Era 1938. O processo de urbanização no Brasil estava acelerado e novas tecnologias revolucionavam a comunicação - em especial o rádio, o meio então dominante. Paralelamente, o governo de Getúlio Vargas decretava perseguição policial aos cultos afro-brasileiros no nordeste, por julgá-los "baixo espiritismo". Diante desse contexto, o escritor Mário de Andrade temia pelo desaparecimento das manifestações populares. Mário, na época Diretor do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo, decidiu então organizar um grupo de pesquisa para viajar ao redor do Brasil com o objetivo de registrar as manifestações folclóricas brasileiras, em especial canto e dança, antes que elas se extinguissem.
A equipe foi composta por Martin Braunwieser, músico e maestro austríaco membro do Coral Paulistano, Luiz Saia, arquiteto e membro da Sociedade de Etnografia e Folclore e chefe da expedição, Benedito Pacheco, técnico de som, e Antônio Ladeira, assistente técnico de gravação do Departamento de Cultura e auxiliar geral da missão. Equipados com a melhor tecnologia da época - uma máquina americana Presto Recorder que gravava em discos de acetato, uma filmadora Kodak de 16 mm, uma câmera fotográfica Rolleiflex, e dezenas de outros acessórios, entre filmes, lentes, filtros e microfones -, partiram de navio do porto de Santos em fevereiro de 1938, com destino a Recife.
Munidos de uma tonelada de equipamentos, viajando de barco, caminhão, e ainda se esquivando da ameaça de um possível ataque do bando de Lampião, o grupo ingressou numa incursão romanesca. Passaram por volta de 30 cidades dos estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará, Maranhão e Pará. Em quase seis meses de viagem, os pesquisadores angariaram um acervo de 1.500 melodias gravadas, 1.126 fotografias, 17.936 documentos textuais (cadernetas de anotações, cadernos de desenhos, notas de pesquisas, notações musicais, letras de músicas, versos da poética popular e dados sobre arquitetura), 19 filmes de 16 e 35 mm, e mais de mil peças catalogadas entre objetos etnográficos, instrumentos de corda, sopro e percussão.
Construíram um rico mapa cultural do nordeste: Bumba-meu-boi, Nau Catarineta, Cabocolinhos, Maracatu, Tambor-de-Criola, Tambor-de-Mina, Praiá, Aboios, Cocos, Catimbó, Sessões de Desafio, Xangôs, Cantigas de Roda, de Ninar, Cantos de Trabalho, Cantos Religiosos, Cateretê, Barca, entre outros. Além de cantos e danças diversas, registraram também detalhes da fabricação de utensílios artesanais e da poética popular. Informações complementares às gravações possibilitaram ainda construir uma visão ampla do contexto socioeconômico das regiões visitadas.
Mario esperava contribuir assim com a incipiente etnografia científica nacional. Tudo o que fosse coletado seria destinado ao acervo da Discoteca Pública, uma divisão do Departamento de Cultura. O material compõe o acervo da Discoteca Oneyda Alvarenga, que hoje está sob a guarda do Centro Cultural São Paulo desde 1993. Parte dos registros foram também lançados em um box com 6 CDs pelo Selo SESC.
O Escritor Turista
Guiado pelos ideais modernistas de nacionalismo, Mario já havia feito antes três grandes viagens pelo Brasil buscando entrar em contato com o que havia de mais primitivo na cultura popular. Na primeira, em 1914, foi a Minas Gerais, acompanhado do escritor Oswald de Andrade, da pintora Tarsila do Amaral, do poeta suíço de expressão francesa Blaise Cendrars e de Dona Olívia Guedes Penteado, a mecenas dos modernistas de São Paulo. Em 1927, em plena fase de criação de Macunaíma, foi para a Amazônia. Um ano depois, viaja para o Nordeste, visita Pernambuco, Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte. Lá, coleta cerca de 900 melodias e conhece pessoalmente o folclorista Luís da Câmara Cascudo, com quem passa a se corresponder regularmente. Toda biografia de Mário de Andrade registra as três grandes viagens que o escritor fez pelo Brasil, e as anotações feitas durante as visitas ao Norte e Nordeste, com clara preocupação etnográfica, deram origem ao livro O Turista Aprendiz.
Embora não tenha podido participar pessoalmente da viagem de 1938, o escritor, segundo correspondência trocada com Câmara Cascudo, considerava a missão “coisa de vida ou morte". Mario pretendia juntar-se ao grupo, mas seus planos sofreram um duro golpe quando, no final de maio, Getúlio Vargas substituiu o prefeito paulista Fábio Prado por Prestes Maia, que afastou o escritor do cargo de diretor do Departamento de Cultura e ordenou desfazer-se a missão.
Refazendo os caminhos da Missão
Se na época Mário teve seus planos interrompidos, mais de 60 anos depois outro projeto não só conseguiu recriar o percurso completo de sua viagem como também ganhou incentivo para ser repetido e ampliado. Os cineastas Luiz Adriano Daminello e Jorge Palmari se interessaram por refazer o roteiro das Missões de Pesquisas Folclóricas e descobrir o que havia restado daquelas manifestações populares.
Algumas delas já haviam desaparecido por completo, enquanto por outro lado muitos grupos ainda resistiram e permanecem com participação ativa na cultura local, como no caso dos índios Pancararus, da aldeia Brejo dos Padres, em Pernambuco. Na reconstituição do trajeto original, o cineasta filmou congos, pontões e aboiadores em Pombal e Souza, na Paraíba, reisado, cocos e maneiro-pau, na região do Cariri, Ceará, tambor de crioula e boi-bumbá, em São Luís, Maranhão, e a festa do Círio de Nazaré, em Belém do Pará.
Em 2000, o projeto iniciou uma nova etapa, com apoio da Fapesp e coordenação do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp (Labjor). Foi uma nova viagem, objetivando comparar os registros feitos pela Missão de Mário de Andrade com o material coletado pelos cineastas, em relação aos aspectos estéticos, melódicos e do ritual, além de estudar a interferência nessas tradições da mídia – hoje, além do rádio, através de novas ferramentas como a televisão e da internet. Além do projeto de pesquisa, o resultado pode ser visto no vídeo Missão de Pesquisas Folclóricas, exibido pela TV Cultura, e na série televisiva de cinco capítulos Mário e a Missão, veiculada em 2004 pela STV (atual SescTV).