Você já está na Associação Mundaréu há muito tempo e trabalha com comunidades artesanais de diversos lugares do Brasil. Como se envolveu nessa área?
Estudei desenho industrial na Faap e, quando saí da faculdade, fui trabalhar em uma indústria de plástico, com desenho industrial mesmo. Em 2002, após mais ou menos um ano de formada, recebi uma proposta para ir fazer um trabalho na Paraíba, pois o Sebrae de lá estava começando um projeto de resgate do artesanato, um projeto junto com o Comunidade Solidária. Larguei a promissora carreira na indústria de plásticos e fui. Foi aí que comecei a colocar esse pezinho na produção artesanal. Lá na Paraíba, passando por várias comunidades de produção tradicional, fui parar em Esperança, aquela comunidade famosa pela produção das bonequinhas, em Riacho Fundo. Um dia, as artesãs estavam com uma dúvida em um contrato de venda e me pediram para ajudar. Ao ler, percebi que era um contrato da Associação Mundaréu, que estava abrindo a loja naquele momento e propôs comercializar as bonequinhas. Eu pensei: “Nossa, uma organização de São Paulo está fazendo isto? Que legal!”. Quando voltei, em agosto de 2002, bati aqui na Mundaréu para conhecer e fui contratada no dia seguinte.
A Mundaréu foi fundada em 2001 e passou cerca de um ano só comercializando as peças. Embora houvesse pessoas que davam certas lapidadas em determinados produtos, proporcionando um viés mais comercial, a Mundaréu estava começando a perceber que a necessidade dos grupos não se restringia a ter um ponto de comercialização, o buraco era mais embaixo. Era preciso resolver problemas de qualidade técnica, de padronização, de organização e uma série de outras questões. Ter uma loja não resolvia. Eu cheguei justamente no momento em que a Mundaréu estava começando a pensar como é que faria projetos, casando os interesses. Entrei em agosto de 2002 e estou até hoje.
Como a Mundaréu se insere no rol de instituições que atuam em comunidades artesanais? Quais as suas particularidades em relação a outras instituições que desenvolvem trabalhos semelhantes (o Artesol, por exemplo)?
Acho que há uma diferença no tipo de trabalho que a gente faz e no tipo de público que a gente atende. Estamos todos ali no mesmo espaço, mas o Artesol trabalha com o resgate do artesanato de raiz, e aconteceu – não foi uma escolha, aconteceu – de a Mundaréu trabalhar com técnicas que, às vezes, nem são chamadas de artesanato: os trabalhos manuais, que são bastante comuns. Essa produção tem um produtor por trás com características específicas. Então temos um público de baixa renda, composto majoritariamente por mulheres, mães de família, fora do mercado de trabalho e que, pela própria educação e pela própria cultura, tem habilidades manuais e fazem crochê, bordado, tricô etc. Muitas vezes, as peças são copiadas de revistas de artesanato – elas são colecionadoras de cursos de artesanato que fazem nas associações de bairro, em programas de prefeitura. Em linhas gerais, é um público que, por estar fora do mercado de trabalho e por se dividir entre trabalho e família, vive de bicos e usa o que sabe fazer com as mãos. Normalmente, o resultado dos trabalhos manuais não é diferenciado. Embora, muitas vezes, seja muito elaborado e tenha qualidade técnica, o material não é bacana, não é interessante, não é de qualidade, o produto é igual a qualquer outro que você possa ver. Logo, as pessoas não conseguem gerar uma renda com aquilo.
Não escolhemos trabalhar com esse público, foi acontecendo dessa maneira, e a Mundaréu acabou se moldando a isso, pensando seus projetos e seus programas em cima dessa realidade. Como falei, começamos em 2001 com a comercialização e, por perceber a necessidade, decidimos dar um passo maior. Essencialmente, a Mundaréu tem essa mania de se repensar o tempo todo: “Não, aquilo não está muito certo, então vamos para cá; aqui precisa agregar mais coisa”. Temos uma história cheia de transformações. Hoje, somos completamente diferentes do que éramos no começo, com erros e acertos. Primeiro, porque o contexto muda. Em 2001, quando abrimos, não havia quase nenhuma loja que fazia aquilo que fazíamos, ou seja, que vendia principalmente produtos artesanais, que seguia os princípios do comércio justo, era uma novidade. Hoje, tem muito mais gente que faz esse tipo de coisa, e que faz muito bem, então todo o cenário mudou. E nós também fomos mudando. Quando percebemos que não bastava comercializar, criamos um outro braço. Então a Mundaréu tinha um braço de comercialização e passou a ter um braço de projetos.
Desde o começo, esses projetos têm o intuito de promover a geração de renda para pessoas excluídas do mercado formal de trabalho. Normalmente, esses projetos são financiados pela iniciativa privada – temos poucos que recebem algum tipo de financiamento público –, e o objetivo da empresa que financia também desenha o projeto: que público vai atender, em que lugar que vai funcionar... Talvez por isso a caracterização geral do público atendido seja aquela que eu havia falado. Por exemplo, uma empresa tem interesse em desenvolver um trabalho em determinado lugar. Então fazemos a pesquisa, o diagnóstico desse lugar, verificamos o que se pode fazer lá. Na maioria das vezes, não existe grupo, a gente parte do zero, de pessoas que sabem alguma coisa e que, juntas, vão virar um grupo. É por isso que o programa não é imediato. Os projetos duram, no mínimo, um ano, mas tem projetos de dois anos e até de três anos. Eles não são rápidos, mas são bastante profundos, porque envolve tudo: conhecer o lugar, conhecer a população, conhecer os possíveis apoios.
A Associação Mundaréu conta com vários designers em sua equipe – você, inclusive. Como a instituição enxerga o encontro entre design e artesanato? Até onde vai a atuação do designer? Há espaço para a criação do grupo?
Eu gostaria de responder essa pergunta dizendo que o produto final é o que primeiro chama a atenção do grupo. É no momento em que se vê o produto pronto que cai a ficha: “Nossa, a gente consegue fazer uma coisa bacana!”. Apesar de ser um trabalho que não é só de design, que é multidisciplinar, que envolve, além de designers, uma equipe que tem sociólogo, pedagogo, psicólogo, uma pessoa de gestão administrativo-financeira, o que é palpável é o produto. É o produto que é aceito ou não, é o produto que vende ou não, é o produto que trás o dinheiro, então há muita expectativa em cima disso. Para que seja um resultado que possa se sustentar e se desdobrar no grupo quando o projeto acaba, a gente faz um processo bastante integrado de profissionais com o grupo.
Em linhas gerais, conduzimos as coisas as coisas da seguinte maneira: primeiro a gente se conhece e vai conhecer o que as pessoas sabem fazer. Fazemos uma brincadeira até, uma “feira de habilidades”, alguma coisa assim, onde as pessoas apresentam o que elas sabem. Normalmente, elas têm muito orgulho e muito carinho com o que fazem e nós respeitamos isso, mesmo que para o nosso olhar seja uma coisa que não agrada, que não seja viável comercialmente – não é isso que importa nesse momento, o que importa é conseguir perceber o que elas sabem fazer.
Em seguida, junto com as pessoas, fazemos um trabalho de olhar o lugar em que elas estão, seja uma paisagem deslumbrante, seja uma paisagem que não tem lá as suas belezas à primeira vista. Mas todas as paisagens têm formas, cores e uma identidade própria. É daí que vão sair inspirações para que os produtos sejam originais, para que os produtos falem por eles mesmos, para que possam formar coleções, para que possam representar as pessoas daquele lugar, para que sejam interessantes. Nessa hora, acontece a descoberta. Eu imagino que seja parecido com a vida da gente mesmo: fazemos o mesmo caminho de casa para o trabalho todos os dias e pode ser que a gente nunca repare nesse caminho. Quando alguém chama atenção para esse olhar, você descobre coisas novas.
Depois disso, juntamos as duas coisas: o que a gente olhou e todas as técnicas que haviam naquele lugar. Normalmente, em grupos de realidades urbanas, as pessoas sabem muitas técnicas. Todo mundo sabe tudo. É preciso olhar para isso e selecionar – e aí vai o olhar e o palpite do designer, do que pode ser mais viável de se trabalhar para fazer um produto diferenciado. E então fazemos um laboratório de experimentação. Muitas vezes, esse não é um passo agradável, não é um passo fácil, porque todo mundo tem medo do feio, do resultado feio. Normalmente, as pessoas vão pelo caminho em que elas estão seguras do resultado que vai dar. É por isso que as revistas de artesanato dão tão certo: elas mostram o resultado a que se vai chegar. Elas seguem e chegam. Desconstruir esse caminho para incentivar a criação, uma criação que envolve experimentação para poder descobrir novos efeitos, nem sempre é bem aceito. Mas as pessoas experimentam e descobrem coisas, o que é muito legal, porque elas se envolvem, se sentem capazes e animadas com essa ousadia. Nesse momento, a gente descobre o potencial dessas técnicas tão comuns. A gente descobre, por exemplo, que é possível pegar uma corda de barco e fazer um tricô. Não importa o que vai dar. Nesse primeiro momento, o produto é o que menos importa, é mais a experimentação mesmo. É tudo muito prático, feito a partir do que as pessoas sabem, e o designer vai pescando coisas, vai direcionando.
Ao final desse processo, já há algumas direções. Pelo material, pelas referências de cores e de imagens e pela vivência que a gente tem no mercado – a gente pesquisa o mercado local, dá alguns parâmetros do que é o mercado – têm-se os elementos para construir o produto. Então as coisas seguem um caminho quase que natural. Conforme as atividades vão sendo feitas, as coisas vão sendo descobertas e vão sendo construídas. O produto final não é apenas uma sugestão do designer, é conseqüência do trabalho, ele é super integrado com o que o artesão descobriu e com a experiência dele, porque eu posso propor fazer um produto que vai ficar incrível, mas, com a experiência do artesão, ele sabe que aquilo não vai sair do jeito que eu estou pensando. Então é uma parceria mesmo.
Finalmente, depois que os produtos são criados, a gente testa para ver se funciona ou não, porque podem acontecer coisas do tipo: “O produto é maravilhoso, mas leva vinte horas para fazer”. Então a gente vai testando a viabilidade da produção. Quanto tempo leva para fazer? Muito. Então não dá; é um bordado gigante para um produto que não merece tudo isso. Aí vale o saber e a direção do designer para que esse produto, no fim, seja incrível e viável, para que possa vender e dar retorno, é sempre esse o pensamento. As pessoas têm grande prazer e se sentem orgulhosas de criar aquele produto, mas a expectativa é vender. Então usamos a experiência do designer para fazer com que isso dê certo. Não temos fórmulas mágicas, às vezes apostamos em um produto que não vende, mas é isso mesmo, é um ensaio de um negócio, de um empreendimento.
A Associação Mundaréu é certificada pela World Fair Trade Organization, que promove o comércio justo. O que é comércio justo?
Na origem, o comércio justo visava equilibrar as relações comerciais entre o hemisfério norte e o hemisfério sul através de uma série de princípios Atualmente, os princípios são: contratos de longa duração, apoio para aquisição de conhecimentos e desenvolvimento de habilidades, ausência de trabalho escravo e infantil, ambiente de trabalho cooperativo, igualdade entre homens e mulheres, estímulo a práticas ambientais sustentáveis, remuneração justa ao produtor, com preço justo para o consumidor. Essa relação entre hemisfério norte e hemisfério sul foi adaptada e muitas organizações passaram a promover o comércio justo no próprio âmbito nacional, ou seja, aquela proposta macro passou a ser aplicada em relações micro. No Brasil, há modelos de funcionamento diferentes dos da Europa, por exemplo. Se a gente faz a comercialização de produtos e procura manter uma relação de comércio justo, há uma série de princípios que devem ser seguidos, mesmo que não existam atravessadores entre produtores e quem está fazendo a comercialização.
Um ponto importante é a adaptação dos princípios do comércio justo aplicados nas relações de comércio entre países ricos e países pobres à realidade latino-americana, à realidade brasileira. Conhecemos várias histórias de sucesso de como isso foi feito por quem trabalha com produtos agrícolas, commodities, e que funcionam dentro dos princípios do comércio justo, mas na produção artesanal ainda não temos legislações, ainda não temos acordos. Ainda faltam elementos para conseguir criar padrões, para que seja possível dizer: “Olha, a relação do comércio justo no âmbito do artesanato funciona assim, assim, assim”. Há alguns selos de certificação, mas ainda é pouco.
Em março de 2009, Helena Sampaio – que foi Coordenadora Nacional do Artesol, uma organização também certificada pelo WFTO – afirmou em entrevista que o fato de uma loja de luxo vender um produto artesanal por um valor dez vezes maior do que aquele recebido pelo artesão não fere os princípios do comércio justo. Como você enxerga essa questão? O que significa pagar um preço justo por um produto artesanal e como definir essa remuneração?
Para mim, ainda é um terreno muito arenoso. Se você olhar a história de cooperativas agrícolas que fazem parte da rede de comércio justo, você consegue ver muito claramente como são as relações, como se dá a remuneração, as proporções. Isso já está organizado. No artesanato, ainda não. Talvez porque não tenha sido possível, talvez por que os produtos sejam muito diversificados. Como é catalogar e dimensionar essa realidade, que envolve a produção, as matérias-primas, mil coisas? Eu não tenho clareza disso.
Uma vez estávamos falando sobre comércio justo em numa palestra e um comerciante levantou ofendido e disse: “Bom, então eu faço comércio injusto?”. Eu não acho isso, então a nomenclatura também não é a mais adequada. Como é que você levanta a bandeira e diz: “Sim, eu faço comércio justo, sou bacana e o todo o resto não é bacana”?
Mas temos clareza de uma coisa: temos uma carta de princípios e esse é o nosso fio condutor. É o fio condutor de quem pratica o comércio justo. Trata-se de uma preocupação mais global que envolve não só o produtor, o comerciante e o consumidor, mas também o meio, e todo mundo deve ganhar. Então há preocupação com a procedência da matéria prima, com o sistema de trabalho, com a ausência de trabalho infantil. Aliás, essa é uma questão super polêmica também. Quantas crianças estão lá no meio, aprendendo, principalmente no artesanato de tradição? Essa é, inclusive, uma maneira de preservar a cultura daquele lugar, de repassar aquele saber para frente. Não nos deparamos com estas questões nos grupos com os quais a gente trabalha, porque não é artesanato de raiz, mas como é que se resolve? Não está claro ainda.
Os princípios do comércio justo são gerais, macro, mas fazem a diferença. Como garantir esses princípios? Uma das formas é fazer com que o artesão aprenda a calcular custos – contando tempo de mão-de-obra, gastos com material – e a formar preço. Logo, ele tem esclarecimento para decidir se pode dar desconto ou não, por exemplo. Trata-se de fazer com que ele tenha poder de negociação, porque se o artesão faz um determinado objeto, chuta que ele vale dez e o comprador vem e fala “Eu te pago cinco”, ele não sabe se está sendo explorado ou não, pois não tem argumentos para justificar o preço. De repente, ele acha que cinco está bom, mas se colocar na ponta do lápis – o que não é uma coisa simples – vai perceber que custou sete para fazer. Como você instrumentaliza, esclarece e informa? Fazemos um trabalho de educação para que as pessoas possam estar preparadas para essas relações.
Pessoalmente, não acho que o comércio justo seja uma maneira de “proteger” o artesão no sentido paternalista da palavra, porque isso não leva longe. O comércio justo é bom para nortear novas relações de produção e de comércio, não para colocar o produtor numa redoma, porque senão o comerciante, que também tem custos, vira o grande vilão. Ouvimos isso direto dos artesãos: “Nossa, na loja ele aumentou o preço 100%, ele está ganhando muito”. Há tantas questões dentro disso: lucros, despesas, enfim. Eu, pessoalmente, não tenho uma resposta. Dentro da Mundaréu, vejo que estamos o tempo todo repensando isso, mas continuamos com a mesma missão e continuamos seguindo os mesmos princípios desde que abrimos. O tempo todo nos deparamos com a questão de como fazer isso, de como seguir esses princípios, de como estabelecer uma relação justa, porque a situação real não é simples, não é maniqueísta.
Entre os valores da Associação Mundaréu, aparece: “o comércio dos produtos não tem finalidade lucrativa: o preço é justo” e, no site de vocês, entre os compromissos do consumidor com o comércio justo há o seguinte item: “Comprar de pequenos produtores, evitando ao máximo os intermediários”. No início da entrevista, você usou a palavra “atravessador” para se referir aos intermediários. Como a Mundaréu enxerga a figura do intermediário? Intermediário é um atravessador? O intermediário é um elo que deve ser retirado da cadeia?
Eu acho que – e é um “achismo” mesmo – o intermediário tem um papel. Existiu uma razão para ele estar aí. Se há um produtor escondido lá no meio do mato, que não se sustenta no mercado local ou que ainda não descobriu o potencial do mercado local e existe alguém que descobre esse produtor e faça a ponte, levando ele não sei para onde, então existiu a oportunidade para que essa figura estivesse aí. E ela pode funcionar de uma maneira que não seja vilã.
“Atravessador” é uma palavra pejorativa para designar aquela figura que a gente bem conhece, que achata o produtor, que o deixa na miséria, passando por cima de todos. É essa falta de valores humanitários mesmo. Aí é que está o problema e acho que é uma coisa ruim de existir. Não sei se é possível não ter, não sei se é possível existir venda direta em todos os casos, realmente eu não sei. O Brasil é um país muito grande, temos núcleos de produção artesanal em diversos lugares. Eu nunca fiz uma reflexão tão ampla de como seria um sistema que pudesse funcionar para todo mundo.
Somando a isso, o que eu acho é que muitas pequenas ações causam um grande resultado. É o que a gente procura fazer. Trabalhamos em um universo microscópico. Se comparados à realidade brasileira, ao tamanho da população, são resultados ínfimos. Mas as pequenas ações são mais fáceis de serem multiplicadas e, sendo muitas, talvez dêem um resultado macro. E aí, talvez, a realidade mude. Eu não acredito em mudanças que aconteçam de fora para dentro. Vejo isso dentro dos próprios grupos. O grupo aprende a lidar com o dinheiro quando o dinheiro chega e dá um pau desgraçado, uma briga para dividir e decidir o que vai ficar de fundo de reserva, o que não vai ficar... É na experiência que se aprende. Então eu acho que talvez o espaço desse atravessador deixe de existir quando toda a estrutura mudar.
Os princípios do comércio justo são discutidos com os grupos? Não há a necessidade de trazer essa discussão e, se necessário, adaptá-los, para que não seja algo que venha de fora para dentro e, às vezes, careçam de sentido no contexto em que são aplicados?
Eu acho que sim, mas a gente não tem feito. O que a gente faz é vivenciar os princípios sem refletir sobre eles. Eu concordo e acho que é uma questão de organizar espaços para isso, mas é importantíssimo discutir e interpretar à luz da realidade das pessoas.
À primeira vista, os princípios do comércio justo parecem encarecer os objetos. No entanto, comparando-se com lojas não certificadas, os preços dos produtos vendidos pela Associação Mundaréu são bastante convidativos. Como isso é possível?
A gente não faz mágica: a diferença é que nossa atividade não gera lucro. Nós somos uma OSCIP – Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – e nos propusemos a atuar dessa maneira, então há uma missão à frente da comercialização. Agora, estamos reformulando toda a área comercial, também porque ela não se sustenta. Então, claro, temos custos de vendedores, impostos, lojas etc., mas procuramos adequar o preço final de maneira a fazer com que as peças tenham saída, porque a gente quer ter um canal de comercialização que venda e traga retorno aos grupos. A gente se baseia em parâmetros de mercado mesmo, o que vende e o que não vende. Não sei comparar com outras lojas, mas conhecemos a realidade do público que freqüenta a Mundaréu e sabemos o que se paga e o que não se paga, então a gente se guia por aí. A idéia não é nem ser a Madre Teresa de Calcutá do comércio e nem o outro extremo. A gente não faz milagre, mas a gente procura estar num patamar que seja possível vender.
Procuramos ter o pé no chão e fazer essa ponte com o mercado o tempo todo. Muitas vezes é até mal visto: “Ah, o pessoal se preocupa muito com a comercialização, é muito mais importante a preservação da cultura, do saber...”. Uma coisa não se dá em detrimento da outra, principalmente porque a gente lida com esse público que tem uma cultura muito plural, muito cheia de interferências, que tem uma necessidade imediata de ter uma melhoria de renda e que está excluído do mercado formal do trabalho por uma série de motivos – pela baixa escolaridade, pela redução da contratação formal de trabalho.
Na nossa concepção, fazer um produto que encha de orgulho, mas que fique na prateleira, não traz resultados para o que a gente se propõe a fazer. Não é um trabalho apenas para aumentar a auto-estima. Isso é uma conseqüência. As pessoas acham uma delícia estar em grupo, se conhecer. Se você for fazer uma entrevista, as pessoas vão dizer uma série de coisas além de “Ah, eu consegui vender as minhas coisas, coloquei dinheiro no bolso”. Mas o que está movendo tudo isso é a formação de um negócio, é um empreendimento feito por um coletivo. Não se pode deixar de olhar o mercado, porque isso não está num mundo paralelo, está inserido aqui dentro, dentro do sistema capitalista, dentro de uma série de concorrentes, dentro de uma realidade onde clientes vão dizer: “Olha, eu pago tanto, eu não pago tanto”. É assim. Trata-se de pensar como preparar melhor o grupo para funcionar dentro disso.
No site da Mundaréu há um banner com a conta da instituição convidando as pessoas a fazerem doações. Ao abrir mão de lucros, há dificuldade em manter a sustentabilidade da Associação?
Muita! A gente passa por grandes dificuldades para manter a atividade, para manter uma estrutura – que conta com pessoas trabalhando, telefone, computador etc. Nunca conseguimos ficar folgados, plenamente sustentáveis, tanto que a gente está se reestruturando, está se repensando. O comércio não está justo, alguma coisa não está justa, não está 100% certo. Se a gente, que está propondo isto, não consegue se sustentar, temos que reavaliar tudo. Foi isso o que a gente começou a fazer há algum tempo, e estamos mudando toda a estrutura em prol da sustentabilidade da Mundaréu, dentro do mercado em que está inserida, dos limites desse mercado. Há uma porcentagem no preço dos produtos para a manutenção da loja, mas, muitas vezes, o giro das vendas não é suficiente para, por exemplo, manter um ponto na Vila Madalena.
O que é necessário para um produto dar certo no mercado?
Dá certo um produto diferenciado, que chama a atenção, que tenha muita qualidade. Ninguém está interessado em comprar para ajudar. E também não é isso o que a gente quer. Quem compra para ajudar, compra uma vez e pronto. Queremos vender para pessoas que querem ter aquilo porque é lindo de morrer. A história também é super importante. É preciso informar quem fez, de onde é. Tudo isso cria a sedução para a compra. Muitas vezes, essa história por trás é traduzida no próprio produto, que traz imagens, a cor dos lugares. Toda essa história chama a atenção.
Qual a importância da identidade visual e do valor de marca para a comercialização dos produtos?
A área de comunicação, de maneira geral, é fundamental para fazer com que esse negócio gire. Ele tem uma história, então é preciso encontrar maneiras de contar essa história, seja pela etiqueta, seja pelo site, seja por banner. Eu acho que é super importante e as pessoas gostam disso. Todo mundo quer história, todo mundo quer a etiqueta, todo mundo quer ter esse atestado de procedência. E ajuda a se destacar, a se diferenciar dos concorrentes.
A Associação Mundaréu desenvolve uma série de trabalhos com sobras e resíduos urbanos, reaproveitando ou reciclando os materiais. Por um lado, há todo o aspecto positivo de tentar resolver o problema do lixo, mas, por outro, há quem diga que não se deve buscar soluções para o lixo e sim parar de produzi-lo em quantidades exorbitantes. Por exemplo, melhor do que reaproveitar a caixinha do McLanche Feliz seria fazer um lanche sem a caixinha. Reutilizar e reciclar seriam apenas uma face da mesma moeda da produção e consumo desenfreados. Vocês discordam dessa visão?
No começo, a gente achava que sim, que era preciso aproveitar a caixinha do McDonald’s. Hoje em dia, somos mais ponderados. Se para aproveitar um material é necessário realizar um processo de lavagem que vai gastar não sei quantos litros de água, isso não faz sentido. Então passamos a nos questionar mais para ver se, de fato, você não transforma lixo em outro lixo e ainda gasta energia – energia das pessoas, energia elétrica –, água. Agora somos mais criteriosos para decidir o que é possível aproveitar ou não.
Mas tem coisas que vão para o lixo e são, inclusive, resíduos duráveis. Por exemplo, a gente tem um trabalho com resíduo de feltro, 100% lá de carneiro. É lixo, é resto de peça de máquina. Por que não aproveitar? Ele já vem cortado, já está perfeito, é só pegar. É uma matéria-prima que está indo para o lixo. Então eu acho que é uma questão de estabelecer alguns critérios, refletir. Eu concordo com essa colocação de que não adianta reciclar as caixinhas do McDonald’s se o McDonald’s vai continuar produzindo caixinhas para embalar lanches, a transformação tem que ser outra. Mas, voltando àquela coisa das grandes mudanças feitas por micro ações, eu também acho que os saltos são muito mais difíceis de dar. Fazer o McDonald’s parar de produzir a caixinha é um salto. Talvez trabalhar a caixinha do McDonald’s seja um passo, e um passo que esteja mais próximo da transformação da embalagem.
De acordo com o site de vocês, “O comércio justo é uma das principais respostas aos problemas enfrentados pelos pequenos produtores dos países pobres. Ele dá aos consumidores a oportunidade de usar seu poder de compra para equilibrar o jogo em favor das comunidades empobrecidas”. O consumidor, no ato de consumir, tem a possibilidade de transformar o mundo?
Que pergunta difícil! Eu estava escutando no rádio esses dias uma promoção que eu fiquei louca para participar, mas não consegui. Era assim: “Se você tivesse dez horas para mudar o mundo, o que você faria?”. Vale um computador! É mais ou menos esse o nível da pergunta que você está fazendo! O poder do consumo é grande e, se ele é grande, é passível de promover a transformação. Mas eu paro por aí.
A missão da Mundaréu é “criar oportunidades de geração de renda para pessoas excluídas do mercado de trabalho”. Esse objetivo é contemplado? Como vocês avaliam os resultados alcançados?
Fazemos avaliações por projetos. Primeiro no marco zero, depois no final e, finalmente, após meses ou anos do fim do projeto. Os resultados são muito diversos. Há grupos que se estabelecem, caminham pelas próprias pernas, viram empreendimentos mesmo, se formalizam; Há grupos que se desmancham, se dividem. Os resultados são muito diversos, mas em todos eles há uma transformação pessoal muito significativa. Por exemplo, no Guarujá, uma parte do público do projeto – a grande maioria, mulheres – é analfabeta ou analfabeta funcional. Lá são cinco grupos que fazem parte de uma rede começamos a nos comunicar por e-mail com algumas lideranças do grupo. Tem gente que foi aprender a ler para poder ter um e-mail. Então é uma transformação, é resultado. A gente mede tudo isso.
Há milhões de transformações pessoais – em quem participa do grupo, na família, nos filhos, nos maridos – e resultados de geração de renda também, que não são imediatos e muitas vezes não são freqüentes, sofrem altos e baixos, porque não são subsidiados. É como em qualquer negócio que está começando. A gente consegue alavancar, criar as bases para isso, mas ele só vai vingar se as pessoas empreenderem – e é nisso que a gente aposta.
O que poderia ser destacado como principal dificuldade do trabalho da Mundaréu?
Há duas dificuldades um pouco amarradas. Primeiro, a comercialização – principalmente este pontapé inicial, de começar a comercializar e ter a manutenção desse retorno. É uma dificuldade porque isso tem altos e baixos, tem sazonalidade, e o grupo muitas vezes tem necessidades e desejos imediatos, não tem a vivência e o hábito de planejar, de investir para o futuro, logo desiste. Essa é uma dificuldade grande: apostar no futuro e investir no futuro. E aí já estamos falando da segunda dificuldade, que é desenvolver o espírito empreendedor, a dificuldade de formar empreendimentos que se formalizem. A gente sempre procura vivenciar o empreendimento para depois formalizar com a cara que ele tiver, porque a gente sabe que tem inúmeras pedras no caminho, e não adianta eu criar uma cooperativa para depois saber como funciona uma cooperativa. Manter um negócio e manter a comercialização são as duas principais dificuldades.