“Uma das premissas que formata o conceito de luxo é tradição, e artesanato é aspecto de tradição”
João Braga é professor, pesquisador e autor de livros na área de história da moda. É também artesão, desenvolvendo produtos de sua própria marca.
Como se envolveu com a área de moda?
Sou natural de uma cidade chamada Paraíba do Sul, no estado do Rio de Janeiro. Nasci em maio de 1961 – estou fazendo cinqüenta anos esse mês – e tive a oportunidade de estudar Desenho e Plástica e Educação Artística na Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais – ambos os cursos de Licenciatura. Sempre gostei de moda, mas até então como consumidor. Aí surgiu a oportunidade de trabalhar como desenhista de estamparia numa companhia de tecidos aqui em São Paulo, a Companhia Têxtil Ragueb Chohfi, e a moda passou a ser uma realidade profissional para minha vida. Trabalhei doze anos nessa empresa, fui chefe do ateliê, e fazia uma série de coisas: pesquisa de cores, estampa, desenvolvia produtos.
Quando vim para São Paulo, comecei a fazer uma série de cursos livres e algumas pós-graduações. Fiz uma pós-graduação em História da Arte aqui na Faap; uma pós-graduação de História da Indumentária da Moda, na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo; depois fiz uma especialização em Paris, na ESMOD, em História da Moda, Histoire du Costume – foi um curso curto, de verão. Voltei pra São Paulo e fiz mestrado em História da Ciência pela PUC, desenvolvendo um trabalho de pesquisa sobre a relação entre arte e moda e sobre como a Ciência, especialmente a Física e a Química, influenciaram tecnicamente ou cientificamente esse universo das artes.
Já dava aula no antigo segundo grau lá na minha cidade, comecei a dar aulas em cursos livres no Senac e me enveredei pelo magistério. Fui monitor de História da Arte no tempo de faculdade e, assim, ingressei nesse universo acadêmico. Já dei aula na Unip, Senac, Instituto Europeo di Design, Anhembi Morumbi, Faap, Santa Marcelina. Atualmente, dou aula em cursos regulares, na Faap e na Santa Marcelina, e em cursos livres na Casa do Saber. Dou aula em diversas outras instituições, em especial, cursos de pós-graduação por esse Brasil todo.
Hoje eu me dedico muito mais ao universo acadêmico, mas eu sempre gostei de criar. No meu tempo de faculdade, eu fazia camisetas pintadas à mão e vendia aos colegas – era uma forma de ganhar um dinheirinho. Pelo fato de fazer essas camisetas, eu comecei a fazer as minhas próprias camisas. A coisa começou a ser engraçada, pois as pessoas perguntavam: “Onde você comprou essa camisa?”, “Eu fiz”, “Ah, faz uma pra mim”. Nesse “faz uma pra mim”, “faz uma pra mim”, “faz uma pra mim”, eu comecei a fazer essas camisas. Já tive até convite para industrializá-las, mas eu não quis. Não quis e não quero. Quero mantê-las com a identidade do artesanato. Eu faço cada camisa individualmente, elas são assinadas, datadas, completamente artesanais. Minhas duas avós eram costureiras, minha mãe, minhas irmãs e minhas tias, bordadeiras, então comecei a trabalhar essa questão do artesanato em bordados. O estado do Rio tem até uma tradição muito grande na área de bordado.
E também me enveredei pela área da literatura de moda. Eu tenho, hoje, cinco livros escritos. O primeiro, História da moda: uma narrativa, foi lançado em março de 2004 e, hoje, é o livro didático de moda mais vendido no Brasil, vende no Brasil inteiro. Depois lancei outros, uma coleção de quatro volumes chamada Reflexões sobre moda, uma espécie de compêndio, cada um contendo doze artigos de vários que eu já tinha publicado em revistas, sites, jornais. Também são super vendidos. Neste momento, estou lançando junto com outro autor, Luis André do Prado, um livro que acabou de ser escrito e editado, o História da moda no Brasil: das influências às autorreferências. Também fomos coordenadores de um DVD que na noite de lançamento vai ser ofertado às pessoas que adquirirem o livro. Estou completamente envolvido com essa história toda de moda.
O que os leitores irão encontrar em seu novo livro, História da Moda no Brasil – Das Influências às Autorreferências?
A idéia inicial do livro foi do Luis André do Prado. Ele me convidou para fazermos juntos o trabalho de pesquisa e o trabalho de redação. Entre pesquisa, redação, execução e impressão, e o trabalho paralelo com o DVD, passaram-se quase quatro anos e meio. Inicialmente, esse projeto iria abordar a história da indumentária e da moda no Brasil, desde os índios, em trezentas páginas. O escopo ficou muito grande e resolvemos passar para quatrocentas páginas. Permaneceu grande, aí resolvemos tratar apenas do período republicano. O escopo continuou enorme, com cada vez mais informações, cada vez mais imagens. A pesquisa utilizou muitas fontes primárias, foi muito historiográfica. Acabou que o livro foi concluído com 642 páginas, abordando só período republicano, de 1889 a 2010. São sete capítulos, divididos, mais ou menos, por períodos históricos, baseado em fundamento estético e em questões de ordem política e econômica: “Belle Époque”, “Os Anos Loucos”, “A Era do Rádio, “Os Anos Dourados”, “Tropicália e Glamour”, “Anos Azuis” e “Supermercado de Estilos”. O livro é muito rico em imagens, além de ter um conteúdo textual bastante extenso, com rigor historiográfico e metodologia de pesquisa científica.
Nós também achamos muito importante a valorização do desenho de moda. Quando você idealiza alguma coisa, a sua primeira ideia, o seu projeto, parte de um desenho. Para valorizar o desenho de moda, nós resolvemos trabalhar com desenhos de várias pessoas que tinham um bom traço e foram significativas. Mas como falar de um e não falar de outro? Quem sou eu para legitimar o que é um bom desenho ou o que é um mau desenho? Então, resolvemos homenagear só os mortos, para os vivos não brigarem. Tem Conrado Segreto, Dener, Mena Fiala, Gil Brandão, José Ronaldo, J. Luiz, Zuzu Angel. Clodovil foi o último que entrou, pois morreu recentemente. O desenho é a ligação entre sua visão de mundo e a mão trabalhando e transformando aquilo em uma coisa. É o sentido da razão, é o sopro divino. Somos os únicos dotados do discernimento, da razão e da capacidade de transformação, criando estilos, criando leituras, criando uma série de possibilidades.
Eu, em particular, gostei muito. Ai de mim se não gostasse! Parece até pretensioso falar, mas ficou legal, está bonito, não tem nada no mercado com essa identidade. Foi muita loucura, muita dedicação, muito esmero, tanto da parte do Luis André quanto da minha, e de toda a equipe que nos acompanhou – pesquisadores, digitadores etc. Eu não gosto de máquinas, não uso e não tenho computador, não tenho celular, não tenho carro, não tenho nenhum desses aparelhinhos. Nem sei mexer. Escrevo tudo à mão, não uso nada, nada, nada. É assim que eu funciono, já estou numa idade suficiente para não me cobrar mais nada e deixar fluir do jeito que vai. Não que eu negue os benefícios tecnológicos, eu só não quero ser um escravo da máquina, um refém, um dependente. Se eu quisesse aprender, com certeza eu aprenderia, porque também não sou tão limitado, mas eu não faço questão nenhuma.
Por que as pessoas se vestem?
Colocamos alguma coisa sobre o corpo por três razões: pudor, adorno ou proteção. Pode ser por uma, por duas ou pelas três. Por exemplo, se eu estou vestido assim, é por pudor? Sim, porque eu não vou sair nu, ainda mais numa escola. Estou vestido assim por adorno? Sim, porque essa minha camisa é bordada, ela tem uma determinada cor, eu tento combinar isso com aquilo. Estou vestido assim por proteção? Também. Estava frio de manhã, eu coloquei uma camiseta por baixo. Essas três premissas estão sempre presentes no nosso vestir diário.
Se você me pergunta qual foi a primeira, eu não sei, e acredito que os outros estudiosos também não saibam. Mas, do ponto de vista teológico, por qual razão nós nos cobrimos? Do ponto de vista criacionista, nos cobrimos por pudor. Lá está, no capítulo três do livro do Gênesis: “... e abriram os olhos, e viram que estavam nus; e sentiram vergonha; e teceram para si aventais com folhas de figueira”. O homem colocou alguma coisa sobre o corpo porque percebeu a nudez, devido à desobediência ao Pai: “não coma desse fruto”. Comeram, experimentaram, cometeram o pecado original, perceberam a nudez do próprio corpo. É interessante que, sob esse ponto de vista religioso, a necessidade de colocar alguma coisa no corpo para cobrir as partes pudentas nasce com o caráter da indignidade, pela desobediência a Deus.
E do ponto de vista científico? A leitura evolucionista descarta essa interpretação do pudor e acredita que o homem teria colocado alguma coisa sobre o corpo antes por adorno do que por proteção. Adorno pelo fato de que o querer se diferenciar de seus pares é inerente à condição humana. Pegar uma cordinha, uma flor, uma coisa qualquer, e colocar no cabelo, ou fazer algo e por no pescoço, como um colar, é uma espécie de enfeite que te diferencia. Pode ser algo com caráter mágico também. Outro fator em favor da primazia do adorno e não da proteção entre as razões pelas quais o homem coloca algo sobre o corpo é que, do ponto de vista científico, o processo de hominização e o processo civilizatório se deram em locais em que há o predomínio do clima quente. Porém, as pessoas não se protegem apenas do frio. Nós precisamos nos proteger contra o calor – o sol queima, o calor incomoda –, contra a picada de um inseto, contra a mordida de um bicho, contra a paulada de um inimigo.
Já em relação ao primeiro material utilizado, há uma concordância entre religião e ciência: foi a folha vegetal. A Bíblia nos diz: “aventais com folhas de figueira” – folhas de parreira é uma interpretação da História da Arte. E nas pinturas rupestres e parietais mais antigas em que aparece algo que a gente poderia chamar de roupa, são também elementos vegetais. Religião e ciência concordam ainda que o material utilizado em seguida foram as peles de animais. Se voltarmos ao livro do Gênesis, encontraremos: “... e Deus, em sua infinita bondade, dá a Adão e sua esposa peles de animais para cobrirem o corpo”. Do ponto de vista científico, o homem inicia um processo migratório, vai para lugares de clima mais frio e sente a necessidade de um material que o proteja mais e seja mais durável do que a folha vegetal. Peles de animais como vestimentas são também identificadas nas pinturas rupestres e parietais mais recentes.
Mas tudo isso não tem nada a ver com Moda. Por isso se usa muito a palavra indumentária. Indumentária é tudo aquilo que se coloca sobre o corpo. Pode ser uma roupa de moda também, mas pode ser um traje de celebração, uma veste folclórica, um calçado, um adorno na cabeça, uma tatuagem, um piercing. Existe nisso tudo um diálogo. Tudo o que colocamos sobre o corpo é uma forma de comunicação não-verbal, pois informações são transmitidas através da imagem das pessoas. A roupa não fala, mas ela se comunica: é possível decifrar os desejos mais íntimos de uma pessoa, suas vontades naquele momento, sua região de proveniência, sua cultura, sua religião, sua profissão.
O que é Moda?
Moda é uma palavra um tanto quanto abrangente. No senso comum, a palavra moda é entendida como a roupa que está em voga naquele momento, mas não significa que seja só isso. Eu generalizo Moda como sendo algum padrão, algum gosto, alguma referência que esteja em vigência, num determinado momento, com uso coletivo. Não existe a praia da moda? “Essa é a praia da moda no verão”. Praia é roupa? Não existe o barzinho da moda? Barzinho é roupa? Não existe a dança da moda? Em cada carnaval, os baianos não inventam uma dança? Já foi a dança da galinha, o rebolation. “Nossa, esse tipo de decoração está na moda”, ou “esse tipo de design para carros está na moda”. Ou seja, é um gosto, um padrão específico de uma época, que seja de caráter coletivo, que esteja em vigência naquele momento.
Etimologicamente falando, Moda vem de modus, em latim, que vai dar no português, ou nas línguas neolatinas, o sentido de “modo”, o sentido de “maneira”. Posteriormente, vai dar “moda”. Então, “moda”, antes de ser moda, é “modo”, é “maneira”, é “comportamento”, para vir a ser um comportamento para o uso das roupas. É por isso que moda vai ser fashion em inglês, porque outra palavra em francês que quer dizer “moda” ou “maneira” é façon. De um façon mal falado vai dar o fashion. E a palavra fashion pode ser “modo” também. Alguns teóricos preferem dizer que moda vem fatio, em latim, que é “fazer”.
A palavra moda com sentido de maneira coletiva de se vestir aparece pela primeira vez em um documento francês datado de 1482. Portanto, moda está associada a coletividade. É quando um número maior de pessoas se adequa a um tipo de moda, a uma postura ou a um comportamento. A moda surge nas classes privilegiadas e, em seguida, é copiada pelas classes mais baixas. Aí os privilegiados vão inventar outra coisa. Existe um paradoxo muito grande na moda: você usa alguma coisa para ser diferente, inovador; quando percebe, está igualzinho a todos aqueles que se dizem diferentes e inovadores.
Como surge o conceito de moda?
Voltemos um pouquinho na história. No século VII, em 622, Maomé recebe a iluminação do anjo Gabriel e escreve os textos sagrados do Corão. Assim, é fundamentado o Islamismo e essa nova religião vai crescendo cada vez mais no Oriente. A Europa, nesse período da Alta Idade Média, do Feudalismo, está cada vez mais cristianizada – Roma já tinha oficializado a religião cristã como religião do Império, embora não tenha sido o primeiro lugar a fazê-lo, isto coube à Armênia, que tem mais de 1700 anos de cristianismo como religião oficial.
Carlos Magno, que era um rei bárbaro, um rei Franco, converte-se ao cristianismo, e na noite de natal do ano 800, é coroado como Sacro-Imperador Romano. Tudo bem que o reconhecimento do coroamento de Carlos Magno só foi em 812, e ele morre em 814, porém, com sua morte, o reino europeu é subdividido entre seus herdeiros e começam a aparecer as monarquias europeias, todas elas de tradição cristã. Com isso, o cristianismo torna-se a religião predominante na Europa Ocidental. Por volta da segunda metade do século XI, os islâmicos começam a destruir os lugares santos cristãos na Palestina e isso incomodou consideravelmente os europeus. Então, o Papa Urbano II se reúne com os monarcas, que são todos cristãos, e resolvem ir até o Oriente para salvar os lugares cristãos das mãos dos islâmicos. A esse fato histórico, deu-se o nome de "As Cruzadas".
Quando chega no Oriente, o europeu encontra um lugar muito mais desenvolvido, porque a Europa estava ainda vivendo aquele sistema feudal – intramuros, fechado, sem grandes trocas. Já o Oriente, conhecia tecidos fantásticos – brocados, adamascados –, fazia uso do tapete, coisa que o ocidental não conhecia. O tapete é o chão dos povos do deserto, é a parede, o teto, o armário; você enrola tudo e joga no lombo do camelo, você está com frio, você se enrola. O tapete tem esse aspecto mágico, ele funciona para uma série de coisas. Na Europa, dentro de casa ou até mesmo na igreja, se jogava palha, para não só ficar mais confortável, como também para amenizar as baixas temperaturas. Assim, o tapete vai acabar chegando ao ocidente. Os europeus também não conheciam o perfume líquido. O máximo que eles podiam conhecer era uma água com cheirinho, mas não havia conservante. No Oriente, eles já sabiam destilar álcool etílico, que é um conservante. O significado etimológico da palavra perfume, é per fumen, ou seja, “pela fumaça”. A primeira forma de obtenção de fragrância é pela fumigação. Você coloca fogo, ou você joga num braseiro, folhas, raízes, flores, que naturalmente são aromatizadas e, ao queimarem, vão aromatizando o ambiente. É por isso que os perfumes estão totalmente associados às práticas religiosas. O perfume tem a simbologia da presença de Deus, porque o perfume é imaterial. Você percebe o perfume, sente o cheiro, mas não o vê, como você sabe da presença divina, mas não vê Deus. Todas as religiões usam desse caráter da fragrância.
Aqueles que conseguiam voltar das Cruzadas traziam inúmeras coisas para o Ocidente e é uma festa – uma festa, em especial, para os nobres, porque custava dinheiro, não era qualquer um que poderia ter. Com isso, este europeu começou a sair do seu feudo para vender esses produtos e surgiu uma classe de trabalhadores que foi denominada à época de mercantilistas. Começaram a vender e a ganhar dinheiro e surgiu, por conseqüência, uma nova classe social que foi chamada de burguesia. Com esse sistema de comércio, surgiu a incipiência do sistema capitalista. Esses negociantes que traziam os tecidos, às vezes, vendiam para o próprio nobre. Então ele tem contato com classes privilegiadas e vê como o nobre se veste. Como quem tem o prestígio é o nobre, o burguês começa a copiar sua roupa, mas o nobre fica incomodado. Aí o nobre vai e inventa uma roupa diferenciada. O burguês percebe que lá na corte mudou, e copia novamente. O nobre percebe que foi copiado de novo e cria algo novo. Dessa dinâmica – criação pelos nobres e cópia pelos burgueses – surge o tempo de validade para o uso de alguma coisa no que diz respeito a roupas. Esse prazo de validade é o conceito de moda. Naquela época, quanto tempo durava? Enquanto o nobre não fosse copiado. Podiam ser seis meses, podia ser um ano, podiam ser dois anos. Obviamente, o burguês comerciante que tem um contato com um maior número de pessoas e é endinheirado, também começa a ser copiado, e a coisa fica quase que generalizada.
Ainda é assim até hoje, a moda traz em si esse conceito de ser algo que dura por algum tempo. Eu até costumo brincar: se alguém fala assim “esta moda veio para ficar”, ria, porque ela vai ficar um tempo, mas ela não vai ficar para sempre, ela vai passar. Essa é a dinâmica da moda. A partir do Renascimento, que é o primeiro momento da Idade Moderna, já podemos usar a palavra moda com esse caráter de diferenciador social, que a indumentária sempre foi, e as roupas de moda continuam sendo. No Egito Antigo, passaram-se três mil anos de cultura faraônica sem que se mudasse o tipo de roupa. Na Grécia Antiga, aproximadamente oitocentos anos com o mesmo tipo de roupa. Em Roma Antiga, cerca de mil anos ou mais com o mesmo tipo de roupa. Não mudava, por isso não era moda. Existia diferenciação social pelo tamanho da roupa, pelo tipo de tecido, pela cor –era uma forma de comunicação –, mas não era moda, porque moda muda com uma regularidade maior. Que fosse até anos, nesse período da Idade Média para a Idade Moderna, mas é um tempo bem menor comparado aos mil, aos oitocentos ou aos três mil anos de outras culturas da Antiguidade, seja Antiguidade Oriental, seja Antiguidade Clássica.
Este não é o único fator. No final da Idade Média, começam a aparecer as universidades europeias: Pádua, na Itália; Montpellier e Paris, na França; Salamanca, na Espanha; Oxford, na Inglaterra; Coimbra, em Portugal. Essas pessoas que começam a estudar, começam a querer estabelecer uma diferença pela cultura que têm, pela profissão que adquiriram. Portanto, há um outro processo de ascensão social sendo criado nesse momento, o que ajuda a prática de uso de uma roupa diferenciada para dizer quem você é. Não é à toa que, no Renascimento, vai surgir o auto-retrato. Durante a Idade Média, com o fundamento do teocentrismo, tudo é feito em honra e glória a Deus. Deus é onisciente – se eu fiz alguma coisa, Ele sabe, então eu vou ter o meu merecimento. Não é comum assinar uma obra na Idade Média, se eu assino, é exibição, exibição é vaidade, vaidade é pecado e não devo cometê-lo. Com essa mudança para a Idade Moderna, cujo fundamento passa a ser o antropocentrismo, as coisas começam a mudar. Não quer dizer que Deus tenha sido esquecido, mas o homem, à sua imagem e semelhança, também foi valorizado. Surge o auto-retrato, o retrato do artista, a obra assinada e uma série de outras coisas. A moda começa a acontecer aí, nesse determinado momento. Curiosamente, apesar daquela história de criação e cópia ter se passado na corte de Borgonha, nesse período do Renascimento era a Espanha e as cortes da Península Itálica os lugares onde esse conceito ganha força. Foi o rei Luiz XIV que levou isso para a França. Luiz XIV reinventa a França para o glamour, sofisticação, requinte, luxo e, tudo isso associado a essa prática de moda, cabeleireiro, maquiagem, enfeite, adorno, decoração etc. A partir daí, segunda metade do século XVII, a França não perdeu mais esse posto de ser o país que lança coisas relativas ao universo da moda.
Quando a moda surge, lá pelo fim da Idade Média e início da Idade Moderna, há também outro fato muito curioso: é nesse momento que as roupas masculinas começam a se diferenciar das femininas. Isso parece brincadeira, mas é um super avanço dentro da formatação do conceito de moda, porque, até então, na Antiguidade, vestia-se com a túnica, que é tipo um camisolão, e o manto, que é um pedaço de tecido. A única diferença de gêneros era que o homem poderia usar a túnica mais curta – porque ele vai para a guerra, para a caça etc. – e a mulher, sempre longo, por questão de pudor mesmo. A mulher mostrou as pernas quando usou a tanga na pré-história, e depois só nos anos 1920. Ao longo de todo esse processo histórico, no Ocidente e no Oriente, a mulher sempre usou roupas longas. Foi só em 1925 que as saias atingiram a altura dos joelhos e, mesmo assim, usando meia, mostrava-se a silhueta da perna e não a perna. Outra diferença era por classe social: roupas drapeadas para os mais privilegiados e roupas justas para os menos privilegiados, uma vez que tecido sempre custou dinheiro. Mas nesse final de Idade Média a diferenciação nas roupas por gênero surgiu pois a roupa masculina começou a se encurtar devido à armadura. Algum ferreiro, em algum lugar da Europa, foi um grande modelista e contribuiu, involuntariamente, para formatação desse conceito de moda. A armadura é uma roupa de metal. Se for uma peça inteiriça, não dá para se mexer ali dentro. Portanto, um ferreiro teve a ideia de fazer a roupa masculina de guerra por partes e com volumetria – o braço, o antebraço, a mão –, e onde nós temos articulações – punho, cotovelo, ombro, quadril, joelho, calcanhar – foi preciso colocar dobradiças. Então, para fazer só a parte de cima da armadura, surgiu a ideia de elaborar uma peça superior em tecido, em couro ou em um material mais nobre, mas maleável, o gibão. O gibão seria uma espécie de bisavô ou tataravô de nosso paletó, hoje em dia. Isso foi um avanço enorme.
Os conceitos de individualidade também surgiram nesse momento. O surgimento das lareiras e dos óculos ajudou nesse processo. Antes dormia todo mundo no mesmo cômodo, numa cama grande com dossel e uma cortininha, era a fonte de calor. Muitas vezes, dormia-se com o gado dentro do quarto – se construía o quarto em cima dos estábulos, tirando-se uma ripa para poder subir a fonte de calor dos animais. Não seria possível acender uma fogueira dentro de casa, pois haveria o risco de um incêndio ou da asfixia de todos os que estivessem dentro do cômodo. Aí alguém tem a ideia de fazer um buraco na parede e um duto para levar a fumaça pra fora, aquecendo e iluminando o ambiente. Com isso, as pessoas começaram a dormir sozinhas nos quartos. Os óculos também foram importantes e influenciaram a riqueza de nações. Não que os comercializassem, mas as pessoas passaram a ler muito mais. Se você tem uma lareira e um par de óculos, você lê até a hora que bem lhe aprouver, não precisa apagar o fogo ou deixar um fogo baixinho porque está incomodando o outro. Conclusão: a individualidade e a diferenciação social foram acentuadas.
E, obviamente, surgiu o conceito de durabilidade, que às vezes chamamos de sazonalidade. Essa é a maior característica do conceito de moda. Que durabilidade é essa? Dura enquanto eu não for copiado, enquanto eu faço a diferença com a minha roupa.
A partir de que momento é possível falar em moda brasileira?
Vinte anos atrás. Existe uma grande diferença entre “moda no Brasil” e “moda Brasileira”, tanto que nós fizemos questão de chamar o livro de História da Moda no Brasil e não História da Moda Brasileira. O subtítulo do livro já denuncia esse processo de constituição da moda brasileira: “das influências às autorreferências”. Nós podemos destacar dois grandes momentos que ajudaram a formatar uma certa identidade: a vinda de Dom João VI ao Brasil e a eleição de Fernando Collor de Mello como presidente da República.
Dom João VI, quando aqui chega, encontra um Rio de Janeiro com as pessoas se vestindo de uma forma que pareciam até islâmicos – vestiam as biocas, umas capas e uns capuzes pretos. No Rio não tinha islamismo, mas havia essa questão de pudor, da introspecção. Dom João e Dona Carlota Joaquina chegam aqui usando uma moda à maneira francesa, porque Portugal não tinha uma capacidade de impor um padrão de moda na Europa. É o momento do chamado “vestido império”, que tem a característica maior, a cintura logo abaixo do busto, e cai aquele camisolão. Quando Dona Carlota chega com essa identidade no Rio, as mulheres não entendem nada, e passam a chamar esse vestido de “vestidos à Lisboa”. Era de fato a moda de Lisboa, mas não criado por Lisboa, e sim criado por Paris. Aí começa essa abertura a outras receptividades. Ainda mais quando, a partir de 1816, vem a missão francesa, e Debret, além de desenhar a bandeira do Império, passa a ser a pessoa que vai desenhar as roupas de D. Carlota Joaquina. Então, no final do século XIX nós temos uma Belle Époque com uma influência toda Francesa.
A situação de país colonizado prejudicou o desenvolvimento de uma identidade brasileira. Dona Maria I, ainda como rainha de Portugal, e antes de ficar louca, baixou uma série de alvarás em Lisboa com diversas proibições ao Brasil: não podia editar livros, não podia fabricar tecidos de qualidade etc. Podia-se apenas fazer algodão barato, roupa para escravo e para menos favorecidos. Assim, tudo tinha que vir da sede. Paralelamente, se enraizou a crença de que o que vinha de fora, o que vinha da sede, era melhor do que o que era produzido aqui. Isso virou um ranço cultural brasileiro. Ainda hoje preferimos coisas importadas. Por essa postura de colonizado, o Brasil passou a copiar tudo de fora. Nos anos 1920, 1930, 1950, já a época dos costureiros – Dener, na sequência Clodovil, Fernando José, José Ronaldo –, a linguagem que eles usavam era francesa. Eu os culpo totalmente? Não. Em primeiro lugar, eles são fruto da cultura nacional. Eu também culpo – se é que alguém tem culpa – a própria cliente, que também era colonizada e não queria nada que tivesse identidade brasileira, ela queria a linguagem parisiense. Para venderem, obrigatoriamente, tinham que fazer alguma coisa com a linguagem francesa. Depois recebemos também influências da Inglaterra, dos EUA, da Itália, dos japoneses. Até os anos 1980, a moda no Brasil se valia principalmente de uma linguagem europeia.
Por que Fernando Collor de Mello? Porque Collor abre o Brasil às importações, depois de um longo tempo de proibição devido ao militarismo. Nisso, vieram muitos tecidos, principalmente da Ásia, e começam a entrar, também, as roupas confeccionadas. Antes, quem tinha roupa do exterior? Quem ia lá fora, comprava uma ou duas peças, e voltava. Não é à toa que a calça jeans no Brasil era calça Lee. Ir aos Estados Unidos e trazer uma calça Lee era o máximo. A marca passa a ser a própria identidade do produto. Quando Collor de Mello abre as fronteiras, o brasileiro não tinha uma indústria têxtil aprimorada, porque também não podia importar teares, e, assim, não acompanhou o processo de avanço tecnológico do restante do mundo. Aí entrou tecido de boa qualidade, tecido barato, roupa confeccionada, muitas vezes com nomes já conhecidos e preços mais acessíveis. Qual foi o diferencial que o brasileiro precisou colocar nas roupas? Identidade nacional. Isso entra como valor agregado. Diferentemente dos Estados Unidos, onde usar o vermelho, azul e branco é legal, ou da França, onde usar o bleu, blanc, rouge é sinônimo de nacionalismo, é chique; no Brasil não era. Quando é que se usavam as cores verde e amarelo? De quatro em quatro anos, na Copa do Mundo. Depois, passou-se a usar de dois em dois anos, pois o Brasil começou a fazer sucesso nas Olimpíadas também – vôlei, basquete. Hoje, usa-se verde e amarelo com a maior naturalidade, deixou de ser de gosto duvidoso. Começamos a valorizar, não só o verde e amarelo propriamente dito, mas isso que a gente pode chamar de brasilidade, de “verdeamarelismo”. Criamos esse diferencial através da identidade. Ao invés de exportar o algodão em rama, o tecido em rolo, em peça, pode-se beneficiá-lo, introduzir conceitos de design e exportar o produto com certa identidade. Lá fora, isso começa a ser valorizado também.
Junto com isso, os primeiros formandos das escolas de moda saem no final dos anos 1980, início dos anos 1990. Há também todo o processo de redemocratização, que coincide com esportistas brasileiros fazendo sucesso, como Ayrton Senna. Algumas modelos brasileiras já tinham feito sucesso e outras estavam fazendo: começa com Gisele Zelauy, no princípio dos anos 1990, depois, no final da década, Gisele Bündchen. No início dos anos 1990, tinha também a Betty Prado e a Betty Lago. Eram duas Bettys e duas Giseles fazendo sucesso lá fora. Então, tudo passou a ser nacionalismo. O Brasil começou a ser melhor visto e a gente assumiu essa identidade. Moda brasileira de fato, ou seja, olhar para o próprio umbigo, as “autorreferências”, nós temos há vinte anos.
Em tempos de globalização, o local e as etnias regionais têm adquirido maior importância nas criações de moda, num conceito conhecido como Global fashion, local tradition. Trata-se, portanto, de um redescobrimento e de uma revalorização das identidades particulares num mundo que caminha para o universal. Qual a importância de se buscar referências e valores na cultura brasileira, especialmente a cultura popular, para o desenvolvimento de projetos? Este seria o caminho mais interessante para o Brasil, que conta com culturas tradicionais extremamente ricas?
Isso é o grande diferencial. A moda é global, mas as referências são locais, é o trocadilho “Globolocalização”. Isso está presente em diversas áreas, inclusive na moda, e é conseqüência da massificação, da imposição de um capitalismo de consumo e das facilidades de acesso às informações via telecomunicações. É o mundo em tempo real, ou seja, você liga uma máquina e vê o que está acontecendo do outro lado do planeta, em tempo real. O tempo de durabilidade das coisas é cada vez menor, e os produtos foram massificados. Tendências de moda e os bureaux de style, com seus respectivos cadernos de tendência, foram criados para direcionar produção e fazer com que todos tivessem uma mesma linguagem. Com uma forte ação de marketing, as pessoas sentiriam necessidade de consumo e todo mundo venderia. O streetwear dos anos 1990 supermassificou a moda e houve uma inversão de valores: ao invés de a moda ser criada no ateliê, trancada a sete chaves e depois jogada na passarela, informando o restante do mundo, a rua, o underground e os excluídos começaram a ser mais valorizados. A rua passa a ser a influência, e os criadores de moda saem às ruas para ver o que estava acontecendo na moda popular, no streetwear, para, depois, intelectualizar e fazer uma determinada coleção. As coisas ficaram muito fáceis, e a moda precisava encontrar uma maneira de se diferenciar.
A moda é autodestruidora, vive daquele processo da fagocitose, alimentando-se de sua própria morte. Se não houvesse mudança e ela fosse sempre a mesma coisa, não existiria um processo capitalista. A moda é um fenômeno ocidental e capitalista. Enquanto que o Oriente preserva muito mais as tradições – quando a japonesa vai a uma festa sofisticada, ela vai de quimono, aquela roupa tradicional; a indiana vai de Sari – no mundo ocidental, isso não existe – hoje isso é roxo e longo, amanhã é amarelo e curto. Assim, ao se popularizar, a moda precisou encontrar maneiras de se diferenciar. Não é à toa que começaram a aparecer as premissas de reglamourização e de customização, que vão culminar com o luxo. Uma das formas da diferenciação é a valorização de outras culturas, e começou a se buscar uma série de referências. É onde entra esse caráter relacionado a questões étnicas, artesanato, coisas específicas de uma determinada região. Tudo isso vem como diferencial – não só como valor agregado, mas como valor reconhecido.
O estrangeiro não quer comprar uma roupa brasileira com a modelagem de Dior, com a técnica do bordado francês ou com a renda de Bruxelas. Ele quer uma coisa daqui. E a imprensa também quer ver uma coisa daqui. Há também sempre a busca pela novidade. Por que não buscar aquilo que está esquecido lá no interior da África, ou lá num cantão da China? Esse conceito de valorizar técnicas, bordados, artesanato, combinação de cores, patchwork, dá esse caráter de um trabalho mais autoral e manufaturado. A máquina a gente tem, produz rápido, mas vamos buscar um diferencial com essa característica do feito à mão. Vai ser global, porque você pode estar vestido assim em Tóquio, Nova Iorque, Paris, São Paulo, Rio de Janeiro, Washington, ou qualquer outro lugar, mas haverá algo que vai te caracterizar.
São necessárias políticas públicas e políticas privadas – em especial, políticas públicas – até para solidificar essa identidade. Sabe-se lá se tem uma senhora, numa praia deserta no litoral do Ceará que seja a única que sabe fazer aquele ponto de uma renda, e a neta dela não quer aprender por que só quer saber de celular e computador. Uma política pública ou privada está lá para preservar, convencê-la a ensinar para outras pessoas que querem manter essa tradição, e isso é uma super valorização.
Isso passa a ser identidade, passa a ser esse tal diferencial que todo mundo tanto quer, já que as facilidades e as velocidades da massificação são muito grandes. Parece que o que se lançou ontem já é velho. Há determinadas marcas que lançam coleções ou enxertos nas coleções semanalmente, para despertar o desejo, para vender mais. Esse consumo exacerbado vai contra os valores da própria sustentabilidade, mas a moda tem um poder muito grande de penetração e de persuasão, e a capacidade de influenciar outras práticas benéficas às questões de sustentabilidade como um todo. Hoje, a grande sacada é essa, de fato. E aí, há também o próprio aspecto do luxo, que traz em si um caráter de diferenciação e exclusividade. Uma das premissas que formata o conceito de luxo é tradição, e artesanato é aspecto de tradição – de cultura popular.
Quais ícones, valores e características da identidade brasileira estão presentes nos produtos de moda nacionais?
Uma das características da roupa brasileira é certa sensualidade. Não quero nem dizer “roupa decotada ou minissaia”, mas é a postura. A brasileira gosta de se sentir sensual, não é à toa que biquíni – moda praia – faz sucesso aqui. A nossa índia andava nua, o índio andava nu ou de tanga. Em função do clima, da quantidade de água, o autóctone tem uma relação muito diferenciada com o corpo. Isso é genuinamente brasileiro.
O uso intenso de cor é outra identidade Brasil. O nosso azul é mais azul, o nosso vermelho é mais vermelho, o nosso amarelo é mais amarelo, o nosso verde, então, nem se fala, é mais verde ainda, com diversas tonalidades. Isso faz parte do nosso repertório cultural. O nosso repertório é, digamos assim, ambiental. O nosso céu tem uma intensidade de azul maior, a nossa luz brilha muito mais.
Dentro desse contexto todo, sem menosprezar as outras cidades, nós temos, em especial, o Rio de Janeiro, que é a cidade que mais vende o estilo de vida do Brasil, é o cartão postal do país. O Rio é lindo mesmo, a gente tem que admitir. Há pouco tempo estive lá para dar uma aula na Fundação Getúlio Vargas, na sede Botafogo. Quando eu saí, era uma luz tão linda na enseada de Botafogo, que eu comecei a chorar. Um céu azul! Gente, o que é isso?! Não tem em nenhum outro lugar do mundo. Lindo, lindo, lindo. É impressionante, e isso encanta a todos. Imagine os viajantes por esse Brasil vendo uma natureza exótica, exuberante, essas fontes, essas cachoeiras, o litoral, essa vegetação. É pra encantar todo mundo, como continua encantando. Nós temos uma realidade muito própria, tropical, então isso tudo passa a ser uma própria referência.
Temos também tecido de fibra natural. Tudo bem que o tecido sintético está aí, o Brasil deu um grande passo nesse sentido com os investimentos da Rhodia na década de 1960, mas, meu Deus do céu, vai jogar fora a produção da flor de algodão, um tecido próprio para clima quente? Olha que maravilha. Lá fora valorizam muito o algodão, e a gente, colonizado, quer tecido sintético. Vamos aprimorar o beneficiamento do algodão!
Quais são os estilistas que melhor tem trabalhando todas essas questões?
Eu acho que, em especial, quem busca essa identidade de maneira muito interessante e valoriza essas referências é Ronaldo Fraga e Lino Villaventura, que se reinventam a cada estação, sem perder a própria identidade, valorizando bordados, artesanato, os fazeres manuais, dentro de todos esses conceitos de sustentabilidade. Sustentabilidade não é só eco-ambiental, é econômica, social, cultural e alguns dizem também que é política. Há ainda outro nome extremamente significativo para a identidade da moda brasileira: Alexandre Herchcovitch. Não menosprezando, inferiorizando ou esquecendo os outros, costumo falar neste tripé, em ordem alfabética: Alexandre Herchcovitch, Lino Villaventura e Ronaldo Fraga. Acho que eles mantêm uma grande identidade. Alexandre tem uma linguagem mais universal, mas ele conseguiu trazer linguagens universais para o Brasil e dialogar nesse conceito de globalização cultural, de influências culturais, e colocar a moda brasileira em projeção no exterior, desfilando em Paris, Londres, Nova Iorque. Ele tem uma linguagem própria, tem identidade. Alguns estilistas não precisam assinar suas roupas para serem reconhecidos: uma roupa de Lino Villaventura prescinde da etiqueta, você reconhece na hora. Há outros nomes tremendamente importantes, como Walter Rodrigues, André Lima. Mas, em especial, esses três.
O curioso é que, no Brasil, você precisa do eixo Rio-São Paulo. Nessa pesquisa para o livro, chegamos à conclusão de que o estado que mais deu nomes significativos à história da moda no Brasil foi Minas Gerais. Imagine! Zuzu Angel é mineira. Zuzu foi uma das primeiras a usar linguagem brasileira na moda, esse mérito tem que ser reconhecido. Em função do problema que teve com a morte do filho, ela busca essa identidade nacional, de cangaço, de renda brasileira, cor brasileira, tecido brasileiro, dialogando universalmente e com reconhecimento lá fora, em especial nos Estados Unidos. Ela olha para o próprio umbigo, ainda mais sendo uma moda inspirada também em cunho político. Outros mineiros: Alceu Penna, Ronaldo Fraga, Glória Coelho, que é mineira, apesar de ter passado boa parte de seu tempo de infância na Bahia, Gledson Assunção. Dos quatro que fazem grande sucesso no exterior hoje, três são mineiros: Francisco Costa, nos Estados Unidos, com a Calvin Klein; Gustavo Lins, em Paris, com marca própria; e Inácio Ribeiro, em Londres. Minas é de uma riqueza tão absurda em tudo, que também deu a maior quantidade de expressões na moda. Mas, curiosamente, todos eles precisam do eixo Rio-São Paulo para poder ter projeção aqui e lá fora. O segundo estado que mais deu representações significativas – eu estou falando dos mais conhecidos, porque têm outros nomes – é o Pará, precisando também do eixo Rio-São Paulo. O Pará nos deu Gutta Teixeira, Dener, os irmãos Simão e David Azulay, Lino Villaventura, que se fez via Ceará, mas é paraense, André Lima. Não quer dizer que o Rio não tenha dado bons nomes: Guilherme Guimarães, Dona Mena Fiala, entre outros. São Paulo também: Reinaldo Lourenço, Fauze. Rio do Grande do Sul tem, Bahia tem – Ney Galvão era baiano –, Ceará também tem outros nomes. Mas em especial, Minas e Pará.
Quando técnicas e processos regionais e populares passam a ser valorizados e adotados nas criações de moda, num trabalho que, muitas vezes, inclui as próprias camadas populares da sociedade, que detém esse saber-fazer, pode haver uma inversão na lógica da efemeridade que caracteriza o próprio conceito de moda? Caso contrário, corre-se o risco de se desgastar elaborações tradicionais centenárias que, logo, “irão sair de moda”.
Isso depende muito do incentivo da política pública ou privada para a valorização desta identidade. Pode ser que aquilo se torne tão popular e em pouco tempo passe a vontade – a moda tem essa característica. O fuxico, por exemplo, foi tão usado que, de repente, ninguém aguentava mais. O fuxico está lá, em banho-maria, até chegar o momento em quem, de repente, volta, pois a moda também tem essa característica de voltar de tempos em tempos. Isso não quer dizer que a moda seja cíclica, porque o cíclico sai de um lugar e volta ao mesmo lugar. A moda é helicoidal, espiralada, ela tangencia alguma identidade, mas existe o fator tempo, que faz com ela nunca seja exatamente a mesma – há algumas mudanças tecnológicas, técnicas, ressignificação, reinterpretação.
A valorização de técnicas e processos tradicionais pode ser uma faca de dois gumes, mas eu acho que há a necessidade de preservação de um artesanato de alto valor cultural agregado para a salvaguarda dessa memória – o que lá fora é muito mais comum do que aqui. Dessa maneira, você gera até alguns benefícios de ordem social, levando divisas para essas pessoas, favorecendo a autoestima e resolvendo uma série de questões. Entretanto, se não houver cuidado, isso pode ser desgastado e/ou cair no esquecimento. A dinâmica da moda é essa, que valoriza hoje e, em breve, já vai ser outra coisa.
Por trás disso tudo, existe também um processo de industrialização, que muitas vezes é agressivo, e em que não se paga tão bem aos artesãos. Ronaldo Fraga não faz isso em hipótese alguma, ele dá o nome das bordadeiras que fizeram aquela roupa; Walter Rodrigues ajudou muito a desenvolver, até mesmo economicamente, o Morros de Mariana, lá no Piauí, fazendo rendas. Você desenvolve o próprio processo de criatividade: enquanto elas sabiam fazer uma renda só com fio branco, ele introduziu a cor. Tem um trabalho lindo de duas moças, Beatriz Castro e Lúcia Neves, do Ceará, de uma marca chamada Ethos. Elas mantêm a tradição da técnica do bordado, mas sempre inovam em leituras desse bordado. Esse trabalho é lindo, totalmente dentro da questão de sustentabilidade. Isso gera emprego para as pessoas de lá.
Então, eu acho que se houver essa euforia do que está na moda agora, isso vai virar fogo de palha, e o fogo de palha é viçoso agora, mas daqui a pouquinho ele acaba – a palha se consome rapidinho. É preciso haver a intenção de preservação dessa memória, via centros culturais, museus, incentivos públicos, para que isso se mantenha como identidade, e o próprio reconhecimento do brasileiro das suas referências.
A moda supre necessidades dos homens em seu tempo, preenchendo lacunas surgidas em contextos históricos específicos (como foi o caso das calças jeans, elaboradas em material resistente para os trabalhadores nas minas dos Estados Unidos) ou, ao contrário, gera estes próprios homens? A respeito desta questão, é possível em uma via de mão dupla?
Não há dúvida alguma, é um caminho de mão dupla. Um não anula o outro, os dois se complementam. O jeans tecido existe desde o Renascimento. As velas das caravelas eram feitas desse tecido, só não eram tingidas de azul, para ficarem bem grosseiras e resistirem à maresia, ao vento, ao sol e à chuva de alto-mar. Mas virou uma roupa de trabalho. Um dia, alguém usa no cinema, nos anos 1950, e ela vira roupa de moda masculina.
Pode acontecer de uma pessoa estar tão atenta a seu tempo, ou até além de seu tempo, que cria uma identidade. É essa questão do Zeitgeist, que seria esse “ar do tempo”, “espírito de uma época”. Chanel não acompanhou o Zeitgeist de sua época, ela definiu o Zeitgeist de sua época. Saint Laurent foi outro que definiu o Zeitgeist de uma época. São pessoas tão sensíveis, tão inseridas e envolvidas com aquilo que lhes dá satisfação, que lhes dá prazer como profissional, como pessoa, como interpretação e leitura de mundo, que conseguem transformar. Isso está na música, na arquitetura. Niemeyer é outro que conseguiu construir um Zeitgeist arquitetônico, uma identidade própria. Então, é uma troca, é caminho de lá pra cá, daqui pra lá. Por necessidade ou por desejo, algumas coisas acabam sendo assimiladas com facilidade e viram realmente moda.
Como se forma e o que define uma tendência?
Nem sempre foi assim, nem sempre houve tendências. Uma das primeiras a trabalhar com tema, senão a primeira, foi Elsa Schiaparelli, italiana radicada em Paris, por volta de 1937. Ela escolheu o tema circo e fez uma coleção inteira dentro dessa linguagem. Até então, se fazia a coleção dentro de uma linguagem, dentro de um Zeitgeist, mas não havia essa questão de tendência. O que é a tendência? Tendência é uma palavra que entra na moda, especialmente, a partir da década de 1970 e, no Brasil, mais na década de 1980. Isso surgiu em função da crise do petróleo, que suscitou uma interrogação imensa, na Europa principalmente: “A gente produz tecido sintético à base de petróleo, e agora? Não vamos mais produzir?”. A indústria ficou à beira da bancarrota. Então, os industriais têxteis, liderados pelos franceses, vão se reunir para direcionar o caminho, juntamente com estudiosos, antropólogos, sociólogos, professores. Estes estão em portas de cinema, teatro, restaurante, perguntando: “Qual é a sua preocupação?”. Digamos que lançavam duas suposições: “tecnologia ou ecologia?”. Se, de repente, as pessoas estivessem mais preocupadas com a ecologia, pensava-se em alguma coisa dentro da proposta ecológica – cores em tons esverdeados, roupas que lembram mais uma vida campestre, motivos florais, elementos da natureza. Por quê? Porque havia esse desejo. Isso começou a salvar a indústria da bancarrota e massificou a produção, porque todo mundo acabava fazendo a mesma coisa. Como isso trouxe o dinheiro de volta, começaram a impor tendências. Se eu tenho aqui uma anilina de uma cor e não está vendendo, posso inventar uma tendência, um tema, fazer um marketing. Posso falar: “Gaultier – ou Lacroix –, quero patrocinar o seu desfile, desde que você coloque esta tonalidade dar cor A, B ou C na sua coleção”. Aí, possivelmente, eles terão que produzir mais anilina daquela cor, porque vai haver uma super divulgação e todo mundo vai ter vontade. Junto com essa mudança, vai surgir a Premiére Vision, em 1973, na França; Vão, então, surgindo os Bureaux de Style, esses escritórios que estão estudando comportamento, especialmente para a moda. Promostyl foi o primeiro deles, da Françoise Vincent-Ricard. E com isso, a coisa passa a ser direcionada, porque dá bons resultados.
No âmbito das tendências, há as macrotendênias e as microtendências. A microtendência é aquela mais específica, que dura uma estação; a macrotendência tem uma abrangência maior, dura um pouco mais de tempo. Muitas vezes, as macrotendências são comportamentos que estão na moda. Agora é culto ao corpo. As roupas vão ficar mais justinhas para delinear você que foi à academia e trabalhou sua massa muscular. O fato da roupa ser justa dura um pouco mais, mas se é justa com 3% de elastano, se é justa com 10% de elastano, se é cor neutra, se é preto e branco, essas são as microtendências. Mas a essência da roupa justa, a essência da roupa mais larga, a essência da roupa estampada, dura mais. Estampa, quando entra na moda, fica um bom tempo. Mas se é estampa floral, se é estampa geométrica, se é estampa abstrata, se é grafismo, isso são as microtendências, que, normalmente, duram uma estação.
Caso você queira ganhar dinheiro, siga a tendência. Se você quer um diferencial, um nome, um trabalho mais autoral, fuja das tendências e vá buscar uma interpretação própria. Hoje, existe uma diversidade muito grande, possibilidades diversas da moda. Não é à toa que nos anos 1980 surge uma grande quantidade de tribos urbanas. Seja por ideologia ou por razão estética, cada um se identifica com alguma coisa, usa um tipo de roupa específica. Passa-se a dialogar com aqueles que têm uma visão de mundo semelhante à sua. É um código de pertencimento, um código de inclusão: você só vai ser aceito nesse grupo se tiver essa identidade visual. A moda tem esse poder, não só de persuasão, mas de inclusão e de exclusão. As tribos são iguais e diferentes, outro paradoxo de moda: iguais quando você analisa dentro do mesmo grupo; diferentes entre elas. E todas acabam convivendo.
Hoje, a palavra tribo nem é mais tão usada dentro da moda. Esses grupos específicos com identidade própria se misturaram muito. Eu até costumo dizer que nos anos 1980 é como se estivéssemos comendo uma salada de fruta, você come junto banana, maçã, laranja mamão, mas se você quiser, é possível separar o que é banana, o que é laranja, o que é maçã; nos anos 1990 e nesse início de século XXI, não é mais uma salada de fruta, é uma vitamina – recebeu-se tantas influências, que é como colocar várias frutas no liquidificador e fazer aquele caldo, não dá mais para separar o que é banana, o que é laranja, o que é maçã, o que é mamão. Fica essa diversidade. Cada um acaba sendo quase que o estilista de si próprio.
A identidade brasileira nos diversos campos (literário, artístico, design) só se consolida após ser percebida e sistematizada no trabalho intelectual: intelectuais não só descrevem o processo, mas ajudam a construí-lo. O livro atua no sentido de certificar esta identidade à moda no Brasil?
Eu não sei se sou um intelectual, juntamente com o Luiz André – posso até classificá-lo como intelectual –, para que possamos ser teóricos que vão legitimar a identidade da moda brasileira. Mas acho que é uma reflexão que pode trazer um fundamento, uma hipótese, e fazer com que outras pessoas sigam um caminho que está presente, mas que não tinha sido teorizado, até então, através da historiografia. Gosto de moda e gosto de criar, mas gosto também de refletir, de pensar a moda. Ninguém faz as coisas sozinho, você precisa de parcerias, de troca, senão as coisas ficam embutidas, fechadas, e não são socializadas. Até mesmo na reflexão. A gente também se baseia em textos de outros teóricos, antropólogos, sociólogos, historiadores. Cada um depende do que anteriormente foi feito, mas você pode dar uma nova leitura, uma nova interpretação, e lançar, até, uma nova hipótese.
Eu acho que é uma possibilidade de leitura. Eu não sou dono de verdade nenhuma, mas eu tenho o direito, na condição de ser um estudioso e pesquisador, uma pessoa que se envolve com o universo de saberes, de fundamentações e problematizações, de lançar hipóteses e, de repente, comprovar alguma coisa sob essa sistematização da metodologia científica. Isso é uma gotinha que pode vingar alguma coisa, ou pode ficar parada por aí. Deixar o recado, nós estamos deixando. Não existe um ponto final na História. Existem leituras diversas, existem metodologias de historiografar que podem ser ultrapassadas e outras se sobreporem a elas. Eu posso entender a Idade Média, hoje, com outro viés. Eu não vou mudar aquele momento, ele já passou, mas eu posso entendê-lo com outro olhar.
Terminamos o livro com uma frase em latim que, logo li, pensei: “essa será a última frase do livro”: verba volante, scripta manent. Isso significa: as palavras voam, as palavras se perdem, os escritos permanecem.