam funcionando de forma a insuflar o ego, trabalhando muito forte a idéia do projeto autoral. Nas universidades, não temos nenhum curso de design – pelo menos até hoje, que eu conheça, no Brasil – que consiga formar o aluno – desenvolvendo teorias e metodologias – para trabalhar com capacitação em artesanato e design e em design social. Por isso, precisamos fazer um esforço muito grande para que nossos alunos não cheguem à comunidade e simplesmente criem para os artesãos, intervindo muito diretamente no processo.

A idéia de empoderar a comunidade passa pelo empoderamento criativo, foco do projeto ASAS. Se a gente fosse capacitar grupos de artesãos em comunidades tradicionais no interior do país, talvez a nossa relação com eles tivesse que ser muito mais delicada do ponto de vista da criação, de trazer novas linguagens ou novas técnicas. Mas trabalhamos muito o conceito de artesanato urbano, esse artesanato de referência cultural, mas de uma cultura híbrida, urbana, mestiça, complexa. Como no Projeto ASAS a gente começou do zero, tem um lado péssimo, que é a necessidade de ensinar até a pegar no lápis, já que as pessoas não desenhavam e nem faziam nada, mas tem um lado muito bom que é fato de as pessoas estarem abertas a coisas novas. Por exemplo, a Suzaninha, que é uma das cabeças do grupo, era faxineira da escola, trabalhava no almoxarifado, nunca tinha desenhado, não fazia nada, e se descobriu no desenho. Hoje ela desenha pilhas de desenhos e faz toy art. Um indicador de resultados muito importante é quando elas falam: “A gente passou a ver o mundo de outra forma”.

Tentamos estabelecer metodologias que façam com que, na hora da criação, eles foquem no território, na favela. Esta é uma metodologia muito comum em artesanato, fazer com que as pessoas olhem para o próprio lugar em que vivem e valorizem o seu entorno. Se você mora perto da cachoeira, de uma floresta, de uma cidade histórica com casinhas antigas, é muito fácil e muito romântico – é claro que, às vezes, os artesãos nem percebem direito essa riqueza, porque viveram ali a vida inteira, então você tem que vir para o centro de São Paulo e mostrar para eles o que é a cidade para fazer com que eles dêem valor ao que têm lá. Mas para a gente é um pouco complexo, porque a favela é um espaço de pessoas excluídas da sociedade. É complicado mostrar para eles que existe riqueza naquela cultura informal, porque isso envolve condições precárias de habitação e acesso, de violência, de exclusão.

Mostrar que existe na favela uma iconografia e uma estética rica e muito próxima do design e da arte contemporânea é mais tranqüilo. Então usamos vários autores como referência para trabalhar isso com eles: Mike Davis, que fala profundamente dos problemas da favela, Paola Berenstein Jacques, que fala de uma estética singular deste território. Também tentamos mostrar diversos artistas contemporâneos que tem um desenho naïf ou precário, a idéia do ruído, enfim, toda essa discussão da arte contemporânea, do marginal, do inacabado, da bricolagem, do mal feito, mas um mal feito com qualidade. Os conceitos-chave da pós-modernidade estão todos na favela, então essa aproximação conceitual é muito fácil. O complexo é fazer com que eles entendam politicamente esse tipo de relação. Por isso, há toda uma discussão política paralela.

Na universidade, sentimos a necessidade de ter uma disciplina optativa de artesanato e design. Nessa disciplina, que agora vai se chamar design social, eu trabalho com os alunos diversos conceitos da pós-modernidade, a globalização, a inserção do artesanato no mundo global, a velha discussão do global e do local, as identidades híbridas do Canclini, o Stuart Hall, a identidade nômade etc.. Na filosofia, sou apaixonada pelo Deleuze. Então sempre discutimos questões políticas mesmo, a atuação do designer na sociedade, a contracultura. O livro Império, de Michael Hardt e Antonio Negri, é outra referência importante.

Em linhas gerais, trata-se de pensar a ação do designer enquanto profissional engajado, militante, mas dentro do sistema e não fora dele. Como utilizar o sistema para poder tratar os nossos percursos de gestão? Nossa conversa na favela é muito aberta com relação a isso: “Vamos vender na loja de design mais legal de Belo Horizonte”. Queremos sair nas boas revistas, queremos abrir um mercado amplo, queremos vender para quem tem dinheiro. Sabemos que o nosso público-alvo é um público “A”, um público “A” com certo complexo de culpa de ser rico e que, por isso, quer consumir o design socioambiental. Mas eles não querem um design socioambiental mal feito, mal acabado, querem qualidade, querem linguagem.

Toda essa conversa é embasada em teorias e discussões que a gente leva para a favela, até o limite de chegar e falar para eles: “Gente, se vocês saírem da favela e comprarem uma casa na cidade formal, vocês não vão ser tão legais assim”. O mercado é perverso? A gente também! Eu estou brincando, mas é um pouco essa conversa real que a gente tem com eles. É isso o que vem sendo discutido até hoje do ponto de vista comercial.

Agora que o ASAS ficou famoso e importante na favela, queremos começar a produzir para vender dentro da favela também. Vamos abrir outros mercados e tentar produzir alguma coisa que tenha a cara das pessoas de lá, e não mais só para esse público consumidor externo, da cidade formal.

Outra idéia é disponibilizar no blog uma apostila online, em PDF, com as nossas coleções, metodologias e processos de capacitação. Qualquer pessoa de qualquer universidade vai poder entrar lá, baixar as apostilas, adotar. A gente vai ajudar. A nossa idéia é que seja copyleft total. Quem quiser, pode copiar até os produtos. Na hora em que as pessoas estiverem copiando, a gente lança outra coleção. Somos contra patente, contra direitos autorais.

 

De que modo o design pode contribuir para a transformação da realidade? Quais os limites dessa transformação? Conceitualmente, as teorias são bem elaboradas, mas como se dá sua transposição à realidade? Que tipo de transformação pode ser vista na comunidade após a passagem de um projeto como o ASAS?

Como foi um projeto de extensão universitária, há todo um procedimento mais cuidadoso e mais lento. Ele não tem a velocidade de um programa como o do Sebrae, que vai, contrata um designer, já vem com todo o dinheiro, já está tudo prontinho, chega na comunidade, faz o projeto, às vezes em muito pouco tempo, e acaba. Na universidade, tudo é muito mais demorado. E essas questões éticas de como atuar, de estudar, de ter uma aproximação um pouco mais cuidadosa do que normalmente a gente vê nessas capacitações, também “atrasa” a geração de renda na comunidade. Isso é um gargalo para nós, porque eles estão super empoderados do ponto de vista da criação, mas ainda estão tentando se organizar do ponto de vista da gestão e da comercialização. Mas há mudanças muito eficazes transparentes. O próprio Waldenor da UniSol fala que a primeira vez que ele foi lá, há três anos, a Suzaninha não falava, ficava de cabeça baixa. Hoje, ela não para de falar e lidera a reunião. Todo esse processo provocou uma transformação muito evidente na vida das pessoas – são poucas, seis, sete artesãs.

Uma coisa importante é que o projeto ASAS já tem três anos. O Sempre Savassi durou um ano e meio, dois. Eu, particularmente, acho que o tempo é fundamental. Acho que nem projetos de um ano funcionam, a não ser que seja em uma comunidade já muito bem organizada, muito bem estruturada e que esteja precisando do designer para uma questão específica – algumas oficinas, uma certa atualização, refazer precificação etc. Mas se é um grupo que está começando e pretende crescer, dois anos é o mínimo de tempo que um processo desses teria que durar. Vejo com muito maus olhos os projetos de imersão de uma semana, dez dias, vinte dias que seja. Se os produtos saem dali maravilhosos, é óbvio que a atuação do designer foi uma atuação violenta, de chegar e desenhar, mesmo que junto. Isso acaba gerando uma relação de dependência que, na maioria das vezes, desestrutura a comunidade, porque eles não conseguem criar e deixam de fazer o artesanato tradicional que faziam antes. Eles não conseguem mais fazer a florzinha, o moranguinho, o passarinho, porque aquilo, já não é mais uma coisa tão bacana assim, a cabeça deles já se abriu, mas também não conseguem desenvolver novos produtos a partir de processos criativos que um designer demora quatro ou cinco anos na universidade para aprender. Todo mundo sabe que isso gera uma relação de dependência com o designer e, mesmo assim, vários grupos que trabalham dessa forma continuam ganhando prêmios no Brasil. Por quê? Porque as pessoas olham muito o resultado – o catálogo, a tag maravilhosa, as fotografias, os produtos – e se esquecem de verificar o que eu acho mais importante: os indicadores reais lá na comunidade. O que aconteceu com a pessoa? O que aconteceu com as relações entre o grupo? O que aconteceu de empoderamento real? Não se pode buscar apenas o resultado agradável aos olhos. É preciso tomar cuidado, pois é uma situação muito delicada. Então o tempo é fundamental.

 

Você havia falado sobre a exigência de resultados qualitativos e quantitativos por parte da UniSol. Quais os indicadores revelam o sucesso de um projeto social?

Eu não sei de cor, mas trabalhamos com 23 indicadores estabelecidos pela UniSol. Esses indicadores não são indicadores específicos para projetos de design, são indicadores para avaliar projetos de ação socioambiental em geral. A grande maioria dos indicadores é qualitativa mesmo, como, por exemplo, auto-estima. Como medir isso? A pessoa passou a falar mais. Quais são as fontes para medir isso? Entrevista, fotografia. Nós temos um blog atualizado diariamente, contendo todas as ações do grupo, e depois o utilizamos como fonte de avaliação.

Além disso, coletamos frases das artesãs. Semana passada, começamos a trabalhar com um grupo novo de costureiras, o Meninas do Cafezal, e fomos ensinar para elas teoria da cor. Uma das artesãs disse: “Nossa, mas que preguiça, a gente tem um monte de coisas para bordar, tem bazar na semana que vem”. Nós insistimos: “Vamos lá, gente, nós combinamos”. Depois da aula, a artesã falou: “Gente, não acredito, não tenho mais que comprar um monte de cores de tecido nem um monte de cores de linha, eu posso comprar só três potes de tinta e fazer a cor que eu quiser! Passei a vida inteira comprando um monte de cores”. Isso é um indicador fundamental.

Outra coisa é a mudança no processo de trabalho, as questões de sustentabilidade: tá economizando o material? Tá reciclando?

Há até indicadores de higiene pessoal: as pessoas estão andando mais bem vestidas, mais cheirosas. Isso é muito evidente. Em processos com design, você também abre um universo estético para eles, de aparência, e esses indicadores são muito visíveis.

O nosso pior indicador é o geração de renda. A parte de criação já está mais tranqüila.

 

Projetos desse tipo aproximam pessoas de realidades sociais muito distintas. De um lado, designers, alfabetizados, acadêmicos, eruditos, do centro; de outro, pessoas com baixa escolaridade, muitas vezes analfabetas, de periferia. Como estabelecer uma relação justa e equilibrada nesse encontro quando o contexto social em que ele ocorre é sempre tão desigual? Como evitar que, em momentos de crise ou de desentendimentos as hierarquias existentes na sociedade não sejam reafirmadas com toda sua força?

Uma coisa super importante é capacitar os alunos para essa aproximação. Por isso a necessidade de uma disciplina em que a gente possa discutir todas essas “desierarquias” – Foucault é uma referência fundamental. Outra coisa é ser vigilante o tempo todo. Às vezes, os alunos ficam felizes de estarem “ajudando” a comunidade. É claro que a comunidade espera ajuda, mas uma discussão constante é a de que há uma troca.

Em nosso próximo catálogo, pedimos para os alunos escreverem artigos. Nesses artigos, fica muito transparente uma coisa que no cotidiano, com tantas coisas para resolver, a gente não consegue parar para conversar direito: todos eles falam do tanto que aprenderam com uma outra realidade. Não é um aprender “vampirizador” – vai lá, tira foto, conta para todo mundo que foi na favela, acha lindo e vai embora. Eles aprendem no cotidiano.

Muitas vezes, os alunos falam para mim: “Nossa Natacha, eu fiquei muito irritado, porque a gente falou que era para fazer a costura daquele jeito e eles não fazem, o lojista já falou que não quer essa qualidade, como é que eu faço?”. Aí eu respondo: “Gente, às vezes, o padrão de qualidade deles é diferente do nosso. Não é que eles não conseguem fazer, é que talvez eles não estejam nem entendendo qual é a referência de padrão de qualidade ou de acabamento da estampa”. Então eu tenho que ficar chamando os alunos na real porque, se deixar, eles entram nessa história como se eles fossem donos de uma confecção.

Os artesãos têm índices de empoderamento evidentes, mas eles só vão se empoderar realmente no dia em que começarem a ganhar dinheiro de verdade e poderem, por exemplo, pagar algum designer ou alguns grupos coletivos para trabalhar junto. Atualmente, a gente tem o dinheiro da universidade, as bolsas, o contato com os lojistas. Fazemos de tudo para eles terem o contato com o lojista: a gente põe o telefone na mão de um, põe o telefone na mão do outro, mas as artesãs trocam de telefone toda semana – um dia é “Oi”, outro dia é “Vivo” –, aí o lojista não consegue e a gente acaba continuando. Mas a gente só vai verificar que o projeto deu certo o dia em que elas dispensarem a gente, o dia em que falarem: “Está ótimo, tchau, agora a gente vai andar com as nossas próprias pernas”. Enquanto isso não acontecer, algumas relações de poder vão continuar estabelecidas.

Eu não sou uma utópica de achar que o estudante, o professor universitário, doutor, vai chegar lá e não vai haver hierarquia. Há uma relação de respeito. Quando eu vou numa reunião, sempre evito sentar na cabeceira da mesa. Fico me vigiando o tempo todo, mas não adianta, eu tenho o poder, por exemplo, de delegar onde vai ser gasto os R$ 100 mil que ganhamos agora com esse prêmio da UniSol. É claro que vamos discutir de maneira desierarquizada, mas se houver algum impasse, quem vai decidir? Ou eu ou o Bruno Oliveira, que é um aluno que já se formou e hoje é meu parceiro, me ajuda a coordenar. A gente tenta desierarquizar ao máximo, mas a hierarquia sempre vai existir até que elas se tornem totalmente autônomas.

 

Como a comunidade da favela recebe projetos desse tipo? Há algum tipo de resistência às pessoas de fora?

Nós tivemos a idéia do projeto, mas ele é fruto de uma parceria com uma das escolas municipais da região. A Suzaninha e a Schirley, que estiveram com a gente desde o começo, trabalham na escola, e a diretora também apoiou muito. Elas são o ASAS na favela, então é uma coisa muito deles. Elas trabalham com as crianças, com as mães das crianças, dão oficinas, porque um jeito de “alugar” o espaço da escola para poder ter a oficina do ASAS funcionando lá dentro é dando aula no Escola Aberta e no Escola Integrada, aos sábados, para os pais e para a comunidade. Então elas aprendem as coisas com a gente e repassam isso para a escola. Elas têm essa característica do multiplicar o conhecimento lá dentro. Então o ASAS é um pouco liberado com elas e com os grupos de gestão cultural na favela, que acabam participando com a gente de algumas coisas. Eu nunca senti nenhuma resistência.

Agora nós criamos uma rede que envolve, além do antigo ASAS, que virou Aglomeradas e trabalha com estamparia, uma associação de bambu, o Serra de Bambu, e uma associação de costureiras e bordadeiras, o Meninas do Cafezal, com quem a gente está desenvolvendo um núcleo de moda. Por conta disso, temos andado mais pela favela, e a gente não sente essa resistência. Acho que as pessoas já sabem quem somos nós. Já faz três anos que estamos lá, não é uma visita esporádica. Passamos no bar, cumprimentamos as pessoas, é outra relação. É importante esse tempo para as pessoas te conhecerem. No começo, eles eram muito desconfiados, e falavam: “Mais um projeto social na favela, eu não agüento mais”. São eles que contam: “No começo a gente falou ‘Que saco! Já vem gente aqui querendo entender a nossa realidade, usar a gente de laboratório, depois eles vão embora...’”. Hoje, eles sabem que não é isso. Hoje, está muito claro que é uma troca.

É óbvio que para nós é importante, que para a universidade é importante, todos os prêmios. É um jogo onde todo mundo tem que ganhar. Não há nenhuma ingenuidade da minha parte de achar que um projeto de extensão de sucesso não é bom para o meu currículo. Eu sou professora universitária, é claro que isso me interessa. Para os alunos, também interessa, pelo currículo, por participarem, por terem esta experiência rica. Para a favela também interessa participar dessa história, ser visto, ter voz, ter visibilidade, além do aumento da renda. Para o lojista interessa ter um projeto como esse, socioambiental e descrito na tag do produto. Então eu acho que interessa todo mundo. E esses interesses têm que ficar muito claros, porque a gente percebe que alguns projetos são um pouco assistencialistas, então fica uma demagogia, em que falam: “eu vim aqui ajudar”. E aí, às vezes, os artesãos estão achando alguma coisa ruim e são repreendidos: “mas eu estou aqui ajudando e vocês estão reclamando?”. No nosso caso, eles reclamam, a gente também reclama, é tudo muito horizontal. Isso deixa as coisas um pouco mais tranqüilas para trabalhar.

 

A presença do tráfico de drogas é característica marcante das favelas brasileiras. Em geral, projetos sociais realizados no interior de favelas precisam lidar com este poder paralelo, estabelecendo, por vezes, uma relação cordial. Isso acontece no caso do projeto ASAS? Como vocês contornam este problema? O que fazem no momento em que começam a incomodar o tráfico de drogas ou no momento em que o tráfico de drogas começa a incomodar vocês?

No começo, a gente tinha a utopia e a ingenuidade de quem começa a trabalhar com projeto social de que íamos transformar toda uma realidade. Os textos de nossos projetos eram assim: “Um projeto de design e artesanato na favela para fazer com que os jovens não entrem para o tráfico de drogas...”. Hoje, está muito claro para nós que a favela é enorme, nunca iremos conseguir capacitar todos os jovens e nem atuar de uma forma tão geral que faça com que as pessoas deixem de entrar para o tráfico de drogas. O tráfico de drogas vai continuar a existir e isso não é um problema nosso, isso é outra coisa. Claro que o projeto pode gerar renda. Alguns jovens – pouquíssimos – vão deixar de entrar para o tráfico para trabalhar conosco, mas esses meninos não são mais o nosso foco. Hoje, o nosso foco está em quem quer trabalhar com isso. Podem ser senhoras, senhores, jovens, só não pode ser menor de 16 anos. Hoje, já não passa mais pela nossa cabeça que os projetos são para evitar que as pessoas entrem para o tráfico de drogas. É para quem quer gerar renda de uma outra forma, gosta de design, gosta de produzir artesanalmente.

A gente não tem problemas com o tráfico de drogas. O tráfico de drogas é um problema de Estado, de polícia, de política pública, não é um problema do designer. O que a gente pode fazer é oferecer oportunidade para quem não quer entrar para o tráfico de drogas. Isso é uma coisa. Mas ir lá no tráfico de drogas e falar para traficante:  “Olha, sinto muito, mas agora os seus homens vão trabalhar com a gente”. É claro que não! O traficante está lá com a equipe dele e a gente está aqui com a nossa. E não temos o menor problema. Vou dar um exemplo: outro dia sumiu um computador do Aglomerado. De dia, um menino que estava meio doidão foi lá e a Schirley, que é artesã, botou ele para correr. Ele foi embora e, de noite, esse computador sumiu. O que elas fizeram? Contataram os caras e falaram: “Olha, o nosso computador sumiu, tá?”. Quem é que vai procurar o computador do ASAS/Aglomeradas dentro da favela da Serra? A polícia militar? Não vai! Eles não conseguem pegar o ladrão... Quem faz a gestão da segurança na favela no nosso cotidiano é o próprio traficante. Eu não conheço nenhum deles, mas tenho certeza que eles conhecem a nossa equipe. Além disso, esses traficantes são sobrinhos, irmãos, tios, parentes, primos das próprias artesãs e de outras pessoas de bem da comunidade. Não é uma “outra coisa”, uma “outra entidade”, faz parte do cotidiano da favela.

 

Uma vez que o tráfico de drogas é quem estabelece as regras naquele território, é necessário “fechar os olhos” para determinadas ações condenáveis (não só ilegais, mas também extremamente violentas) promovidas pelo tráfico para que seja possível dar continuidade ao projeto? Como lidar com isso?

No nosso caso, não temos nenhum contato com o tráfico. Eu não sei quem são, não sei os nomes, não sei nada. Também não tivemos que pedir licença, pois é um projeto deles, da escola. Mas, por exemplo, um dos meninos do Serra de Bambu já foi traficante. É todo furado de bala. Agora a gente vai fazer uma parceria com o pessoal do Liberdade Assistida e Prestação de Serviços à Comunidade, que se ocupa das determinações judiciais para os menores de 18 anos envolvidos com o tráfico. Eles procuraram a gente e eu coloquei apenas uma condição: que os jovens sejam da Favela da Serra. Então a gente vai começar a trabalhar com meninos do Liberdade Assistida no Serra do Bambu, com acompanhamento dos psicólogos da prefeitura etc. E os meninos falam: “Eu era traficante, conheço todo mundo, pode ficar tranqüila, todo mundo sabe quem sou eu”. É tudo muito cordial e eu não sei qual é o tipo de relação que eles têm com o tráfico.

Mas uma coisa que eu falo muito para os alunos: nossa relação na favela é profissional. Não é “Ah, vamos tomar cerveja com a moçada”. Eu acho bom evitar. Porque senão vira “Ah, eu vou comprar um baseado, fulano vai me trazer”. Não pode. Eu não tenho absolutamente nada contra drogas, mas misturar relação profissional com relação pessoal não dá certo. É como o filme Tropa de Elite 1, em que a menina da ONG começa a namorar o cara do morro, eles usam drogas juntos... Não dá. A relação é profissional. É cordial, é solidário, você pode até ser amigo, mas deve evitar entrar nos limites da vida pessoal das pessoas na favela. São três anos de projeto e eles passam por muitas dificuldades, então todo mundo fica querendo muito ficar amigo. A gente conversa, tenta encaminhar, mas evita relações muito íntimas. Até para não prejudicar o andamento do trabalho, para continuar a ter uma relação de respeito que não seja de “chapa”, mas sim de parceria.

 

“Favela” é um termo muito estigmatizado na sociedade, causando arrepios em alguns. É muito comum a associação que se faz entre favela e a idéia de violência, medo e pobreza. Esta crença generalizada permite, inclusive, ações policiais abusivas contra os moradores destas comunidades. Um projeto como o ASAS, que trabalha diretamente na favela e consegue extrair dali uma estética bela (expressa em dezenas de produtos) contribui para mudar esta visão?

Sim. Por exemplo, olha que interessante. Tem um projeto da Vivo em Belo Horizonte que se chama Cidade Eletronika, e esse ano a gente foi convidado para participar. Um amigo meu me chamou: “Você não quer dar uma oficina?”. Eu respondi: “Eu não, mas gostaria de convidar as meninas da favela para dar uma oficina de pinhole na própria favela”. Esse evento Cidade Eletronika ia acontecer na Escola de Arquitetura da UFMG, que é na Savassi, no centro da cidade, uma área legal. Aí quando propusemos a oficina, meu amigo falou assim: “Natacha, essa oficina vai acontecer na favela? Eu acho que ninguém vai se inscrever. Quem aqui da cidade formal, aluno da arquitetura, pessoal de classe A, vai querer ir fazer uma oficina na favela?”. Eu respondi: “Acho que é o contrário, acho que algumas pessoas têm muita vontade de conhecer, mas não tem coragem de ir sozinhas, então vai ser uma oportunidade para eles verem, passearem pela favela, fotografar”. E aí lotou a oficina, foi super bem sucedida. E foram as meninas da favela que ministraram junto com dois alunos do ASAS, eu só fiquei coordenando de uma forma muito distante. A gente imprimiu um mapa, andou a favela inteira, foi tirando as fotos e depois fez uma linda exposição no hall da escola com fotos impressas em papel transparentes e leds por trás.

Eu e o Bruno, esse ex-aluno que está trabalhando comigo, estamos montando um projeto de museu aberto na favela. Eu acho que isso vai ajudar a fazer com que as pessoas tenham vontade de freqüentar o lugar, fazer parcerias com botecos, participar de churrascos na laje. Não é gentrificação, como que vem acontecendo nas UPPs no Rio. Sou completamente contra esse tipo de limpeza das favelas, tirar o traficante, os gringos comprarem pousadas e aí fica tudo lindo. Esses traficantes vão para algum lugar. É justamente o que a gente está assistindo agora. Isso não está certo. Também não é uma idéia romântica de que a favela é o melhor dos mundos. Mas ela também é um lugar interessante para freqüentar: tem uma vista incrível da cidade – que ninguém tem –, os espaços possuem grande complexidade arquitetônica e as relações íntimas e pessoais são muito ricas.

Semana retrasada, levei meu filho lá. Ele tem 14 anos e não queria ir, estava morrendo de medo. Foi reclamando. Quando chegamos lá, ele adorou. Eu comecei a mostrar: “Olha só, Pedro, os meninos brincando na rua. Onde a gente mora, ninguém brinca na rua”. Havia pessoas jogando bola, meninas conversando, churrascos, um monte de gente com cadeiras literalmente no meio da rua, música alta. Ali, os vizinhos todos se conhecem, as pessoas entram na Associação gritando, contando piada. Na volta, o Pedro falou: “Nossa, mãe, é muito legal!”.

Há uma grande riqueza na vida cotidiana da favela, uma outra noção de público e privado. São coisas maravilhosas. A primeira experiência de passar um dia na favela fica marcada para sempre em nossos alunos. Eu moro em um prédio de 21 andares e tenho um vizinho de porta. Perguntei ao meu filho: “Você sabe o nome do nosso vizinho?”. Ele respondeu: “Não”. Então eu disse: “Pois é, Pedro, eles moram aqui há anos e a gente não sabe nem o nome deles”. Então a favela tem um monte de coisas boas, não é só coisa ruim.

E que fique claro: não é a glamorização da pobreza, é a valorização de um tipo de vida cotidiana comunitária, coletiva, colaborativa. Isso nós perdemos nas grandes cidades.

 

Um dos méritos do projeto destacado pelo júri do 2° Prêmio Objeto Brasileiro é conseguir criar uma estética bela a partir de uma realidade urbana extremamente problemática (“caótica”, “opressiva”, “suja”, “feia”). Como transformar essa realidade que à primeira vista não agrada aos olhos em produtos de grande qualidade estético-formal?

Em qualquer projeto de artesanato e design, quando você pede para o artesão desenhar, ele fala: “Eu não sei desenhar, não quero desenhar”. Eles têm medo da caneta e do lápis. Quando eles começam a tentar, fazem um desenho naïf, simples, esquisito, “errado”, um desenho que não é representativo, realista, figurativo – que é o que eles acham que é arte. Então a primeira aula é uma aula que eu adoro dar, de arte contemporânea, que começa lá no século XIX, com o realismo, figurativismo, e eu vou mostrando o que é que vai acontecendo com a arte ao longo dos anos e, paralelamente, com o design. Aí a gente chega no Leonilson, mostra desenhos da Carla Caffé, as pinturas da Frida Kahlo, um monte de artistas contemporâneos. Eles falam para nós: “Natacha, o desenho desse povo é igualzinho o nosso”. Eu respondo: “Pois é, eles são artistas muito importantes, a tela de uma pessoa dessas custa milhões, e eles estão tentando desenhar de um jeito naïf, de um jeito que vocês já estão desenhando”.

Dissipar a idéia de que o desenho bom é um desenho figurativo é a primeira estratégia se você quer fazer com que eles consigam conciliar a “feiúra” do desenho deles e a “feiúra” da favela com as questões mais contemporâneas. Insistimos que o importante é que o desenho seja forte e expressivo. Então os levamos para galerias de arte contemporânea e o Palácio das Artes para perceberem que isso é uma estética muito bem aceita. Nem a arte contemporânea nem o design contemporâneo cabem dentro de uma estética clássica, e nosso público-alvo consumidor conhece esta arte e este design contemporâneos. Da mesma forma que a arte e o design contemporâneos não têm uma beleza clássica, a favela também não tem, mas tem uma beleza que tem tudo a ver com as discussões do homem pós-moderno. Então a gente vai mostrando como a estética da favela é muito próxima de uma estética das galerias mais chiques do centro da cidade. Para eles, é uma grande surpresa. Eles ficam muito felizes de ver que aquele desenho forte e esquisito de temas que são fortes está nas galerias, e isso ajuda a aumentar a auto-estima.

Essa é uma metodologia que a gente usa exatamente porque estamos trabalhando com artesanato urbano, com favela. Eu não vou chegar lá no Jequitinhonha e discutir a violência urbana, as cercas, as fronteiras, a morte, o tráfico de drogas. A discussão teria que ser outra, não tão politizada e não tão próxima das questões contemporâneas mais controversas.

 

Os produtos são vendidos para consumidores de uma classe social bem diferente daquela em que eles são produzidos. No meio onde as coisas são vendidas, essa estética é muito bem aceita. Mas e na favela? Os produtos são admirados? Esta estética – que, para eles, é nova – é assimilada?

Acho que o consumidor local ainda não está preparado para o tipo de produto que é desenvolvido. Talvez não. Com os jovens é mais fácil. O que os jovens da favela usam? As roupas de marca compradas no camelô. Então eles consomem Dolce&Gabbana, Louis Vuitton e Prada a R$ 10. E essa estética esquisita já chegou às grandes marcas. Essa estética muito atual de ruído, de inacabado, já está circulando. Como eles já se aproximam e compram essa estética – mesmo que copiada, fake, chinesa –, não vai ser difícil vender essa nova coleção, principalmente para o público jovem.

 

Há maior politização dos moradores da favela no sentido de se tornarem mais reivindicativos após a passagem de um projeto como esse?

Acho que sim, principalmente no caso das mulheres em relação a seus casamentos. Este tipo de trabalho afeta muito a auto-estima e a visão de mundo, porque se amplia o leque de possibilidades. Um dos indicadores que a gente mais gosta, é quando elas falam assim: “Nossa, é tanta coisa para pesquisar que eu não tenho mais tempo nem de assistir novela”. Esse é um grande indicador de mudança de cultura dentro destes projetos. Na favela, os índices de mulheres como chefes de família é altíssimo. Algumas têm marido, mas aí ele bebe... Se antes ela sofria muito com isso, agora ela vai cuidar da vida dela, deixando o marido beber para lá.

 

Em geral, há muita resistência ao objeto de produção artesanal nos cursos universitários de design. Isso também ocorre na Fumec? Os projetos que vocês têm desenvolvidos há cinco anos contribuem para mudar esse panorama?

Na FUMEC, temos quatro cursos de design. No curso de design de produtos, que é uma herança direta dos cursos de design industrial, nós ouvimos os alunos falando do preconceito que os professores têm. Os irmãos Campana são sempre os grandes vilões: “eles não são designers, eles são outra coisa”. Mas, em geral, admiram o projeto ASAS, essa coisa da interface do design com o artesanato. Eu tenho essa política de dizer “Não, gente, a gente não quer substituir o design industrial pelo design artesanal, a gente só quer se incluir nessa história também”.

No curso de design de interiores, acho que esse preconceito não existe de jeito nenhum. Essa idéia de cultura brasileira, de adaptar as coisas do cotidiano, está muito presente. Porfírio Valadares, um designer que trabalha bastante a junção do industrial e do artesanal, dá aula lá comigo por exemplo.

Design de moda, a gente sabe: em geral, não tem. Eles têm muito presente essa característica de valorização da cultura brasileira, do bordado, do feito à mão, do crochê, do tricô.

E, finalmente, o design gráfico da FUMEC é muito conhecido justamente pelo trabalho artesanal. Eles evitam a utilização do computador, esse design mais comercial. O Eduardo Recife, por exemplo, se formou lá e, hoje, é um grande designer internacional. Há um forte trabalho com colagem, com sobreposições de desenho e colagem. Hoje, quando a gente vê alguma coisa em uma revista, logo diz: “Esse menino estudou na FUMEC”. Quase que se criou uma escola de designers gráficos artesanais.

Então é apenas dentro do curso de design de produtos que ainda há uma resistência, mas ela não é direta e nem tão declarada assim, é sutil.

 

O projeto ASAS foi 1° lugar na categoria ação sócio-ambiental do 2° Prêmio Objeto Brasileiro. Como o prêmio foi recebido pelos integrantes do projeto? Quais os impactos de um prêmio como este?

O impacto é sempre muito positivo. Em projetos de ação social, prêmios em geral são muito importantes porque são tantos os problemas no cotidiano! Toda vez que você encontra pessoas que estão trabalhando com capacitação em artesanato e design é o muro das lamentações, porque é difícil trabalhar com pessoas de realidades muito diferentes e com dificuldades cotidianas, com problemas de violência, de pobreza, de condições de vida.

Quando um reconhecimento externo chega à comunidade e ao grupo de alunos, é uma energia nova que entra no projeto, aumenta a auto-estima, as pessoas se vêem reconhecidas. E A CASA não é uma instituição qualquer, é um espaço focado especificamente no encontro entre design e artesanato no Brasil. Há diversos prêmios de instituições mais gerais, premiações genéricas, mas aqui é uma premiação muito específica, com um júri qualificado. Por isso, para a gente é muito importante o reconhecimento desse prêmio e também o fato de poder contar com o dinheiro.

No dia em que vocês ligaram nos convidando para a cerimônia de premiação, eu disse: “Eu estou indo, mesmo sem saber se a gente vai ganhar, mas eu queria saber se levo ou não as artesãs, porque se ganharmos, seria legal que elas estivessem presentes”. Aí vocês responderam: “Então vou ter que contar, vocês ganharam 1° ou 2° lugar”. A gente estava em uma reunião discutindo o orçamento. Precisávamos de duas máquinas de costura, pois sem as máquinas o projeto Meninas do Cafezal ia parar. Na hora em que eu recebi esse telefonema, de cara eu falei: “gente, compra as máquinas e compra as passagens!”.

 

Quais os problemas, dilemas e angústias enfrentadas no projeto?

Para falar de todos os problemas, a gente teria que fazer um congresso! Mas posso falar algumas coisas. A questão da comercialização, por exemplo. Até que ponto o designer deve ficar fazendo a intermediação com as lojas? Esse é um dilema. Eu gostaria muito que as artesãs tomassem frente.

Outro dilema, que eu acho que foi mais importante: não conseguimos formalizar a associação. Hoje, o lojista emite aquela nota cujo nome eu não lembro, mas que é como se o próprio lojista tivesse feito o produto. As artesãs não têm uma associação para emitir uma nota, as Aglomeradas não são nem cooperativa nem associação. É um dilema: é cooperativa? É associação? É ONG? Qual é a diferença?

E um dilema maior: já que a gente não consegue fazer com que elas se formalizem, os nossos alunos que se formam poderiam continuar no projeto como voluntários? É estranho misturar alunos formados lá na favela, criando cooperativas juntos? Isso é uma possibilidade nova que agora eu comecei a pensar.

E, finalmente, a relação com a universidade. Isso é um projeto de extensão, mas se eu sair da universidade, o que acontece com o projeto? E o aluno quando forma? O que a gente faz para ele continuar trabalhando?

Há quinze dias, o Ivo Pons foi a Belo Horizonte por conta de uma palestra e falou que já passou por essas questões. O que ele fez? Criou uma ONG, uma empresa e fez uma parceria com a universidade. A ONG tem parceria com o projeto de extensão da universidade. Se precisar emitir nota, não é nem a ONG nem a universidade, é a empresa. Talvez a gente tenha que discutir novos formatos no Brasil. Parece que está tramitando no congresso uma legislação para empresas sociais, porque os impostos e o jeito com que o Estado lida com esse tipo de projeto é muito cruel. As artesãs não querem e não conseguem se formalizar porque senão vão ter muitos encargos: gastos para formalizar, gastos mensais, gastos anuais. Então isso é uma coisa que precisa ser discutida. Além disso, elas estão fazendo outras coisas e não param para concretizar a formalização. A gente tenta, mas eles não estão preocupados, e isso tem que vir deles. A UniSol pressiona: “Gente, vocês ficaram dois anos, vocês prometeram que iam formalizar...”. Na universidade temos essa dificuldade. Isso é uma super angústia nossa, fazer o projeto decolar e gerar renda, virar realmente um negócio empreendedor.