"Artesão também é artista"
Ana Claudia é artesã de capim dourado, agente cultural
e diretora de projetos da Associação de Artesãos e Extrativistas do Povoado de
Mumbuca.
Quando e como o povoado de Mumbuca foi formado?
As pessoas mais velhas da comunidade não sabem ao certo a data, mas, segundo alguns historiadores, foi no final do século XVIII que se iniciou a história do povoado, quando negros, fugindo da fome, da seca e da escravidão, saíram da Bahia e chegaram no local onde nós estamos. Neste local, havia índios Xerentes. E o que eles fizeram? Pegaram uma filha dos índios e expulsaram os demais. Uns dizem que expulsaram, outros dizem que mataram. Eles chamaram essa índia de Jacinta e a domesticaram. A comunidade surge desse encontro de negro com índio. Com os índios, aprenderam a técnica de costurar capim dourado.
Quais são as etapas do processo técnico para a confecção de peças artesanais em capim dourado?
O processo se inicia a partir do momento em que o capim está na vereda – ele não aparece, simplesmente, em casa. O capim dourado só dá uma vez por ano, então não é todo dia que tem capim dourado no campo. Ele pode ser colhido só depois de 20 de setembro de cada ano. Antes desta data, fazemos uma festa para o capim dourado, com a escolha da garota e do garoto capim dourado e do coração da rainha – agora vai ser homenagem à rainha, porque a rainha, a minha avó, Dona Miúda, morreu, palestras, estandes, exposição de fotografias e a visita, em que os visitantes são convidados a irem às casas das pessoas mais velhas para ver a mudança após início do trabalho com o capim dourado – o que ela comprou com o dinheiro do capim, o que modificou internamente. Depois do dia 20 de setembro, começa a colheita, todos vão ao campo. Passamos quinze dias no campo e, depois de muita coleta, voltamos pra comunidade e pesamos. Todo mundo tem que pesar quantos quilos pegou para saber quanto pode vender. Depois de pesar, a gente armazena, pois esse capim será utilizado durante todo o ano. A gente costura com a seda de buriti, sem usar nenhum produto químico, é tudo natural. Como ele é um fio que não é maleável, é preciso molhá-lo. Quando molhamos, conseguimos dominá-lo e fazer várias coisas.
Como você aprendeu o ofício com o capim dourado?
Eu comecei a fazer com oito anos de idade, para as minhas bonecas. Minhas bonecas eram feitas de buriti, não tinha boneca de plástico, e era eu mesma que fazia – todo mundo fazia suas bonecas. A gente enfeitava, colocava chapeuzinho. Quando fui crescendo, minha mãe falou: “Vamos caprichar mais, deixar a boneca mais bonita, fazer peças maiores”.
Quando o designer Renato Imbroisi chegou à comunidade, em 1997, para dar o primeiro curso de design do Jalapão, eu já sabia fazer. Nosso acabamento não era como é hoje, era brusco, e foi o Renato que nos ensinou a acabar pacificamente, para que ninguém percebesse o final da peça. Isso enriqueceu muito. Atualmente, faço todo tipo de artesanato, mas gosto de fazer principalmente bijuteria, peças pequenas, bem delicadas.
Você estava presente quando houve o primeiro encontro da comunidade com o designer Renato Imbroisi. Como ele foi recebido?
Eu era criança, e ele foi um dos primeiros brancos que nós vimos. A comunidade ficava a 36 km da cidade e era protegida por um rio sem pontes que impedia que outras pessoas que não fossem da região entrassem. O Renato chegou quando já havia a ponte, mas todo mundo ainda tinha medo de gente de fora, dos carros. Nós éramos uma comunidade que, para sobreviver, dependia da caça de animais, e os nossos pais falavam que os brancos não gostavam que a gente caçasse, que quem caçasse seria morto, seria levado embora; que as pessoas de fora poderiam vir para matar as crianças, pegar o olho, o coração. Quando o Renato chegou, achávamos que ele era o dito cujo que iria roubar nosso coração. Então tínhamos muito medo.
Mas com o jeito dele, as coisas foram dando certo. A comunidade gosta muito de cantar na hora em que está costurando, e ele entrou, começou a aprender e exigir: “Quero que cantem aquela música!”, e todo mundo cantava; “Canta de novo!”, e nós cantávamos. Assim, começamos a nos enturmar. Foi o primeiro contato que tivemos com pessoas de fora, pessoas da cidade grande.
O capim dourado é uma sempre-viva da família das Eriocauláceas. Como surgiu o nome capim dourado?
Nós mesmos que colocamos o nome de capim dourado. Antigamente, chamávamos o capim dourado de capim-de-vereda, pois esta planta nasce na vereda. O “dourado” surgiu só mais recentemente, no ano 2000, quando fundamos a Associação, a primeira associação do Jalapão, e queríamos colocar nome do material com que a gente iria trabalhar. O Paulo Garcia, consultor de Brasília que deu a ideia de formarmos a associação – até aquela época, nós não sabíamos nem o que era uma associação –, disse que capim-de-vereda não era um nome comercialmente vendável, pois as pessoas teriam dificuldade em identificar o que é vereda, o que é capim. Então, ele falou: “Sugiro para vocês chamarem de capim-ouro”. Aí o pessoal respondeu: “Não, capim-ouro, não, vão pensar que somos ricos e vão querer nos assaltar; vamos colocar capim dourado”. Então, formou-se a Associação Capim Dourado do Povoado de Mumbuca. Hoje a associação é a base de organização da nossa comunidade. E o nome pegou.
O contato com designers gerou mudanças significativas na comunidade?
Houve muita mudança! A primeira mudança que ocorreu foi na forma de fazer e valorizar o produto, que a gente via em poucos lugares. Fazíamos só bolsas, sacolas, potes, chapéus. São as peças tradicionais que a nossa avó nos ensinava. O Renato veio com uma visão de fora: “Olha, faz a mandala que a mandala é boa”; “Vamos fazer brincos”; “Faça isso, faça aquilo”. Isso fez com que os turistas chegassem. A forma de organização também mudou. Ele falou: “Olha, vocês têm que organizar um ponto de venda”. Antes, vendíamos só na casa de nossa avó. Realmente, ela era referência da comunidade e todo mundo chegava em sua casa e comprava lá. Mas, naquela época, os mais velhos nem sabiam fazer contas. Os turistas chegavam para comprar e perguntavam: “Quanto custa?”; e eles não sabiam nem o preço, nem como receber, nem se estavam recebendo certo, nem como dividir esse dinheiro. Aí fizemos a loja da comunidade, colocamos uma pessoa para receber e fazer a negociação com o cliente, pagar o artesão. Foi muito bacana. Mudou muito, muito, muito mesmo. E para melhor. Claro que certas coisas não são tão boas, mas ainda dá tempo de revertermos a situação e colocar o capim dourado como ele realmente merece, como uma joia, como um presente da natureza para nós.
Quais são as principais dificuldades enfrentadas por vocês?
Em primeiro lugar, a desvalorização do capim dourado, esse negócio vender peças de capim dourado em qualquer barraquinha de mascate. Isso é desvalorização.
Outra é o aumento do extrativismo. Todo mundo foca só no capim dourado, quando há outros tipos de artesanato, doces, com um potencial enorme. Assim, o capim dourado corre o risco de perder sua característica original. Falta dizer assim: “Faço esse artesanato não porque quero ganhar dinheiro, mas porque tenho sentimento”. Além de ganhar dinheiro, tem toda uma história. As pessoas acabam aproveitando, querendo ter fazer artesanato sem se preocupar com os cuidados que devem ser tomados. Por isso a comunidade se preocupou muito em 2002. Em 2001, vendeu-se muito artesanato, vinha turistas, a fama aumentou. Na cidade vizinha, o prefeito começou a contratar artesãs da nossa comunidade para ensinar as mulheres de lá. Aquelas novas pessoas começaram a colher fora da época, fazendo com que o capim perdesse o brilho. Aí a nossa comunidade solicitou ao Ibama montar a Ong Pequi para realizar um estudo sobre a nossa produção e comprovaram que a foma como fazemos a extração é sustentável. Nossa preocupação é que todos saibam disso, que divulguem.
E outro desafio é fazer com que o capim dourado seja não só um patrimônio de Mumbuca, ou do Jalapão, ou do Tocantins, mas um patrimônio do Brasil. Todos os brasileiros têm que sentir orgulho de ter um produto lindo, tão maravilhoso, da nossa natureza.
O sucesso do capim dourado em mercados das grandes cidades levou a uma proliferação de grupos produtores e concorrentes, situados, muitas vezes, em regiões muito mais acessíveis do que o povoado de Mumbuca. O que vocês estão fazendo para contornar este problema?
Olha, isso é sério. Nós perdemos espaço. A partir do momento em que outros grupos aprenderam, começaram a desenvolver técnicas mais apropriadas, mais modernas. Além disso, eles estão mais próximos da capital, têm acesso à moda, à informática, às estradas. Nós estamos num lugar distante, no centro do Jalapão, num povoado minúsculo, de difícil acesso. Isso faz com que fiquemos atrás na comercialização. O diferencial é a nossa história e estamos lutando por isso. Queremos que as pessoas valorizem essa história, nossa consciência ambiental, todo o nosso cuidado. É diferente comprar um artesanato em uma cidade de uma pessoa que não é artesão do que ir a Mumbuca, ter contato com a natureza e com a pessoa que passou o dia no sol para colher o capim dourado, fio por fio. É isso o que divulgamos.
Por mais que o capim dourado tenha perdido a qualidade e o preço tenha caído, tem algo em nós que ainda se mantém: a tradição, o amor, a cultura. Temos esse valor. É preciso que as pessoas valorizem isso, que não comprem capim dourado de alguém que não toma os cuidados necessários.
Hoje, grande parte dos artesãos está muito ligada no mercado, conhecem bem os seus clientes, viajam o país inteiro para participar de feiras e exposições, divulgando seu trabalho. No entanto, há uma ideia muito romântica que imagina o artesão como uma pessoa isolada em lugares distantes, totalmente desconectada do mundo, vivendo em uma redoma. O que acha dessa visão?
Essa visão tem que ser mudada. É isso o que as pessoas pensam e por isso que não dão valor para o artesanato. As pessoas têm uma visão muito pequena: “Dona Mariinha, toda rasgadinha, fazendo seu artesanato, que não sabe quanto custa”. Temos que mudar essa ideia e mostrar que o artesão tem um preço, ele sabe calcular. Nós somos artesãos, temos toda a nossa tradição, mas também temos conhecimentos e somos conscientes, estamos cobrando por aquilo que nós temos, não estamos aproveitando e não queremos ser aproveitados. Muitas pessoas pensam assim: “Ah, eu pago para o artesão lá da roça o preço que eu quiser, porque ele não tem nenhuma informação”. O cliente tem que saber que não é assim. Isso valoriza o produto, porque a pessoa que vai comprar sabe que o artesão cobrou um preço justo. Esse é um desafio, e estamos lutando para que mude essa visão de que artesão é só aquele rasgadinho, aquela pessoa que não tem conhecimento. Isso eu vejo muito.
Como eu tive contato com os meios de informação só nos anos 2000, tenho que correr atrás do prejuízo. Se alguém lê um livro, tenho que ler dois; se alguém passa uma hora na internet, tenho que passar duas. Tenho que ver o máximo para me atualizar no passado e viver o presente.
Comumente, os conceitos de artista e artesão são utilizados para ordenar não só o tipo de produto de sua criação, mas, principalmente, a classe social dos envolvidos – as elites e as camadas populares, respectivamente. Em algum momento será possível imaginar o artesão com o mesmo status do artista?
Sim, nós corremos atrás disso. O artesão não é aquele pobrezinho que não sabe nada, o artesão também é artista, que transforma sua arte, que coloca sua paciência e todo seu momento, um momento tão delicado, nas coisas que faz. Embora ele não tenha conhecimento de livros, de faculdade, ele tem aquele conhecimento que as pessoas que têm faculdade não têm. Gostaria que vissem o artesão como um artista, e não como alguém que não tem informação, uma pessoa pobre. Muitas vezes, quando me vêem falando, olham para mim e perguntam: “Você é artesã mesmo?”. Eu respondo: “Sim, eu sou artesã, você quer que eu costure na sua frente?”. “É porque não parece artesã...”. Eles têm essa visão e isso tem que mudar. O artesão é artista, dono do seu próprio negócio, ele sabe fazer e faz bem, faz com a alma, com paciência, com amor.
No dia da abertura da exposição Capim dourado: bordados e costuras do Jalapão, você disse que ainda queria fazer uma faculdade. No entanto, muitas pessoas, provavelmente temendo que você abandonasse o povoado de Mumbuca, te desestimularam, dizendo que você já tinha um saber muito valioso e deveria seguir atuando como artesã e agente cultural em sua comunidade e que não precisava do ensino superior. Como lida com isso?
Vejo isso como um elogio e agradeço – gosto de elogios. Mas, às vezes, prefiro receber uma crítica construtiva a um elogio. A pessoa quis dizer que eu já estou preparada, mas não quero estagnar, quero conhecer mais. Muitas vezes, as pessoas me perguntam: “Qual sua formação?”. Eu respondo: “Não tenho faculdade”. Aí já julgam que se não tem faculdade, então não tem conhecimento para passar. Não quero isso para minha vida. Meu sonho é fazer uma faculdade, de preferência uma faculdade de direito, que é para ajudar a minha comunidade. Claro que nunca vou deixar minha comunidade e minha cultura por uma faculdade, eu tenho que conciliar as coisas. Mas que a faculdade é necessária, ela é. E lá para frente meu sonho eu vou conquistar.
Em diversas comunidades de artesãos, os mais jovens já não têm tanto interesse em permanecer no seu local de origem e acabam se mudando para cidades maiores em busca de uma vida melhor. Essa ideia nunca passou pela sua cabeça?
Não, não. Isso é um dos motivos pelos quais eu nunca saí para fazer faculdade fora. Tudo tem um momento certo, e se o momento certo de fazer faculdade ainda não chegou, é porque tem muitas demandas, mas um dia ele vai aparecer. Enquanto não chega, eu estou me virando com o que tenho em mãos. Mas sou muito orgulhosa de saber que na minha comunidade, Mumbuca, o jovem não tem esse pensamento de dizer: “Ah, São Paulo é bom”; “Rio de Janeiro é bom”. Queremos transformar a realidade e temos orgulho do que nós somos. Tanto é que os jovens encenam peças de teatro, contando nossa história, valorizando os mais velhos. Então, a comunidade tem essa visão de que, claro, precisamos da faculdade que existe no Rio de Janeiro, que existe em São Paulo, mas enquanto isso não é possível, estamos ensinando e aprendendo no nosso povoado. É desafiante? É. Você tem que ficar no local enquanto poderia ter outras possibilidades, mas o importante é ser feliz e nós somos felizes do nosso jeito. E como somos felizes!
Algumas peças desenvolvidas por vocês contam com um design bastante arrojado e inovador, fazendo sucesso na comercialização. No entanto, temendo a cópia dos grupos concorrentes, vocês não queriam que estes objetos fossem fotografados, nem que fossem muito divulgados. Ao não divulgar estas peças por medo da cópia a comercialização não fica tão comprometida como aconteceria se os objetos fossem copiados?
O curso de design que deu origem a estes objetos aconteceu há uns oito meses, na comunidade. Fizemos as peças, colocamos até o nome de Coleção Mumbuca Natureza, mas não tínhamos comercializado por medo de cópia – não colocamos nem dentro da nossa própria loja. Eram só alguns clientes que sabiam e queria e a gente levada exclusivamente a eles. Temos medo da cópia porque, muitas vezes, depois de um tempo não se sabe mais quem fez primeiro, quem copiou, perde-se o nexo.
Mas recebi um conselho aqui em São Paulo e vou voltar com outra visão. A gente pode fazer um lançamento oficial, dizendo que esses produtos são exclusivos, saíram da comunidade de Mumbuca, de artesãs que produziram junto com o designer Renato Imbroisi. E, se nos copiarem, vamos renovar, renovar e renovar. Esse foi o conselho que nos deram: quando copia, é bom. Realmente, ninguém vai copiar coisa ruim. Nós somos bons e temos a capacidade de sermos melhores ainda. Vamos voltar com essa ideia, passar para as pessoas que estão lá e, com certeza, eles vão aceitar o desafio.
Desde o final dos anos 1990, vocês já receberam inúmeras visitas de designers com o objetivo de renovarem as coleções. Não existe o risco de, com isso, a comunidade ficar dependente desse saber do designer que vem de fora?
Embora as cidades vizinhas tenham recebido outros designers, em Mumbuca a referência para o trabalho com capim dourado é o Renato Imbroisi. Acho que não corremos o risco de ficarmos dependentes porque há muita criatividade. Por exemplo, só havia caixinhas redondas e ovais. Foi a própria comunidade que fez caixinhas quadradas, caixinhas em formato de coração. O Renato fez bolsa redonda e não oval, como tem agora. Já tem bolsa tipo carocinho de feijão. Enfim, renovamos algumas peças. Mas ainda há os modelos tradicionais, inventados pelo Renato, e isso sempre vai existir, porque são pedidos, as pessoas querem consumir aqueles produtos, não tem como mudar.
O diferencial do trabalho do Renato Imbroisi é que quando ele chega à comunidade, não fala assim: “Faz esse modelo”. Ele fala: “Vamos criar juntos”. Aí alguém diz: “Ah, Renato, eu pensei em criar um jabuti”. E ele responde: “Então cria o jabuti, se vira com o jabuti”. Ele dá a liberdade para a pessoa desafiar sua própria inteligência.
Cada artesã tem sua habilidade, tem artesã que tem mais habilidade com peças maiores, outras com peças menores, mais delicadas. Uma vez o Renato pediu para que a minha mãe fizesse uma peça pequena, mas ela não conseguia fazer. Aí ele falou para mim: “Olha, os dedos delas não são tão habilidosos, então você faz”. Aí eu fazia um menor e ele dizia: “Faz menor ainda”; eu fazia menor, e ele: “Menor ainda!”. Isso desafiava minha mente. Hoje, eu gosto de fazer peças menores. Muitas vezes, ele falava assim: “Pensem aí o que vocês querem fazer”. O Colar Ninho, por exemplo. Ele colocou um monte de capim em cima da mesa e disse: “Se virem agora, vamos lá, criem alguma coisa diferente que vocês nunca viram no capim”, e ia ajudando. Então, foi uma criação conjunta, uma criação que dá possibilidade de continuarmos a criar quando o Renato sai.
Claro que com o olhar do designer é diferente, porque ele está na cidade grande, ele sabe o que está na moda, o que está pegando. Nisso, essa dependência existe, é claro, porque nós não estamos na cidade grande, nós temos a visão do mato.
Há peças que vocês faziam antes do Renato Imbroisi chegar e continuam fazendo até hoje?
Sim, o chapéu, as cestas, a cestas de alça – tipo bolsa –, os potinhos, muito usados para colocar moedas, as caixas. O que a comunidade fazia e parou de fazer é a cuscuzeira. O Renato falou: “Como é que vai guardar cuscuz aqui?”. Mas colocávamos o cuscuz depois de pronto, não íamos botar no fogo!
No final de 2010 e início de 2011, a novela das 18h Araguaia, da Rede Globo, apresentou cenas gravadas no Jalapão e contou com uma personagem que promovia o artesanato em capim dourado. Houve uma projeção maior do material e da comunidade por conta dessa novela?
Sim, houve uma projeção. Havia uma personagem dominada pelo marido que quis montar um negócio próprio e escolheu o capim dourado. No início, a novela estava mostrando que o capim dourado era de outra região, do Araguaia. Então, o governo do estado do Tocantins, através da Secretaria de Cultura enviou uma carta para a Globo dizendo que a verdadeira história do capim dourado não era no Araguaia. Fizeram uma proposta, garantindo pagar todas as despesas, e a Globo aceitou contar a verdadeira história. Tanto que foram até Mumbuca e escolheram as artesãs para fazer parte do cenário. Passou uns cinco minutos, com a divulgação do capim dourado e do Jalapão. Está no YouTube.
No dia 12 de julho de 2011, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) deferiu a Indicação Geográfica, na modalidade Indicação de Procedência, para o artesanato de capim dourado do Jalapão. Quais são as expectativas e em que esta certificação pode contribuir para o trabalho de vocês?
Foi um sonho! Gostaria muito de compartilhar esse momento com a minha avó. Ela lutou tanto por isso! É um momento único do capim dourado, um momento especial, que eu tenho certeza que ela está compartilhando com a gente, embora ela não esteja aqui. A expectativa é muito grande, é outro parâmetro, é ter referência, é fazer com que consumidor veja a diferença, de maneira explícita. Hoje, claro, o consumidor não sabe qual peça é de cada artesão, mas a partir da Indicação vai saber que as nossas peças realmente têm história e que há toda uma conscientização ambiental, social, cultural por trás deste capim.
Em 2001, com a criação do Parque Estadual do Jalapão, a comunidade quase teve que abandonar suas terras. O que vocês fizeram a respeito?
Sem que a comunidade soubesse, o governo do estado criou o Parque Estadual do Jalapão em nossas terras. Nós fomos a luta. Na época, ninguém sabia o que era Parque, ninguém sabia o que era Unidade de Conservação. Os técnicos falavam: “Em Parque, não pode morar ninguém, não pode criar nada, vocês vão ter que sair”. Este foi um momento muito triste para a comunidade. Mas, via Associação, buscamos nossos diretos. Em 2006, a Fundação Palmares nos certificou como remanescentes quilombolas. Nós já sabíamos que éramos, só nos garantiram isso através do certificado. Hoje, o Estado já sabe que a criação do Parque ali foi um erro, que não teremos que sair da área do Parque, que é o Parque que tem que sair das nossas áreas. Agora, a comunidade é parceira do Parque, porque entendemos sua importância. Com os mais velhos, foi difícil. Fomos nós, jovens, que começamos a fazer um trabalho de aceitação junto aos mais velhos da comunidade para mostrar que a Unidade de Conservação só veio para ajudar a preservar o que nós temos, de uma forma que não nos impeça de continuar com a nossa tradição, mas que nos oriente a fazer o que é certo, e isso é muito bom.
Em nosso município, há cinco Unidades de Conservação, uma Estação Ecológica, que é de Proteção Integral. Tem outra comunidade dentro da Estação Ecológica. Essa comunidade não tem certificado da Fundação Palmares, embora se auto-reconheça como quilombola. Isso gera conflitos, porque na Unidade de Conservação de Proteção Integral, ninguém pode morar, desapropria mesmo – só pesquisadores podem ir. Isso é ruim para nós. Resolvemos o problema na nossa comunidade com o Parque Estadual do Jalalapão, porque o estado reconheceu que foi um erro que aconteceu. Mas a Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins é de âmbito Federal. Os moradores ainda estão lá, lutando por seus direitos, dialogando. Agora estão fazendo um Termo de Ajuste e Conduta (TAC) junto à Unidade de Conservação. Queremos que as comunidades continuem fazendo as suas manifestações tradicionais, que é a colheita do capim dourado e do buriti, suas moradias. Houve um momento em que, devido à Estação Ecológica, não se podia nem procriar na comunidade de Mata Verde. Ninguém mais podia nascer. Não podia ampliar nem renovar as casas, mesmo que elas estivessem caindo – e a casa de buriti é frágil. Como estávamos saindo de um processo de conflitos semelhante, pudemos ajudar essa comunidade. Estamos ajudando, buscando auxílio junto ao Ministério Público Estadual e Federal.
Durante a mesa redonda Capim dourado: como manter o brilho deste capim?, diversas vezes você fez referência a Deus. Você é uma pessoa religiosa?
Sim, eu sou uma pessoa religiosa. Nasci na igreja protestante, na Assembleia de Deus. Essa é outra história interessante do nosso povoado que as pessoas quase não acreditam, mas é verdade. Mumbuca é a única comunidade quilombola no Brasil em que todos são protestantes. A comunidade sempre foi regida por um patriarca, um líder, uma pessoa que falava por todos. Quando tinha alguma confusão, alguma bagunça, esse líder ia lá e resolvia. Ele era tão líder que mesmo sem nunca ter ido à escola, sabia ler e escrever e ainda ensinava às pessoas. Ele servia como advogado e era meu bisavó.
Na década de 1930, veio um missionário da Igreja Batista que conversou com as pessoas e falou que iria retornar, mas nunca mais retornou. Ele tinha um parente americano e contou sobre o local onde havia passado e este americano sobrevoou a comunidade de avião – no Jalapão inteiro, não se entrava de carro, era só a pé ou de avião. Quando o avião chegou, todo mundo saiu correndo com medo e ele jogou várias cartas dizendo seu nome e pedindo para o povoado fazer um campo onde ele pudesse pousar em determinado no dia. Sem saber onde isso iria dar, a comunidade topou. Fizeram o campo e os americanos chegaram numa festividade religiosa pagã. Aí começaram a pregar, falar da bíblia, falar de deus. A partir desse momento, nosso líder falou: “Vamos sair dessa lei e passar para essa outra lei”, então todo mundo passou, todo mundo seguiu. Durante meses, os missionários continuaram vindo de avião, conversando com a comunidade sobre a bíblia, trazendo donativos, foram conquistando. Depois de um tempo, nunca mais voltaram. Mesmo assim, a comunidade permaneceu evangélica. Em 1985, já tinha estrada e vieram novos missionários. Não mais da Igreja Batista, nem americanos, mas brasileiros, da Assembleia de Deus. Aí todo mundo saiu da Batista e passou para Assembleia de Deus.
Então, hoje, quem nasce na comunidade, automaticamente é evangélico. Claro que têm o livre-arbítrio de dizer “Eu não quero ser”, mas até agora todos querem ser, todos continuaram a ser. Há muitos benefícios. Através do evangelismo na cidade, não tem prostituição, nunca apareceu uma menina grávida, drogados, pessoas que fumam, alcoólatras, brigas que matam. Nas comunidades vizinhas, isso acontece muito. Então, trouxe muitos benefícios, a consciência de dizer, “O bem é melhor”, “Segue o bem”, “Valorize o que tu tens”. Ao mesmo tempo, nunca houve proibição das manifestações culturais. Elas são conciliadas. Não é porque somos evangélicos que não temos cultura, não existe isso. Nossa cultura permaneceu. Claro que permaneceu apenas aquilo que nós queríamos, para alguma coisas dissemos “Isso não”, “Isso também não”. Nós decidimos o que queremos e o que não queremos.
Todo o sucesso do capim dourado é obra de Deus?
Sim, obra de Deus. Simplesmente de Deus, o criador do céu e da terra, de todo o universo.
Há mais alguma coisa que você gostaria de falar?
Queria deixar uma poesia minha:
Nosso Jalapão
Nosso Jalapão tem lugares lindos
Que com palavras
Eu não consigo expressar
Só vendo
Para você acreditar
Nosso Jalapão tem cachoeiras
Serras, dunas,
Muitas águas cristalinas
E peixes a nadar
A fauna e a flora
Fazem parte desse lindo lugar
Nosso Jalapão tem fervedouros
Que você vai se encantar
Ao visitar
Não tenha medo de entrar
O que vai acontecer?
Você vai simplesmente flutuar.
Nosso Jalapão
Nosso Jalapão tem algo
Que eu não posso deixar de falar
É do lindo capim dourado
Que devemos preservar
Colhendo na época certa
E deixando as sementes no seu lugar
Pra que o lindo capim dourado
Continue a brilhar
O capim dourado é uma das fontes de renda
Daqui do Jalapão
É mais um motivo para todos nós
Cuidarmos bem dele
Com muita dedicação
Se é um pouco do meu
E do nosso
Querido Jalapão