O rebatimento do movimento moderno em terras brasileiras, sensíveis e influenciadas pelos empreendimentos da Bauhaus e da Escola de Ulm, presenciou algumas experiências que buscaram desenvolver instituições semelhantes. É sob a direção do Museu de Arte de São Paulo – MASP (constituído em 1947 e instalado provisoriamente à Rua 7 de Abril), exercida por Pietro Maria Bardi, que surgirá o embrião da primeira tentativa de se implantar o ensino de Desenho Industrial, ou design, no Brasil. Em 1951 é criado o Instituto de Arte Contemporânea – IAC, sob a organização estabelecida por Lina Bo Bardi, e lá se faziam presentes uma série de princípios estabelecidos pela Bauhaus na Alemanha. [1]
Após a experiência embrionária alavancada pelo casal Bardi em São Paulo, o processo de acelerado desenvolvimento industrial e urbano de algumas cidades brasileiras no final da década de 1950 e durante os anos 60 irá abrir campo para o início de novas experiências no ensino do design no país: a Escola Superior de Desenho Industrial – ESDI, no Rio de Janeiro; a estruturação de disciplinas relacionadas ao desenho industrial no programa da FAU-USP, coordenada por Vilanova Artigas; e a Escola de Artes Plásticas de Belo Horizonte, MG. [2]
Neste mesmo período, Lina Bo Bardi, já naturalizada brasileira, viajaria para Salvador para lecionar no Curso de Arquitetura da Escola de Belas Artes da Bahia em 1958 e, a partir deste primeiro contato, desenvolveria uma intensa atividade cultural, criando no nordeste um Centro de Estudos sobre o Trabalho Artesanal – CETA e, principalmente, a partir da criação e direção do Museu de Arte Moderna da Bahia – MAMB. Deparada com a realidade cultural particular de Salvador, a arquiteta se empenharia em absorver esta tradição como elemento diferenciador de modo a conferir identidade particular ao seu projeto de modernidade defendido para o nordeste do Brasil, por onde ela viajaria com intenção de recolher e analisar objetos capazes de documentar as referências consideradas autênticas da expressão da identidade brasileira. [3]
Considerando esse interesse, torna-se possível compreender a gestação de um Museu de Arte Popular a partir do Museu de Arte Moderna e, em seguida, a realização de uma “Escola de Desenho Industrial” que seria implantada no conjunto arquitetônico do Solar do Unhão, cujo restauro também foi realizado pela arquiteta. Lina buscava a implantação de um modelo de ensino de Desenho Industrial no Brasil diferente daqueles que se concretizaram no mesmo período, que possuíam um enfoque de qualificação dos produtos industriais dentro do contexto das cidades brasileiras mais desenvolvidas industrialmente [4]. O projeto baiano de Lina, por sua vez, apresentava como diferencial uma aposta na assimilação dos saberes ligados à tradição. Tradição esta que, em seu ponto de vista, deveria passar por uma transformação inevitável e necessária, enquadrando-se como uma herança importante para a construção de um futuro cultural. O progresso inadiável trazido pela máquina e pela indústria deveria ter como ponto de partida as raízes culturais originais do Brasil, opondo-se a um processo de desenvolvimento que provocaria a exclusão das mesmas. [5]
“Procurar com atenção as bases culturais de um País (sejam quais forem: pobres, míseras, populares) quando reais, não significa conservar as formas e os materiais, significa avaliar as possibilidades criativas originais. Os materiais modernos e os modernos sistemas de produção tomarão depois o lugar dos meios primitivos, conservando, não as formas, mas a estrutura profunda daquelas possibilidades.” (BARDI, 1994, p. 21)
Lina amadurece um conjunto de conceitos e uma proposta precisa de intervenção sobre as bases populares nordestinas: idéias de povo, de popular, de civilização, de folclore, de artesanato, são alguns exemplos. A sua proposta parte de uma concepção da cultura tradicional como elemento vivo e em evolução, que exclui a noção de folclore – a estagnação, o supérfluo – definido por ela:
“Está fora de causa o folklore, que serve aos turistas e às Senhoras que acreditam na beneficência. Folklore é uma palavra que precisa ser eliminada, é uma classificação em categorias, própria da Grande cultura central, para eliminar, colocando no devido lugar, incômodas e perigosas posições da cultura popular periférica”. (BARDI, 1994, p. 20)
Afastando dos artefatos populares a definição de folclore, Lina ainda discorre sobre o seu entendimento a respeito do conceito de artesanato.
“O artesanato popular corresponde (o artesanato é sempre popular, vamos excluir de nossa conversa as diversas boutiques que se reclamam do artesanato) a uma forma particular de agremiação social, isto é, às uniões de trabalhadores especializados reunidos por interesses comuns de trabalho e mútua defesa, em associações que, no passado, tiveram o nome de CORPORAÇÕES. (...) As corporações existiram na Antiguidade Clássica, isto é, na Grécia e Roma, e tiveram o máximo esplendor na Idade Média, quando a Europa inteira se constituiu em Corporações”. (BARDI, 1994, p. 16).
Lina adota então o termo pré-artesanato, defendendo que a organização social artesanal pertence ao passado, e o que existe no Nordeste são sobrevivências naturais em pequena escala, como herança de ofício. Apesar da aparência artesanal, essa produção é decorrente da miséria da população, que a obriga a esse tipo de trabalho.
É importante destacar a natureza do ponto de vista de Lina Bo Bardi a respeito da tradição artesanal/popular brasileira, que de ideais românticos absolutamente nada tem.
“O Brasil se industrializou, a nova realidade precisa ser aceita para ser estudada. A volta a corpos sociais extintos é impossível, a criação de centros artesanais, o retorno a um artesanato como antídoto a uma industrialização estranha aos princípios culturais do país é errada. Porque o artesanato como corpo social nunca existiu no Brasil, o que existiu foi uma imigração rala de artesãos ibéricos ou italianos e, no século XIX, manufaturas. O que existe é um préartesanato doméstico esparso, artesanato nunca”. (BARDI, 1994, p. 12)
Desse modo, com esses princípios estabelecidos é que seriam pensadas as ações do Museu de Arte Popular implantado no Solar do Unhão.
“A idéia inicial era a de constituir o Museu como espaço para o registro dessa produção popular de todo o Nordeste. Um registro necessário para que então se pudesse ter, como idealizava Lina Bo, a criação de uma Escola de Desenho Industrial moderna que tivesse como matriz, como lastro cultural esses fatos populares. Diante de um processo inevitável de evolução tecnológica, de industrialização, o Museu de Arte Popular cumpriria o papel de estabelecer uma aliança entre a modernização da sociedade e a sua identidade cultural”. [6]
O levantamento sobre a produção popular nordestina realizado por Lina produz mais de mil objetos recolhidos em feiras e outros locais de várias cidades, e seus resultados concretizam-se na mostra intitulada Nordeste, no dia 3 de novembro de 1963, com recursos muito simples, realizada com os objetos expostos sobre caixotes de madeira, evocando a maneira como eles encontravam-se originalmente expostos. Impedida de estrear na Galeria de Arte Moderna de Roma em 1965, no início do período da ditadura militar, a exposição volta a ser exibida no Solar Ferrão em Salvador sob o título “Fragmentos: Artefatos populares, o olhar de Lina Bo Bardi” a partir de 18 de março de 2009.
O último projeto de Lina, nessa primeira passagem por Salvador, trata-se da constituição do Centro de Estudos do Trabalho Artesanal (CETA) e a criação da Escola de Desenho Industrial que produziria objetos-tipo para a indústria a partir do conhecimento da cultura préartesanal. A didática da escola se assemelha à filosofia da Bauhaus de imbuir no aluno o conhecimento de todas as etapas do processo de criação do objeto, desde o seu projeto até a sua execução.
“O plano de ação dessa Escola de D.I. seria o de um aprendizado que se estabelecesse pelo contato direto entre alunos universitários (originários dos cursos de engenharia ou de arquitetura) e mestres artesãos, com uma troca de experiência mútua”. [7]
A interrupção do trabalho de Lina na Bahia significou a interrupção deste projeto, do qual se tem apenas o registro textual. O Golpe Militar de 1964 paralisou e cancelou a sua ação em Salvador e assistiu ao seu retorno para São Paulo.
“O cancelamento desta experiência impediu a concretização de uma escola de Desenho Industrial que adotava um caminho original e inovador no contexto histórico do desenvolvimento das escolas de design; sobretudo por estabelecer-se distante dos centros mais industrializados do país e por acreditar que a condição que muitos definem como de atraso, poderia ser, na realidade, uma condição privilegiada”. [8]
Este episódio do desenvolvimento do design e do seu ensino no país não é referido na historiografia, tendo sido resgatado pelos autores Juliano Aparecido Pereira e Renato Luiz Sobral Anelli [9]. Visto que falar sobre artesanato é algo que ocupa parte relevante das preocupações dos profissionais com o design e também não se esgotaram os dilemas da globalização e da preservação das identidades locais, julga-se importante a inserção desses conhecimentos tanto nos estudos correntes sobre a história do design no Brasil, como para o propósito de reflexão crítica deste trabalho.
b. a ação política e cultural de Aloísio Magalhães
No Brasil, assim como na Inglaterra, a institucionalização do design acompanha a industrialização, que se apresentou de maneira tardia [10]. As condições de modernização e industrialização brasileiras foram favoráveis às tentativas de institucionalização e ao fomento do design pelo Estado, e em 1962 é criada a Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI) do Rio de Janeiro, financiada pelo governo e consolidando-se como a primeira graduação em desenho industrial no país, inspirada no modelo da Escola de Ulm. Na década de 70, a priorização pelo governo da pesquisa e do ensino das áreas tecnológicas, fomentando a iniciativa de criação de cursos de design nas universidades públicas por todo o país, fortaleceu o campo do design no Brasil. [11]
“Assim, nas décadas de 60 e 70 o design no Brasil começou a alcançar visibilidade. Dentre as obras a gerar repercussão estavam as identidades corporativas de empresas brasileiras desenvolvidas por Magalhães, como as Estatais Petrobras, Unibanco, Embratur, Caixa Econômica Federal e, entre outros, o projeto do papel-moeda nacional e a marca do IV Centenário do Rio de Janeiro”. (CABRAL, 2007, p. 38)
Neste mesmo período, tornava-se claro que o modelo alemão de Ulm não tinha funcionado no Brasil, e estudantes da ESDI denunciavam o fato de que, embora houvesse uma escola de design no Brasil, não existia nenhum design brasileiro nos produtos cotidianos. Essas preocupações começavam a surgir também em outros países latinos invadidos pelas multinacionais, como o Chile e o México, iniciando a indagação sobre a adequação entre tecnologia, meio ambiente e cultura. [12]
“É neste contexto de indagação a respeito do papel do design na sociedade, da estética própria do produto brasileiro, ou até mesmo do produto brasileiro (...) que surge a atuação de Magalhães no campo da cultura. Tramitando entre a ESDI e o Centro Nacional de Referências Culturais (CNRC), Magalhães abordava essas temáticas em um país onde o design deparava-se com os modos de produção artesanal, manufatureiro e industrial, além de empresas e tecnologias de vários portes”. (CABRAL, 2007, p. 38-39)
Bacharel em Direito, artista e designer gráfico consagrado pelo campo, atuou como gestor político intitulando-se “intermediador” [13]. Seus projetos desenvolvidos de forma multidisciplinar revelaram a diversidade da cultura brasileira numa nação representada por ele como uma sociedade modernizada, industrializada e, ao mesmo tempo, subdesenvolvida. [14]
As ações do CNRC, com a sua incorporação ao Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (IPHAN), terminaram por se destacar no campo da política cultural brasileira provocando a reformulação do conceito de bens culturais e culminado nos conceitos de bens de natureza material e imaterial, inseridos na Constituição Federal de 1988. Contudo, apesar da consideração dos bens culturais materiais e imateriais durante a gestão de Magalhães, a política patrimonial só começou a operar efetivamente sobre esses bens a partir do ano 2000, quando foi instituído o instrumento do Registro dos bens culturais de natureza imaterial, o Decreto 3551. [15]
Quanto ao conceito de artesanato, semelhante a Lina Bo Bardi, Magalhães deixa claro que, se considerarmos os conceitos clássicos e ortodoxos de artesanato, “não existe propriamente artesanato no Brasil”. Conforme seu raciocínio, o artesanato seria uma tecnologia de ponta de um determinado momento histórico, que evolui em direção a uma maior complexidade, eficiência e produtividade. No Brasil, essa atividade estaria presente onde existe a “relação muito direta entre a idéia e a concretização, pequena intermediação entre a idéia e o objeto final”. [16]
A ação de Magalhães, então, era no sentido de valorizar o que ele denominava de autênticas identidades nacionais (presentes no saber e na capacidade criativa do “povo”), ameaçadas constantemente pelo processo de desenvolvimento tecnológico em curso no Brasil iniciado entre as décadas de 30 e 50 [17]. Para ele, o desenvolvimento deveria ser “harmonioso”, por estar considerando as peculiaridades de cada cultura. O Estado deveria atuar sobre os bens da produção cultural, observando, retirando e estimulando as suas ocorrências. [18]
Esta forma de atuação não deveria caracterizar-se em “intervenção”, termo utilizado quando Magalhães critica as ações de programas governamentais que atuavam, na época, sobre o artesanato, na forma de atuações paternalistas, que ignoravam a dinâmica própria e as peculiaridades da produção artesanal; bem como ações compartimentadas e especializadas dos órgãos públicos, que tentavam enquadrar a várias manifestações e complexidades do artesanato na mesma diretriz [19]. Nem o artesanato deveria permanecer como tal, nem deveria ser incorporado ao sistema capitalista, tendo como condição o aumento de sua produtividade.
“É adequado, pois, chamar-se devolução à orientação que deve presidir os trabalhos – desde seu planejamento até sua execução – buscando reintegrar os contextos que os possibilitaram, tanto os seus resultados materiais quanto os reflexivos e cuidando para que a participação nesses benefícios seja ampla e democrática”. (Cit. em CABRAL, 2007, p.46)
Em busca de realizar o almejado apoio, as ações do CNRC contemplavam a identificação, para conhecimento da dinâmica cultural; o registro e a indexação, por meio de documentação audiovisual que resultaria na memória; e a devolução, também definida como uma forma de comunicação, reintegradora, adequando-se à complexidade cultural de cada contexto, tudo isso resultando na reflexão. Contudo, Magalhães reconheceu como problema enfrentado pela CRNC as incertezas sobre o devolver e quais instrumentos legais permitiram essa devolução. Esta terminou concretizando-se como uma utopia do CRNC, posteriormente repassada para o IPHAN. [20]
Magalhães atribuía valores ao fazer popular que não deveriam ser prejudicados no processo de devolução, os quais seriam: a noção de povo, ponto principal da sua narrativa, entendido como o agente que possibilita a dinâmica viva da produção cultural brasileira; a noção de continuidade, na medida em que o passado é importante quando garante a continuidade de um processo cultural; a noção de autenticidade, baseada no conceito de identidade nacional; e a invenção, entendida como capacidade de criação, que, diferente do artesanato europeu, tolera novas situações [21]. Ao falar em criação, Magalhães elaborou a analogia paradoxal entre o artesão e o designer: “Em outras palavras, o artesão brasileiro é basicamente um designer em potencial, muito mais do que um artesão no sentido clássico” [22]. O artesão seria produtor de um pré-design, um designer em potencial, mas não um designer detentor dos códigos e normas estéticos da criação.
Foram estudadas no CRNC diversas formas de realizar a devolução; os técnicos mostravam-se satisfeitos com a produção de conhecimento sobre a produção artesanal, no entanto as dúvidas eram constantes quando se remetiam às formas de devolução. Desse modo, esta ficou resumida, na maioria dos casos, à realização de exposições e publicações das pesquisas na forma de livros, catálogos, vídeos, etc. [23] Essas inquietações sobre a atuação dos agentes externos (projetos de pesquisa e fomento como o CRNC e depois o IPHAN) na valorização e apoio ao desenvolvimento das comunidades artesanais revelam-se ainda atuais, produzindo o relevante questionamento: como devolver ou como intervir da forma mais adequada?
c. ações sobre o artesanato: as políticas públicas brasileiras
Se, no contexto de um panorama internacional de evolução do artesanato contemporâneo, observou-se o comportamento da influência artesanal (seja no modo de produção, seja no sentido de uma identidade pessoal) sobre a esfera do design de produção de objetos e artefatos, ao estudar a realidade brasileira, trilhou-se o caminho inverso: sendo necessário analisar a trajetória particular de desenvolvimento da atividade artesanal no país, realizada em contextos pobres ou miseráveis, o que estudamos agora é a ação de intervenção do design sobre o artesanato popular, particularmente a re-configuração do produto com o intuito de facilitar a sua inserção em novos mercados comerciais.
Desde os anos 1990 esse tipo de ação vem sendo estimulado por órgãos e instituições públicas. Especialmente em 2003, foram criados no Brasil 120 núcleos de design, dos quais vinte por cento tinham uma atuação voltada para o artesanato [24]. Como agente dessas instituições o designer configura-se como a ponte entre o produto da cultura popular e o mercado capitalista. O objetivo é o de localizar discursos e ações que legitimam essa interação entre o design e o artesanato. [25]
Fabrícia Guimarães Sobral Cabral [26] realiza um extenso estudo no sentido de identificar a natureza das ações realizadas por esses órgãos e instituições públicas, e constata dois discursos preponderantes: o do desenvolvimento (que utiliza-se dos termos: inclusão, geração de trabalho e renda, competitividade, inserção no mercado, gestão e outros), e o da preservação (utilizando-se dos termos: proteção, identificação, promoção, preservação, conservação, entre outros). [27]
Na política desenvolvimentista, as instituições que atuam sobre o artesanato aparecem no Brasil em meados do século XX, atuando no reconhecimento do trabalhador (artesão), na melhoria tecnológica ou na inserção do produto no mercado [28]. A partir dos anos 90 o cenário da atuação sobre as culturas populares ganha crescente profissionalização e especialização, bem como o aumento do volume das atuações. Dentre as especializações, surge o novo agente social contratado para atuar na mediação entre o produto artesanal e o mercado comercial capitalista: o designer. Assim, as normas e critérios de avaliação de produtos pertencentes ao modo de produção industrial são impostas à produção artesanal. [29]
A partir do surgimento do designer como instrumento mediador entre artesanato e mercado, Cabral toma para análise o discurso do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), que hoje atribui aos designers ações na valorização do artesanato que, pela capilaridade e estrutura da instituição, terminaram por delinear os discursos e a forma da maioria das ações de design sobre o artesanato no país. [30]
O discurso do SEBRAE procurou aproximar-se dos discursos das instituições culturais, como o IPHAN, ao reconhecer o artesanato como patrimônio cultural brasileiro e estabelecer ações com o objetivo de “resgatar a cultura como fator de agregação de valor ao artesanato promovendo produtos com a ‘Cara Brasileira’” [31]. Em diversos momentos, o discurso de ambas as instituições aparentam caminhar man-mano com o mesmo rumo, mas Cabral identifica uma série de divergências e oposições.
Um exemplo é a noção de referência cultural utilizada pelo SEBRAE para conferir identidade aos produtos artesanais, que devem ser “resultantes de uma intervenção planejada de artistas e designers, em parceria com os artesãos, com o objetivo de diversificar os produtos, porém preservando os seus traços culturais mais representativos”. Aqui, a referência cultural parece ter que ser apreendida e inserida no artesanato. Para o IPHAN a referência cultural já está presente no artesanato, devendo ser apenas apreendida, identificada e documentada por meio de pesquisa etnográfica. [32]
Outro exemplo é o trabalho de pesquisa recomendado pelo SEBRAE, que se configura como um “diagnóstico” dos contextos socioculturais, culturais e ambientais, enquanto o IPHAN recomenda a utilização de inventário etnográfico. O trabalho de campo do SEBRAE duraria uma semana, entre diagnóstico e resultado da intervenção. A realização de inventário recomendada pelo IPHAN não tem tempo determinado, dependendo da complexidade e da sazonalidade dos objetos de estudo. [33]
“Sabemos que a política desenvolvimentista prima por respostas rápidas e que não poderia esperar anos, seja por um diagnóstico ou por um inventário. Mas sabemos também que com apenas uma semana entre diagnóstico e intervenção, não há de se esperar outra coisa senão que o resultado fique preso a estereótipos traduzidos na forma de elementos icônicos, figuras e cores das paisagens”. (CABRAL, 2007, p. 65)
Em seu estudo, Cabral ainda cita o trabalho realizado por Renato Imbroisi, designer contratado pelo SEBRAE para realizar intervenções no Distrito Federal, em Tocantins, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais. O designer dissemina uma homogeneização na constância na forma de apresentação do produto, e conseqüentemente no saber a ser transmitido, da região norte a sul do país, numa fórmula simples e reducionista, muitas vezes equivocada de retratar a identidade local. “Plausível, se não escamoteasse ou até desestimulasse expressivos modos de produção da localidade, visto que este seria o objetivo primeiro”. [34] A atuação de Renato Imbroisi, como agente mediador dessa ideologia de produção, é um exemplo das muitas intervenções de design contratadas pelo SEBRAE, embora não represente toda a ação da instituição. O trabalho, entretanto, foi legitimado e aclamado pela crítica e pelo próprio SEBRAE, configurando uma ação “exemplo” que termina por nortear as ações de outros designers, numa “homogeneização das identidades culturais brasileiras por meio de ícones, a estereotipação renomeada de inovação, ficando a cargo do designer a inovação, a ‘invenção de tradições’ e de identidades com base em elementos icônicos apreendidos na superficialidade”. [35]
Cabral constata que os discursos e as práticas estabelecidos na relação artesanato e design carecem de base conceitual. “Assim sendo, a tomada de posição das instituições de ensino no campo do design, como formadoras do ‘habitus’, poderia fornecer uma grande contribuição por meio de atividades práticas e científicas elevando a base conceitual e buscando as relações efetivas que poderiam ser estabelecidas entre o design e o artesanato”. [36]
Distinto da estratégia do artesanato reconfigurado pelo designer, na abordagem das instituições públicas com políticas preservacionistas, o artesanato figura como Patrimônio Cultural de natureza imaterial e tem como marco de titularização legal da patrimonialização o Decreto Presidencial 3551 de agosto de 2000, atendendo a recomendações da Unesco, que consagra as culturas populares com o seu Registro a cargo do IPHAN. [37]
Em paralelo às experiências desenvolvidas nas instituições patrimoniais, pesquisas e estudos sobre folclore [38] e culturas populares foram desenvolvidas em outras esferas das políticas culturais desde os anos 40, culminando na consolidação do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP), que desempenha importante papel na política patrimonial dos bens imateriais e é composto pelo Museu do Folclore Edison Carneiro, pela Biblioteca Amadeu Amaral, e por setores de pesquisa, difusão e ação educativa [39]. De modo a estabelecer uma relação de contraste entre as ações das instituições com políticas desenvolvimentistas já descritas, destacam-se aqui as suas ações voltadas para o fomento do artesanato na vertente de intervenção social e mediação entre o artesanato e o mercado.
O CNFCP possui ações, projetos e programas de fomento, apoio e preservação do artesanato, dos quais se destaca o Programa de Apoio às Comunidades Tradicionais (PACA), que, ao estabelecer a parceria com o Programa Artesanato Solidário (ARTESOL), ganhou força e operacionalização em 1999 [40]. “As atividades do CNFCP visam apoio e a promoção das celebrações, saberes e fazeres das culturas populares de um modo geral; o ARTESOL, estruturado pela constatação do paradoxo da coexistência de riqueza cultural com extrema pobreza, tem como prioridade o fomento e a comercialização do artesanato tradicional desenvolvido em regiões com índice de pobreza constatado oficialmente (...). Mas ambos focam na valorização do ser humano por meio da valorização dos seus saberes, conscientizando o artesão, qualificando o produto e inserindo-o no mercado, bem como preparam o mercado para receber esse tipo de produto, com a informação de cunho cultural”. (CABRAL, 2007, p. 88)
Estas características definem o contraste entre a atuação dessas instituições e as ações promovidas pelo SEBRAE, que tem o foco no produto e visam prepará-lo para o mercado, delegando a tarefa ao designer. Principal fomentador da atuação de designers sobre o artesanato, o SEBRAE, como um dos financiadores da pareceria PACA-ARTESOL [41], nesse caso teve a sua atuação limitada à capacitação em associativismo/cooperativismo, comércio e gestão, sem intervir criativamente na produção artesanal.
NOTAS
[1] PEREIRA, J.; ANELLI, R. Uma Escola de Design Industrial referenciada no lastro do préartesanato: Lina Bo Bardi e o Museu do Solar do Unhão na Bahia. Revista Design em Foco, v. II n.2, jul/Dez 2005. Salvador: EDUNEB, 2005, p. 18.[2] Ibidem, p. 19.
[3] MAASS, Marisa Cobbe. O compromisso do design de Lina Bo Bardi com a tradição artesanal. http://www.unb.br/fau/projetoestetica/?p=66. Acessado em 26 de fevereiro de 2009.
[4] PEREIRA, J.; ANELLI, R. Uma Escola de Design Industrial referenciada no lastro do préartesanato: Lina Bo Bardi e oMuseu do Solar do Unhão na Bahia. Revista Design em Foco, v. II n.2, jul/Dez 2005. Salvador: EDUNEB, 2005, p. 19.
[5] Ibidem, p. 20.
[6] Ibidem, p. 22.
[7] Ibidem, p. 25.
[8] Ibidem, p. 26.
[9] PEREIRA, J.; ANELLI, R. Uma Escola de Design Industrial referenciada no lastro do préartesanato: Lina Bo Bardi e oMuseu do Solar do Unhão na Bahia. Revista Design em Foco, v. II n.2, jul/Dez 2005. Salvador: EDUNEB, 2005, p. 17‐27.
[10] CABRAL, Fabrícia G. S. Saberes Sobrepostos: design e artesanato na produção de objetos culturais, 2007. 146 f. Dissertação (Mestrado em Design). Programa de Pós‐Graduação em Design, PUC‐Rio, Rio de Janeiro, p. 36.
[11] Ibidem, p. 38.
[12] Ibidem, p. 38.
[13] Ibidem, p. 39.
[14] CABRAL, Fabrícia G. S. op. cit., p. 39.
[15] Ibidem, p. 41.
[16] Ibidem, p. 43.
[17] Ibidem, p. 44.
[18] Ibidem, p. 45.
[19] Ibidem, p. 45.
[20] CABRAL, Fabrícia G. S. op. cit., p. 47.
[21] Ibidem, p. 47‐48.
[22] Ibidem, p. 49.
[23] Ibidem, p. 55.
[24] CABRAL, Fabrícia G. S. op. cit., p. 14.
[25] Ibidem, p. 57.
[26] Ibidem.
[27] Ibidem, p. 57.
[28] Ibidem, p. 61.
[29] Ibidem, p. 60.
[30] CABRAL, Fabrícia G. S. op. cit., p. 61.
[31] Ibidem, p. 63.
[32] Ibidem, p. 64.
[33] Ibidem, p. 65.
[34] Ibidem, p. 70.
[35] CABRAL, Fabrícia G. S. op. cit., p. 70.
[36] Ibidem, p. 72.
[37] Ibidem, p. 20.
[38] Aqui, diferente do conceito defendido por Lina Bo Bardi, o termo “folclore” envolve a noção de “povo” e “tradição” como condições sine quae non, possuindo um conjunto de traços formais e comportamentais (verbais, musicais, rituais etc.) perceptíveis e documen‐táveis, ligados a um tipo de sociedade que lhe serve de base. (CABRAL, Fabrícia G. S. op. cit., p. 76)
[39] CABRAL, Fabrícia G. S. op. cit., p. 86.
[40] CABRAL, Fabrícia G. S. op. cit., p. 88.
[41] Ibidem, p. 89.
ESTE TEXTO INTEGRA O TRABALHO "MUSEU DO OBJETO BRASILEIRO", TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO APRESENTADO À UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ. ORIENTAÇÃO: PROF. ROBERTO CASTELO. CONFIRA O TRABALHO NA ÍNTEGRA:
http://www.behance.net/gallery/Museu-do-Objeto-Brasileiro/794472