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A CASA E O MUNDO

ENTREVISTA

ANA CARLA FONSECA REIS

Publicado por A CASA em 7 de Junho de 2011
Por Daniel Douek

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"Não interferir no conteúdo cultural, mas dar uma visão de mercado à forma"

Ana Carla Fonseca Reis é economista com doutorado em urbanismo e atua como conferencista e consultora internacional em 22 países.




O que é Economia Criativa? Onde, como e quando surge esse conceito?

Não há uma definição única, mas o que se entende, via de regra, por Economia Criativa, é aquela economia que é movida por intangíveis. A rigor, isso faz com que tudo seja Economia Criativa, e nada seja Economia Criativa.

A Economia Criativa surge na segunda metade da década de 1990, quando a Globalização e as mídias digitais fazem com que tudo seja muito mais facilmente transferível no mundo. Antes, havia grandes bastiões da competitividade na economia, como capital e tecnologia. Hoje, eles continuam sendo importantes, mas circulam no mundo de uma forma quase volátil. O que se percebeu ao longo desse processo foi que o que não era tão facilmente transferível – e, aí sim, daria uma competitividade maior à economia – era a criatividade das pessoas. Criatividade não no sentido de como a gente costuma dizer no Brasil, e que me dá até certa preocupação, de que “o brasileiro é criativo, então está tudo resolvido”, mas sim criatividade posta em prática, criatividade como inovação, como invenção de algo diferente que resolva um problema presente ou potencial. Em função disso, alguns países, em especial o Reino Unido, começaram a ver como concretizar isso na economia. O Reino Unido virou referência no mundo porque criou uma força tarefa entre público e privado para entender quais seriam os setores da economia que mais se beneficiariam dessa criatividade, e identificaram 13 setores. Esses setores foram chamados de Indústrias Criativas. “Indústria”, em Economia, significa “setor”, não, necessariamente, uma manufatura. Indústrias Criativas são os setores da economia que mais trazem criatividade, mas acabam tendo um impacto na economia como um todo que vai além deles. Então, por exemplo, há a Moda, e a Moda puxa o Têxtil, que por sua vez puxa o algodão, que vai puxar outras matérias primas. Há o Design, que acaba trazendo uma revolução em vários setores, inclusive setores tradicionais. Assim, há setores mais criativos da economia que são catalisadores de criatividade em setores tradicionais. O conjunto de todos esses setores é a Economia Criativa. O que pauta a Economia Criativa, de modo geral – e isso é uma unanimidade –, é essa valoração do intangível criativo.

Para alguns países, o que faz o divisor de águas do que é ou não Economia Criativa, ou do que são ou não as Indústrias Criativas, é a possibilidade da geração de direitos de propriedade intelectual. Eu acho que, no Brasil, esse é um tema sempre muito complicado – aliás, como em todos os países em desenvolvimento com grande quantidade de saberes comunitários e tradicionais, porque a gente sabe que a legislação não é, necessariamente, favorável a eles. E é por isso que eu digo que é uma oportunidade interessante para entendermos essa lógica da agregação de valor, por meio do intangível, na economia, no desenvolvimento socioeconômico e afins, para poder, a partir disso, criar um outro divisor de águas que não necessariamente seja dos direitos de propriedade intelectual.


Desde que surgiu, a expressão “Economia Criativa” tem sido cada vez mais usada em diversos sentidos. Há risco de banalização do conceito?

Ainda não chegamos num momento de saturação, mas quando um termo entra em evidência, há a atuação de duas forças opostas: uma delas, de aprofundamento do conceito, e outra, de vulgarização dele. Até que ponto a gente vai firmar esse conceito como um conceito, como uma alavanca de desenvolvimento, como algo maior, vai depender do balanço dessas duas forças. Por isso é importante divulgar, entender direito o que é, como aproveitar, porque, senão, de fato, ele se esvazia muito rapidamente.


Em meados do século XX, a Escola de Frankfurt cunhou a expressão pejorativa “Indústria Cultural” para criticar o caráter massificado da produção cultural. Os conceitos de “Economia Criativa” e “Indústria Criativa”, que associam economia e indústria à criatividade e à cultura são ainda vistos com desconfiança pelos defensores de uma suposta “pureza” do campo cultural?

Na minha visão, eu acho que já superamos a discussão da Escola de Frankfurt há algum tempo. Não discutimos mais se a serialização faz com que a gente perca a alma, ou o conteúdo cultural e sua propriedade específica. Mas essa discussão talvez se dê, hoje, com outros pontos de fronteira. A Economia Criativa e esses setores vistos como Indústrias Criativas, via de regra, incorporam arte, artesanato, folclore, ou seja, o mais anímico da cultura de um povo. O que gera reações em relação à perda de algum valor cultural – e talvez esse seja um revival da Escola de Frankfurt –, são os setores vistos como Indústrias Criativas que bebem cultura para devolver alguma funcionalidade. Há aí o Design, a Arquitetura, a Moda, a Propaganda. São setores que têm um componente cultural importante, mas, ao mesmo tempo, têm uma aplicação prática. Isso, muitas vezes, causa um mal-estar.

Quando eu comecei lidar com Economia da Cultura, e depois com Economia Criativa, a primeira reação que as pessoas tinham era “lá vem a Economia conspurcar a nobre arte”. Mas a Economia não dita o que a Cultura fará ou deixará de fazer. A partir do momento em que se tem uma política cultural ou de desenvolvimento bem definida, a Economia oferece um corpo de instrumentos que indica: “se você quer chegar até lá, vá por esse caminho”. É mais um GPS do que qualquer outra coisa. Precisamos romper com essa lógica de que a Economia vai ditar alguma coisa, porque ela não é normativa. Se entendermos que a Economia não é normativa, que é muito mais um corpo de instrumentos e lógicas, aí sim conseguiremos fazer com que o que nós definirmos como cultura tenha potencial de mercado, inclusive pra sobrar dinheiro público para aquilo que não tem esse potencial, porque, senão, falta sempre.

 

A Economia Criativa pode servir como estratégia de desenvolvimento para um país?

Pode, desde que se criem as condições para tanto. Para mim, Economia Criativa, é como uma labareda. Se essa labareda vai ou não vingar e se transformar num fogo mais sustentável, depende de haver oxigênio no ar. O que é esse oxigênio? Em primeiro lugar, Economia Criativa, sendo Economia, não se faz por decreto. Então, necessariamente, tem que haver uma articulação entre políticas governamentais e políticas privadas, no que se entende de fato como política pública. Essa articulação entre setores é algo vital para que a Economia Criativa dê certo e, portanto, seja uma estratégia de desenvolvimento. Mas ao falarmos de governo, não podemos considerar apenas uma pasta, e aí é algo muito desconfortável para todos os países: onde repousa a pasta que vai cuidar de Economia Criativa? Em grande parte dos países, está na pasta da Cultura, em outros tantos, está na de Desenvolvimento, e outros, ainda, criam a sua própria estrutura como estrutura muito mais transversal. O que a Economia Criativa propõe como estratégia de desenvolvimento é justamente esse olhar transversal às várias pastas. Ao falarmos em desenvolvimento, temos que incorporar cultura, desenvolvimento, educação, ciências e tecnologia, turismo, todas elas. Uma política de desenvolvimento de fato vai muito além do que a gente entende hoje como política da pasta de Desenvolvimento, que é muito mais voltada a crescimento econômico do que a desenvolvimento em si. Economia Criativa pode sim ser uma política de desenvolvimento desde que você olhe, primeiro, para suas potencialidades – porque a gente está falando de Economia, portanto, das suas vantagens competitivas – e para aquilo que deve ser feito para isso vingue.

No Brasil, temos alguns desafios. Apesar de uma série de potencialidades, como a própria diversidade, essa criatividade, que é flagrante, um manancial de recursos os mais variados, temos também grandes dificuldades estruturais. Primeiro, a educação, desde sempre, ou seja, a capacidade das pessoas de tomarem suas próprias decisões, de elaborarem informações e transformarem informação em conhecimento. Outra dificuldade importante está ligada a ciência e tecnologia, não apenas no que se refere ao acesso às tecnologias digitais, mas à capacidade de uso, o que também tem a ver com educação. Então, para falarmos de Economia Criativa como estratégia de desenvolvimento, temos pensar no que é desenvolvimento. A visão que eu adoto é a do economista Amartya Sen, que afirma que desenvolvimento é ampliação de liberdade de escolhas. Considera-se um povo, uma região ou uma pessoa desenvolvida a partir do momento em que ela é capaz de tomar suas decisões e, para isso, ela tem que ter acesso às informações, ter capacidade de elaborar essas informações e efetivamente colocar essa ação em prática. Ainda temos um descompasso no Brasil para que a Economia Criativa, ou qualquer outra coisa, seja uma estratégia de desenvolvimento.


Com a recente criação da Secretaria de Economia Criativa não está se trilhando um caminho nessa direção?

A institucionalização dentro do organograma é algo mais perene do que simplesmente um departamento ou uma força tarefa. A partir do momento em que se cria uma secretaria num governo federal, dá-se, em primeiro lugar, atenção ao tema. As pessoas vão querer se informar para saber o que é isso, o que é muito positivo. Em segundo lugar, faz com que olhares divergentes possam, eventualmente, se entender não como antagônicos, mas como complementares. Têm muita coisa sendo feita em Economia Criativa, mas as pessoas faziam de forma isolada. Talvez a maior contribuição dessa secretaria seja justamente fazer com que essas peças se encaixem num grande quebra cabeça e definir o seu contorno. Claro que isso ainda é um processo em evolução, um processo de discussão, o que é ótimo, senão seria uma coisa muito autocrática.

Pelo que tenho acompanhado, a tendência é que a partir do momento em que o governo brasileiro define alguma cosia, os governos estaduais e municipais têm que sair correndo atrás do prejuízo, até para poder ter uma interlocução com o governo federal. Eu sou uma grande defensora do micro, acho que a gente vive nas cidades, nos bairros, mas às vezes a gente precisa de uma coisa maior que vá, como um efeito cascata, chegando até o micro, para que ele possa se perceber como parte de uma coisa maior. Eu acho que, talvez, essa seja uma enorme contribuição da criação da secretaria: fazer com que as cidades e os estados comecem a se pensar dentro dessa discussão.


A Economia Criativa pode contribuir para emancipar aqueles que trabalham na área cultural, ainda muito dependentes de editais e incentivos públicos e privados?

Há dois aspectos da questão. O primeiro deles é da economia em si: o que o entendimento dessa economia pode aportar para a independência, ou emancipação, dos produtores? Eu vou começar por essa. Quando se fala de economia, se fala, necessariamente, de fluxos. Fazendo uma simplificação muito básica, acaba-se mexendo com produção, distribuição e demanda. No Brasil, a gente tem uma tendência a pensar que, sendo produzido, o produto escoa no mercado quase por combustão espontânea, e isso não é verdade. Há um gargalo grande de distribuição e um gargalo ainda maior de demanda. A partir do momento em que você começa a fazer com que as pessoas – inclusive os próprios gestores públicos – percebam que não adianta colocar todas as fichas em produção, que você tem que pensar num fluxo – porque se a demanda for muito pequena, e ela é que dá a pauta da produção seguinte, a coisa vai se afunilando –, há, sim, um potencial de contribuição para que esses talentos se concretizem como agentes econômicos. Isso, por um lado, o do entendimento dessa dinâmica econômica, e de que, portanto, é preciso ter um equilíbrio nas diversas partes.

Agora, do lado do produtor e do artista, também temos que ter uma mudança de mentalidade. Ainda há muitas pessoas – e profissionais de competência, inclusive – com uma mentalidade muito mais assistencialista do que empreendedora, e isso tem que mudar se estivermos falando de economia. Muitas vezes as pessoas quererem produzir e criar apenas porque gostam, mas sem pensar no outro, ou seja, sem pensar no “consumidor”. A pessoa cria para o seu bel prazer. Isso é diletantismo. Se ela depende de recursos públicos ou privados e não pensa no potencial de mercado, é porque ela está criando para si e não criando para o outro. Isso tem seu papel, claro, a arte sempre foi uma questão de vanguarda, mas, de um modo geral, esse financiamento não é papel do mercado. Se a pessoa quer se entender como artista profissional, como um agente econômico, ela tem que lembrar que seus produtos vão encontrar um mercado e verificar quem é o potencial consumidor. Essa passagem de assistencialismo para empreendedorismo é algo que muitas vezes, no Brasil, causa certo mal-estar. Ainda existe aquele ranço, que vem desde a Idade Média e é uma grande visão romântica, de que “eu tenho que ter um mecenas, seja público, seja privado, para pagar as minhas contas”. Isso não funciona mais e vai funcionar cada vez menos, porque o governo tem cada vez menos dinheiro e as empresas privadas estão cada vez mais concorrenciais, tendo também cada vez menos recursos para investir.


Em outras ocasiões, você já afirmou que há um abismo entre o valor simbólico e cultural da produção de comunidades tradicionais e o valor econômico que recebem por seu trabalho. Isso vale também para o artesanato brasileiro. Quais as possibilidades que a Economia Criativa oferece para a diminuição desse abismo?

Normalmente, na Economia, os ativos econômicos eram muito limitados e o resto era despesa. Cultura, conhecimento, tecnologia cultural, eram vistos como despesa. Seja em termos públicos, seja em termos privados, era ou o pessoal passando o pires na mão, ou aquilo de “É bacana, é gostosinho, dá um trocado pra essa turma”. A partir do momento em que se reconhece como ativo econômico esse conhecimento, esse intangível, não só cultural, de criatividade de modo geral, mas do papel da cultura para engendrar criatividade, há outra prioridade na hora de se fazer investimentos. Então, algo que era visto como irrelevante, passa a ser visto como um talento que gera investimento e que, portanto, vai proporcionar um retorno. Se seguirmos essa lógica, iremos perceber que, ao invés de colocar todas as fichas numa indústria automobilística que já se mostra absolutamente insustentável e incoerente, dentro da lógica que a gente vem discutindo, podemos começar a buscar outros ativos e valorizações que eventualmente sejam desses talentos que estão esparramados pelo Brasil e aos quais não atentamos hoje. É um processo imediato? Não. Vai dar tempo de esses talentos não sumirem até começarmos de fato a fazer alguma coisa prática a respeito? Eu espero que sim, mas não sei. Pelo fato de alguns países já estarem atentando a isso, os outros começam a se sentir incomodados e seguem a mesma pauta. O mundo está numa transformação tão acelerada que pode ser que dê tempo.

Se pegarmos os dados do último relatório de Economia Criativa da ONU e compararmos os números de 2002 e 2008, veremos que todas as Indústrias Criativas têm crescimento no mundo em exportação, todas. E quando comparamos a participação de países desenvolvidos e de países em desenvolvimento, em todos os setores, os países em desenvolvimento têm maior aumento na participação do que os países desenvolvidos. Sabemos que grande parte dos talentos criativos dessas pequenas comunidades está justamente nos países em desenvolvimento. Então, aí, já temos um indicador de que, sim, a Economia Criativa pode funcionar como estratégia de desenvolvimento e incorporação desses valores dentro da economia, sem necessariamente deturpar o seu conteúdo cultural, mas reconhecendo seu valor econômico. Os números já estão evidenciando isso.

Voltando e juntando isso à pergunta anterior, uma questão fundamental que precisamos enfatizar sempre é que o mundo está deixando de ser tão linear, em que tínhamos antagonismos – ou era público, ou era privado; ou era local, ou era global; ou era econômico ou era cultural – e passa a ser muito mais circular, muito mais complementar. Não é preciso abrir mão do conteúdo cultural para se tenha um ativo econômico. Isso poderia parecer uma visão muito romântica há dez ou vinte anos; hoje, sabemos que é possível. Outro exemplo: preservar o meio-ambiente e ganhar dinheiro com isso. É a mesma lógica.


Por sua compreensão do mercado e capacidade de tradução ao consumidor de conteúdos simbólicos e culturais, o design é um dos conceitos chave da Economia Criativa. Qual a importância de aliar o design ao artesanato na promoção do objeto brasileiro?

Tanto o Design quanto o Artesanato, que a meu ver são dois setores que se complementam, são considerados Indústrias Criativas. O Design, de modo geral, traz uma contribuição ainda maior porque consegue ser transversal a todas as pastas. O Festival de Design de Londres, por exemplo, começou a fazer uma série de articulações junto com a pasta de Saúde Pública, porque perceberam o potencial do Design para fazer com que as pessoas tenham acesso a produtos e materiais que sejam mais confortáveis e efetivos. Se entendermos o Design não só como design de produtos, mas como Design de processos, como Design de interiores, como Design de modo geral, perceberemos uma transversalidade da economia como um todo que faz com que ele seja uma grande plataforma de criatividade, e isso é absolutamente fascinante.

Existem diversas formas de você incorporar o Design no artesanato. Tem a forma mais acintosa, problemática e assassina de agir, que é quando se transforma o conteúdo cultural que está embutido no artesanato, falando assim: “Deixe de fazer isso da forma como você faz, comece a utilizar outros materiais, porque é isso que o mercado quer”. Com isso, você se vende ao mercado e esvazia aquele conteúdo cultural. O extremo da escala é quando se fala assim “Que maravilha, que bacana, vamos vender tal qual”, e daí ninguém vende, ou vende naquela história de alguém comprar porque acha super bacana a forma como foi produzido, mas quando chega em casa não sabe nem o que fazer com aquilo. O meio do caminho, que, via de regra, é o mais sábio, é não interferir no conteúdo cultural, mas dar uma visão de mercado à forma. Por exemplo, se eu sei que determinado produto vai ser transportado, tenho que fazer uma embalagem propícia ou pensar num material que não vá se espatifar no meio do translado; se eu faço grandes peças e as pessoas, normalmente, moram em apartamentos diminutos, não adianta eu continuar a fazer naquele tamanho, talvez tenha que diminuir a escala. Então, você mexe na forma, mas não no conteúdo. Se adotarmos isso como estratégia dentro do setor, é interessante, porque começaremos a perceber que, de novo, as coisas são conciliáveis. Com isso, há um olhar sobre o outro, e não aquele artista desconectado do mundo, que produz o que quer e acha que o outro “vai ter o bom senso de adorar aquilo que eu faço”. O artista deve pensar no outro de modo que ele adore seus produtos e possa ter acesso àquilo. Esse é o grande desafio: conseguir fazer com que todo mundo ganhe.


Nem tudo o que tem grande valor simbólico e cultural tem valor de mercado. Qual a solução para a valorização e preservação deste tipo de bem?

Precisamos utilizar a Economia para resolver o que tem potencial de mercado de modo que sobre dinheiro público, e até de editais privados, para o que não tem. Sem dúvida, há coisas que vão continuar não tendo potencial de mercado, mas que merecem ser preservadas dentro da nossa política de valorização. Tem coisas que vão precisar de dinheiro sempre, porque são vistas como investimento na sociedade, assim como Educação, assim como Saúde. Não tem business case de Educação e de Saúde que fechem num período curto, sempre são vistos como investimento. Se a gente entender essas matérias que não têm potencial de mercado como investimentos na sociedade, é a mesma lógica, só que para isso você tem que ter liberado recursos do que hoje é aplicado as borbotões no que poderia ter potencial de mercado e que acaba bebendo das mesmas fontes – com, inclusive, um potencial de concorrência muito maior dentro dessa disputa por recursos, porque tem mais visibilidade de mídia. Então, acho que o segredo é utilizar esses instrumentos da Economia para fazer com que o mercado vire mercado e assim sobre dinheiro para o que não o tem.


Na dedicatória do livro Economia Criativa como estratégia de desenvolvimento: uma visão dos países em desenvolvimento, você escreve: “A todos os que diluem as fronteiras culturais, em respeito profundo à sua própria cultura”. À primeira vista, a frase pode parecer contraditória. De que forma a diluição de fronteiras culturais pode contribuir com a própria valorização de uma cultura específica?

Eu acho que é o que acontece na vida de cada um de nós. Quanto mais informações, quanto mais acesso ao diferente, quanto maior a sua visão de mundo e quanto maior o seu repertório, mais você consegue tomar decisões próprias para saber, dentro desse mundo, o que de fato é seu. Quanto mais você é exposto ao externo, mais você valoriza o que é interno, e daí entramos de novo no paradoxo da Globalização. Nesse sentido, há, por exemplo, o renascimento dos dialetos em função das pessoas não quererem se sentir estatísticas no mundo, todos falando a mesma língua. Quanto mais você dilui as fronteiras, mais você consegue se encontrar internamente naquilo que você valoriza como seu.


Dessa forma, ao invés de ameaçar, a Globalização, associada às idéias promovidas pela Economia Criativa pode contribuir para fortalecer as especificidades culturais?

Catapultada pela Globalização, a Economia Criativa nasce do reconhecimento de que são os talentos que fazem a diferença. A Globalização faz com que tudo seja absolutamente tendente a padronizável. O que a gente quer? Algo que seja diferente, porque estamos cansados de sermos bombardeados pelos bancos, empresas de telecomunicações, todo mundo oferecendo exatamente a mesma coisa que você já tem, pelo mesmo preço etc. Na sua busca por serviços, produtos e valores, as pessoas querem algo que seja diferente. Então, a Globalização tem um duplo efeito: de catapultar o que é Economia Criativa e de reforçá-la. Sabe aquela noção de que quando você viaja, você volta pra casa dando mais valor ao que você tem? Quando se traz um olhar externo, começa-se a perceber as sutilezas e as vicissitudes daquilo que se encontra no dia a dia; aquele pastel de feira de que você sentiu uma enorme saudade, o temperinho do feijão, os passarinhos na rua, essa bagunça que a gente encontra de manhã no Ibirapuera. Esse olhar externo é absolutamente fundamental para que cada um possa fundar justamente os seus valores internos. A Globalização, junto com a busca do que é intangível, do que é diferencial, faz com que a Economia Criativa tenha um espaço maior no mundo hoje do que teria tido há vinte anos. Não é por menos ela não eclodiu há vintes anos e sim há quinze, porque foi catapultada pela história da Globalização e da busca pelo que é diferente.


A Economia Criativa é mais igualitária do que a Economia tradicional? Como são distribuídos os recursos gerados a partir deste conceito? Ao valorizar o capital individual, as desigualdades e hierarquias não permanecem? Como fica isso no caso dos saberes coletivos?

A Economia não é normativa. Ela oferece um corpo de instrumentos, e o que se faz com esses instrumentos depende das pessoas. O que você faz com uma faca? Há um mundo de possibilidades. A mesma coisa se aplica. Economia Criativa não é Economia do Bem ou Economia Solidária, ela é um corpo de instrumentos que permite uma nova abordagem de mundo e, aí sim, uma redistribuição de recursos. A partir do momento em que pessoas que antes não eram tidas como talentosas e agora o são, porque aquele talento passa a ser reconhecido como um diferencial – econômico, inclusive –, abre-se uma possibilidade. Mas se você vai aproveitar ou não essa possibilidade, ou se você vai simplesmente comprar a renda da senhora que faz lá no litoral de Alagoas por R$10 a baciada de cem metros e depois vai incorporar na roupa que você vai vender, cada peça, a cinco mil reais... Então, depende de como você lida com isso. Como é feita essa redistribuição de valor dentro da cadeia? Isso não é a Economia Criativa que dita. Ela abre a possibilidade, mas somos nós que estamos participando disso que vamos definir para que lado queremos usar.


Como distribuir riquezas geradas a partir de um conteúdo cultural coletivo?

Na minha perspectiva, se o conhecimento é coletivo, a única forma de você redistribuir o valor é fazendo com que ele atue de forma coletiva. As experiências que eu conheço, não só no Brasil, mas em outros cantos do mundo, lidando com artesanato e afins, são de associações coletivas que se fazem valer como voz única. E essa é outra coisa interessante da Economia Criativa: a partir do momento em que se reconhece que um talento é coletivo, as pessoas deixam de ficar disputando entre si e percebem que, para ter benefícios, elas têm que jogar junto, se não a coisa não funciona.


Em muitos países, a idéia de Economia Criativa está ligada aos direitos de propriedade intelectual. Ao mesmo tempo, há uma discussão sobre a liberação de licenças para obras intelectuais. Quais as vantagens e desvantagens do compartilhamento gratuito deste tipo de criação? Como se pode ganhar dinheiro com isso?

Eu acho que, no Brasil, não devemos tomar como divisor de águas das Indústrias Criativas o que foi adotado em países que tenham outro perfil, como é o caso do Reino Unido, que são Direitos de Propriedade Intelectual. Claramente, esses direitos não atendem a saberes comunitários, tradicionais. O que eu acho que é interessante dentro dessa discussão, que vai muito além da Economia Criativa, é como a gente consegue lançar novos olhares sobre o que a gente faz, Como se pode criar novos modelos de negócios. Praticamente todas as minhas últimas publicações são digitais e investimentos próprios. Nunca contabilizei isso e nem poderia, mas creio que ganho mais dinheiro com esses livros do que com os livros impressos que eu tenho com as editoras, porque o autor ganha apenas dez por cento do preço de venda. Ao mesmo tempo, em cinco meses, houve 40 mil downloads nesse livro digital publicado em parceria com o Itaú Cultural. Isso dá uma visibilidade, dá uma solicitação de projeto, de palestras, envolvimento em redes, que, falando de novo no intangível, é até difícil mensurar, mas eu imagino que, no final, me dê mais dinheiro do que os livros que eu tenho editados de forma tradicional e que acabam circulando por poucas pessoas, porque custam dinheiro. Eu acho que essa é a grande beleza de revermos os direitos de propriedade intelectual, mostrar que existem outros caminhos e que talvez sejam mais proveitosos e profícuos do que os tradicionais.

Estou fazendo, agora, uma série de documentários sem fins comerciais, e um deles envolve design. Mesmo que obra esteja exposta numa vitrine, é preciso pedir autorização para colocar aquela obra dentro do documentário. Qual é a lógica? Estou dando visibilidade, não estou ganhando dinheiro em cima disso e uma coisa que está exposta num espaço público, que é a rua.

Imagine se ficassem exigindo direitos de marca ou de indicação geográfica sobre pizza? A Itália diria “isso é meu”; daí, você falaria “mas o tomate que você está usando no molho veio das Américas”. Onde é que a história termina? O que é coletivo e o que é comunitário? O que é de todos e o que é de uma tribo? Chega uma hora se começa a incorporar pintura marajoara no dia a dia e sem saber, necessariamente, que aquilo um dia foi uma pintura de origem marajoara, porque faz parte do coletivo, apareceu na TV, está na internet. Aquilo já faz do repertório de cada um. Então, eu acho que essas questões de direito de propriedade intelectual têm que ser revistas.