ENTREVISTA
ANDRESSA TRIVELLI
Publicado por A CASA em 20 de Julho de 2011
Por
Daniel Douek

Tamanho da letra
“Se o preço dos produtos artesanais continuar aumentando, sua venda será inviabilizada”
Andressa Trivelli é administradora de empresas pela PUC-SP. Lidera a gestão da Rede Tekoha desde 2007, além de atuar como consultora em projetos de organizações parceiras.
O que é e como surgiu a Rede Tekoha?
O Henrique Bussacos estava em Urucureá, numa viagem com o Projeto Bagagem, quando começou a pensar no que seria a Tekoha. Ele conta que realmente sonhou – literalmente – com uma rede, com as comunidades conversando, trocando experiências, trocando ideias, criando coisas juntas. Ele já tinha um desejo de trabalhar fora do mundo corporativo normal, fazendo alguma coisa com mais significado. Então, começou a perceber que aquelas pessoas tinham muitas riquezas, mas pelo fato disso não se monetizar de alguma maneira, elas acabavam saindo do lugar em que moravam e aquela riqueza poderia se perder. Era o que estava acontecendo: as mulheres saíam de lá e iam para os grandes centros urbanos, tornando-se empregadas domésticas, prostitutas. Muitas tornavam-se alcoólatras. Ele pensou: “Como é que podemos conectar essas comunidades aos centros onde o dinheiro está, transformando a riqueza cultural que possuem em retorno financeiro para eles?”.
A Tekoha existe para conectar esses mundos. Nossa proposta é a de aplicar inteligência de mercado à produção desses grupos. Para que essas pessoas possam viver disso que elas sabem fazer de melhor, precisam inserir seus produtos no mercado. E é interessante para as pessoas que vivem em contextos urbanos conectarem-se com o modo de vida de uma comunidade. O artesanato, hoje, é meio para cumprirmos essa missão de conectar os mundos e fazer com que a gente repense o significado de nossa própria vida. Mas o objetivo da Tekoha é evoluir para além do artesanato. Pode envolver turismo, música, comida, enfim, elementos que possam ser usados para que se faça essa conexão de verdade entre as pessoas, as histórias.
Elementos ligados à cultura do lugar?
Sim, porque a riqueza é essa. Enquanto aqui, em contextos urbanos, entendemos riqueza como quantidade de dinheiro que temos, nas comunidades há uma série de outras riquezas: cultura, tradição, símbolos.
Só trabalhamos com grupos, e não com artesãos individuais, pois entendemos que o trabalho em grupo é sempre mais rico, mais produtivo – literalmente, pensando em quantidade de produção mesmo. Às vezes, não se trata de artesanato de tradição, mas tudo bem, se traz significado para vida dessa pessoa, se há um sentido em fazer aquilo, seja ele qual for, e não é simplesmente um trabalho mecânico, está valendo.
O que significa Tekoha?
Tekoha é uma palavra em tupi que não tem tradução literal. É o lugar na tribo onde as pessoas produzem juntas; é o centro da tribo, de onde elas tiram o sustento, colaborando e criando as coisas em conjunto.
Como a Tekoha está constituída legalmente? Trata-se de instituição sem fins lucrativos ou uma empresa que visa gerar lucro a partir desse trabalho?
Juridicamente, somos uma empresa, com todas as peculiaridades de uma empresa social. Gosto muito de falar que temos lucro, sim – estamos caminhando para ter lucro –, mas o lucro é o meio, não o fim.
Entendo o lado negativo que as empresas podem ter em um sistema capitalista, mas tem uma coisa que elas sabem fazer muito bem: dinheiro. E quando falamos do mundo social, sabemos fazer muita coisa, mas tem uma coisa que sempre falta: dinheiro. Como é possível gerar dinheiro, como as empresas fazem, no mundo social? A Tekoha nasceu para usar as ferramentas desse mundo corporativo que realmente sabe fazer dinheiro a serviço das comunidades. Usamos ferramentas de inteligência de mercado para o artesanato, para as comunidades, adaptando todas as estratégias dos grandes pensadores de gestão – Porter, Kotler – a esses grupos.
Não tenho pudor nenhum em dizer que se eu conseguir comprar um produto da comunidade por preço justo, a cem reais, por exemplo, e, utilizando ferramentas de marketing e mercado, conseguir vender a mil reais, vou vender a mil reais! Por que? Porque é isso que vai fazer com que eu continue crescendo, é isso que vai fazer com que, no futuro, eu consiga elaborar um modelo de governança da minha empresa em que o lucro que eu gerar possa ser dividido, inclusive, entre as comunidades. Isso sim é falar de stakeholders! Há um tabu em torno da ideia de ter lucro, mas é isso que vai fazer com que eu gere mais impacto. A Tekoha crescer é sinônimo de impacto maior dentro do grupo.
Obviamente, é preciso tomar cuidado ao aplicar essas ferramentas. Se você simplesmente repetir o que é feito nas empresas, você acaba entrando no mesmo molde e não pensa na comunidade. Mas se entendermos que o lucro é um meio para isso e não o fim, ele será uma ferramenta para que eu consiga crescer e ter mais impacto social. É isso que a gente quer.
No fundo, não importa qual é a pessoa jurídica, mas o que se está fazendo na prática.
De acordo com a teoria marxista, lucro obtido pelo dono da empresa é a parcela de trabalho não paga ao assalariado. Nesse sentido, só é possível por meio da exploração do outro. É falsa essa ideia?
Não sou pesquisadora profunda do assunto, mas acho que quando essa teoria foi elaborada, não havia ferramentas nem o entendimento da possibilidade de agregar valor por meio de marca ou posicionamento de mercado.
Muitos grupos já passaram por capacitações de comércio justo e sabem precificar seu produto. Eu pergunto: “Quanto custa isso?”. Eles me respondem, por exemplo: “Custa dez reais”. Se dentro de todos os princípios de comércio justo, de precificação justa, valoração correta do trabalho, considerando o tempo para a colheita de todas as matérias primas etc., o grupo está me dizendo que o preço é dez reais, vou pagar dez reais. Daí para frente, vou usar ferramentas de mercado moderno para agregar valor: contar uma experiência, adicionar elementos menos táteis.
Se, usando essas ferramentas de marketing e relacionamento, eu consigo agregar tanto valor ao produto a ponto de comprá-lo a dez e vendê-lo a cem, posso começar a pagar trinta, quarenta, cinqüenta ou até oitenta para a comunidade! É essa a ideia, acrescentar tanta coisa nesse serviço que presto para que eu possa pagar até mais do que eles pedem.
Particularmente, acho que o que determina se estou explorando ou não é a transparência com que lido com a comunidade.
Como o preço pago pelo consumidor é dividido entre Tekoha, comunidade de artesãos e outros gastos?
Isso varia muito, mas, em média, a comunidade recebe em torno de 40% ou 50%. Pagamos 7% de imposto federal. Os 40% que restam vão para embalagem, pessoal e estrutura da Tekoha, investimento em comunicação etc.
Em termos de valores, quanto, em média, é revertido para as comunidades anualmente?
Ano passado, foram aproximadamente 150 mil reais em geração de renda direta para os grupos. A projeção para esse ano é de algo em torno de 300 a 400 mil. Estamos num crescimento bastante acentuado, para, até 2014, chegarmos a 1,5 milhão. É isso o que estamos planejando dentro de um mercado com grandes perspectivas de crescimento, inclusive por conta de eventos como a Copa do Mundo. Temos sentido uma acentuação da demanda por produtos e serviços ligados à brasilidade.
Atualmente, muitas instituições e profissionais que trabalham com comunidades de artesãos têm encontrado dificuldades na venda dos produtos. O que ocorre? Por que é tão difícil comercializá-los?
Vender, de maneira geral, é difícil. Não basta ter um produto, colocá-lo à venda e esperar que as pessoas comprem naturalmente. Nenhum mercado funciona assim, nenhum lojista, nenhum empreendedor, nenhum supermercado. Parece muito simples, mas não é.
Talvez, organizações que foram pioneiras nisso, por haver pouca concorrência quando começaram, tivessem menos dificuldade e menos necessidade de ter um planejamento comercial, porque era novidade. Como em qualquer mercado, começam a surgir novas organizações e, em determinado momento, satura. Existe isso em todos os segmentos, com o agravante de que, no Brasil, o segmento de artesanato não é institucionalizado – até por existir muita informalidade. Tudo isso pensando mais macro.
Pensando no micro, o timing da produção artesanal e o timing com o qual o mercado está acostumado são diferentes. Estamos acostumados, primeiro, com o botão: ao apertar um botão, aceleramos a produção; segundo, com o modelo de representantes comerciais, que vendem, vendem, vendem e a produção que se vire para entregar – e tanto melhor que tenha vendido mais, pois há capacidade de produção. Para o caso de um produto artesanal, é diferente. A Lizete Prata, da Associação Mundaréu, me falou que já tentou trabalhar com representante, mas ele desistiu, dizendo: “Vendi um monte de coisas, mas não consegui entregar”. Era um representante que trabalhava com roupas e produtos diversos. Ele não consegue entregar os produtos artesanais porque o ritmo é diferente. A pessoa que está querendo vender, vender, vender, não está preocupada se o grupo consegue ou não entregar, ela quer fazer a coisa acontecer. Não estou dizendo que os grupos não sejam profissionais ou não tenham empreendedorismo para entregar os produtos, é só uma questão de ser diferente produzir uma coisa industrializada e produzir uma coisa artesanal. Há limites mesmo nos melhores grupos, porque a produção é manual, porque a matéria prima é natural.
O mercado tem um pouco de dificuldade em entender isso, ao mesmo tempo em que tem uma curiosidade e uma vontade muito grande de se aproximar dessa realidade, mas sofre pressões para continuar dentro do mesmo modelo mental de produção e venda. Exemplo clássico é uma organização que uma vez entrou em contato conosco querendo 35 mil caixas de capim dourado! Caixas do tamanho de uma caixa de sapato, mais ou menos. Nós sugerimos: “Pode ser apenas um detalhe em capim-dourado e o resto da caixa em taboa?”. E eles: “Não, tem que ser inteira em capim dourado”. Mas não existe toda essa quantidade de capim dourado, é impossível de produzir! E não estou nem falando de manejo sustentável, apenas considerando a quantidade de matéria prima que existe no mundo. Além disso, queriam que fosse feito em três meses! Então, há essa diferença de percepção e entendimento de como a coisa é produzida. Estamos muito mais acostumados com o modelo industrial de grandes escalas. Não acho que os grupos têm que se limitar a escalas muito pequenas, senão as pessoas não conseguirão sobreviver disso, mas acho que mesmo aprimorando o processo produtivo, tem limite. Acho que boa parte da dificuldade na venda está aí.
Outra questão que vejo como uma dificuldade para a comercialização é a concorrência internacional. Há muitos produtos artesanais de lugares como China, Índia, Indonésia, Malásia com um preço muito mais barato. E não são produtos provenientes de trabalho escravo! Mesmo se considerarmos apenas comércio justo, veremos que são cinco, seis ou sete vezes mais baratos do que produtos de comércio justo no Brasil. Isso por um motivo, de certa forma, até simples, que é o custo de vida nesses lugares. Muitas vezes, me perguntam: “Você já pensou em exportar artesanato brasileiro?”. Já, já pensei muito nessa possibilidade, mas dentro do modelo de negócios normal, não dá para competir. É preciso ser subsidiado pelo governo ou haver alguma outra alternativa. No mercado interno, a percepção de valor varia bastante. Tem a ver com a sensibilidade de quem está comprando, que leva ou não em conta a questão da sustentabilidade, que está ou não disposto a pagar um pouco mais pelo produto.
Certa vez, numa negociação com uma grande corporação varejista americana, eu estava oferecendo um suplat de carnaúba. Já havia perguntado para as mulheres da comunidade que iria produzir se havia algum jeito de diminuir um pouco o preço, pois como a quantidade era muito grande, valeria a pena para elas. Elas baixaram um pouco e eu cheguei ao meu limite operacional – pagava as contas, não sobrava nada – para conseguir fechar com a empresa. Era um preço que provavelmente faria com que eu perdesse dinheiro, mas queria muito fechar, pelo fato de ser uma cliente constante. Ofereci o produto a US$2,50 e ela respondeu: “Encontro no México um produto que não é exatamente igual, mas muito parecido, por US$0,30”. É quase dez vezes mais barato! Então, não dá pra competir, não é simplesmente uma questão de diminuir a margem, ou conversar com o grupo.
O produto artesanal brasileiro é caro?
Varia muito. Ainda existem atravessadores, exploradores da produção artesanal, que pagam muito pouco pelos produtos artesanais. Vemos isso em comunidades com que trabalhamos. Mas acho que essa realidade foi amenizada nos últimos dez anos, e o artesão está muito firme em sua postura: “É isso que vale o meu produto”. Hoje em dia, a grande reclamação dos intermediários – lojistas de artesanato, Tok & Stok, Pão de Açúcar etc. – é justamente que o artesão não tem flexibilidade no preço. Isso fica claro nas feiras ou rodadas de negócios. Acontece de lojistas terem que falar: “Amigo, eu também acho seu produto maravilhoso, mas o que você prefere? Ficar com ele e vender um, ou repensar a maneira de produção e conseguir vender dez?”. Não tem problema se o artesão quiser vender só um, mas é preciso ter certeza do que ele quer. Tem artesão que, sim, vai preferir vender uma peça por três mil reais e vai ter um mercado muito pequeno, mas há grupos que não irão conseguir sobreviver disso se venderem apenas dez peças o mês inteiro, dividindo os ganhos entre cada artesão. Isso fará com que ele tenha que encontrar alternativas para viver, para gerar renda, para pagar as contas. Esta decisão cabe ao artesão.
São poucos os artesãos que conheço que acham que seu produto é subvalorizado. E conversamos bastante, não é só um relacionamento de fornecedor. Mas muitas vezes, já escutei técnicos de campo falando: “Está muito barato, aumenta isso aí”. Depois da oficina! Há toda uma metodologia bonita de precificação, calculando-se o tempo de produção, a matéria prima etc., e na hora da negociação, ele sugere: “Mais caro, mais caro, essa a empresa que está interessada no produto é grande”. Estraga-se todo o processo de entendimento do comércio justo. Gosto muito de falar que comércio justo tem que ser justo para os dois lados: quem está comprando tem que achar que aquele preço está justo e o artesão tem que achar que está justo o quanto ele está recebendo.
Há anos, instituições que promovem a interação entre design e artesanato têm insistido na necessidade agregar valor aos produtos artesanais por meio da inserção de referências culturais, utilização de etiquetas e embalagens específicas, aprimoramento da qualidade etc, com o objetivo de elevar o preço dos produtos artesanais. Trata-se de um equívoco?
Se o preço dos produtos artesanais continuar aumentando, sua venda será inviabilizada. Falo isso muito seriamente. Se trabalharmos apenas com a questão de agregar valor por meio do trabalho do designer, o preço do produto irá subir tanto que poderá inviabilizá-lo no mercado. Não adianta nada ter um produto lindo que eu não consiga vender, gerar renda às comunidades. A renda é gerada quando o produto sai da mão do grupo e vai para a mão do lojista. Se não tem venda, não tem renda.
Quando um consumidor compra diretamente do artesão, sem intermediários, é um preço razoável. Não é barato, mas é possível. Só que isso quase nunca acontece, são raras as oportunidades em que as pessoas podem comprar diretamente do artesão.
É necessário trabalhar para que os artesãos consigam vender em maiores quantidades, porque se forem depender da venda para pessoas físicas, não vão alcançar a quantidade de consumidores necessários para sobreviver disso. Então, tem que ter um preço diferente para lojistas, porque é onde os artesãos vão ganhar escala. Grandes lojas geram uma demanda enorme e constante, e não tem coisa melhor. O sonho de qualquer empreendedor é ter clientes constantes, que todo mês pedem alguma coisa. Às vezes, é necessário diminuir um pouco o lucro da comunidade para que ela tenha uma demanda constante, de uma grande instituição que pague corretamente, à vista. É isso o que vai garantir o acesso ao mercado aos grupos, que muitas vezes estão afastados dos grandes centros. Quem vai dar visibilidade e atuar no mercado de artesanato, promovendo a valorização dos produtos? Uma comunidade escondida no interior do Piauí, ou um lojista de Ipanema ou Copacabana, que vai receber todos os turistas da Copa? Quem vai mostrar o que é o Brasil? Não estou desmerecendo o artesão, mas, na prática, quem faz isso é o cara que tem a loja em Copacabana e em Ipanema, ou o cara que está aqui na Rua Oscar Freire. Lógico que tudo deve ser feito de maneira transparente, mas temos que parar de pensar no lojista, no supermercado ou no atacadista como os vilões da história. Eles podem até serem vilões efetivamente, mas é possível criar mecanismos para que o grupo seja forte o suficiente para não se deixar explorar. O mercado é uma ferramenta para empoderar as comunidades.
Quando o artesão fala para mim “Eu vendi para o cara a cem reais e ele estava vendendo a quinhentos na loja dele!”, eu respondo: “É lógico que sim, ele pagou o frete, tem uma loja na Rua Oscar Freire, arca com impostos... Você tem certeza de que os cem reais pagam sua mão de obra, matéria-prima etc.? Se o lojista continua pagando direitinho, qual é o problema dele vender a 500, mil, três mil reais? Você prefere não vender para ele, mesmo que ele tenha pago o preço que você falou que custava? Por que você fica bravo? Então fala para ele que você não quer mais vender”. Aí o artesão diz: “Ah, não”. Temos que cuidar para que o artesão esteja consciente do que ele está fazendo, porque o caminho é esse. O artesão precisa dessa ponta que mostra para o mundo o que é o artesanato brasileiro, não é comunidade que vai fazer isso.
O que é necessário para um produto fazer sucesso no mercado?
É importante frisar que não é o produto em si que faz sucesso ou não no mercado. Alguns grupos têm produtos maravilhosos, mas não conseguimos falar eles para fazer pedidos. O grupo tem que querer vender, perceber que é importante estar conectado com o mercado e parar com essa mania de falar, por exemplo, “Lá é difícil o acesso à internet”. Já fui muito para o interior e sei que toda cidade tem uma lan house. Nem que seja dentro da prefeitura, eles conseguem acesso a internet. Muitas vezes, o sucesso vem da postura do grupo. Catálogos maravilhosos, mas sem o preço dos produtos e um telefone de contato para fazer encomendas dificultam a conquista de mercados. As pessoas podem achar os produtos lindos, mas não vão conseguir comprar. Percebemos que os grupos mais bem-sucedidos são aqueles que têm produtos de simples produção e um contato muito fácil, isto é, você consegue ligar, tem celular, se trocam o número lembram de avisar os clientes. Parece tão óbvio, mas há muitos grupos que a gente acha que não existe mais porque não conseguimos entrar em contato e, na verdade, eles ainda estão produzindo, estão lá se queixando porque não vendem. Quando vamos ver, eles mudaram de celular. Como é que eu vou saber? Eles precisam avisar quando mudam o número do celular para eu continuar fazendo pedidos. Normalmente, as organizações falam: “Basta ter um produto, se for lindo, vai vender bem”. Espera aí! Para vender bem, preciso conseguir fazer o pedido, esse é o primeiro passo. O segundo passo é estar alinhado com a demanda de mercado. Lógico que existem diversos nichos de mercado possíveis e imagináveis para vender artesanato, mas o produto tem que estar minimamente alinhado com o preço, pois a comparação com outros produtos é inevitável. Se houver dois produtos muito parecidos e um custa dez e o outro custa cem, o cliente irá levar o que custa dez, isso é óbvio.
Como você avalia a relação entre designers e comunidades de artesãos?
O fato de hoje o artesão saber identificar o valor de seu trabalho tem muito a ver com a atuação dos designers que vão a campo, valorizam. Principalmente dos bons designers, que têm a sensibilidade de entender qual é a alma do grupo e gerar uma coisa nova – isso não é fácil. Pensando em mercado, existe uma rotatividade muito grande de produtos, de tendências, de moda, de cores que precisam ser resgatados o tempo todo. Não significa mudar o que o grupo faz, mas às vezes é apenas um detalhe que faça com que o cliente identifique ali um produto novo. Normalmente, percebemos que as soluções simples, mas bem sacadas, são as melhores.
Mas acho que deve haver uma ligação mais profunda entre o trabalho do designer e o mercado, não só um processo criativo muito bacana. Por exemplo, a solução do designer pode ser esteticamente maravilhosa, mas leva muito mais tempo para produzir; por levar mais tempo, o produto vai ficar mais caro. Mas enxugando um pouco o produto, elimina-se uma etapa dessa produção; o produto fica menos maravilhoso, mas pode continuar um produto muito bonito, mais enxuto, e tornar-se mais vendável. Eu prefiro.
Às vezes, vejo um produto do grupo e pergunto “Quanto custa isso?”, “Cem reais”, “Cem reais é muito, não consigo vender, qual a parte que mais demora para fazer?”, “Demora três horas para fazer esse detalhe”, “Dá pra tirar?”, “Dá”, “Quanto custaria?” “Custaria oitenta”. Muda muito! E era um detalhe! Tudo bem que o detalhe tem vários significados, o grupo não precisa deixar de fazê-lo, mas para o mercado pode não fazer muita diferença. Há uma mania de idolatrar a peça, quando as pessoas dizem: “Não pode mexer, foi o designer que fez, tem toda uma simbologia”. A simbologia é perdida na hora em que não se consegue vender. O trabalho do designer tem que estar atrelado ao processo de produção das peças. Tirar o detalhe barateia a peça em vinte reais, mas se com o ele a peça fica muito mais bonita, talvez ele possa ser feito de outro jeito, custando dez. Precisamos de engenheiros que pensem em eficiência de produção levando em conta as riquezas que já existem dentro do grupo ou naquela localidade para trabalhar junto com os designers. Por exemplo, desenvolvendo uma tecnologia para secagem de palha, pois quando chove, eles não entregam, ou entregam um quinto do que entregariam, porque a palha não seca. Deve ser possível fazer uma estufa a partir de recursos locais, de modo que seja possível secar a palha mesmo que chova. Não estou falando de acelerar o processo de produção, eu ainda estou falando de secar com tempo, mas de maneira com que o grupo não deixe de ganhar dinheiro por conta das chuvas, porque se o artesão entregar um quinto, ele também vai receber um quinto do que ele receberia naquele mês. Isso fará com que ele procure outra solução para sobreviver. Ele precisa comprar fralda, leite, pagar conta de luz, ele vai ter que encontrar outro jeito. Acelerar esse processo vai tirar sua naturalidade? Na verdade, nada mais é do que mantê-lo fazendo aquilo, mantê-lo ganhando dinheiro a partir do que ele sabe fazer de melhor.
A introdução do torno e do forno elétrico em comunidades que moldam o barro à mão e queimam as peças no sol ou em forno à lenha poderia contribuir apara acelerar o processo de produção, baratear o preço das peças e aumentar as vendas. Mas isso poderia descaracterizar as particularidades da comunidade. Outra forma é promover a especialização e divisão de tarefas. No entanto, uma das características mais importantes do artesão é justamente o domínio de todas as etapas de produção – o que o diferencia do operário, por exemplo. Como otimizar o trabalho do artesão sem abrir mão de características essenciais?
A maioria dos grupos, hoje, já produz em processos fordistas – até sabem que isso se chama fordista, porque diversas organizações já passaram por lá e ensinaram. Mas não conheço nenhum artesão que não saiba fazer todo o processo. Eles têm a consciência de que essa divisão do trabalho é boa para eles, pois irão produzir mais, mas se um artesão precisar fazer o produto inteiro, ele sabe fazer. Em Urucuia, por exemplo, as artesãs são totalmente fordistas – tem gente que só trança a palha, tem gente que só monta a caixa –, mas se uma precisar fazer tudo, elas fazem também, sabem explicar como tira o buriti, de onde tira a ripinha do buriti, como tira o fiapinho que faz o entrelaçado, quando tira etc.
O problema é quando novos processos são introduzidos de cima para baixo – e isso acontece muito. Mas se o grupo estiver consciente, se isso for construído com eles a partir de sua demanda, não tem problema, o saber não se perde. Se o trabalho é genuíno e vem delas, a história vai estar impressa nos produtos independentemente da forma como fizerem. Isso vale para a própria intervenção do designer. Se os produtos estão sendo construídos com o grupo, se as ideias partem da comunidade, se o designer vai mais para orientar, então não há descaracterização. Os bons designers só apontam e despertam as potencialidades dos grupos. É como a língua portuguesa: eu não falo exatamente igual se falava há 50 anos. Ter outro processo produtivo não significa que o processo antigo deve deixar de existir. O artesão pode, por tradição, para usar na casa dele, continuar fazendo do mesmo jeito que sempre fez.
Particularmente, acho que esses novos processos não descaracterizam as comunidades. Essa visão que se tem do artesão como Jeca Tatu é equivocada. Isso não existe mais. Trabalhamos com um grupo de bordado super tradicional e, quando conheci as artesãs em um fórum aqui em São Paulo, foi uma surpresa: eram meninas com 18 ou 19 anos, que cabularam parte do fórum para comprar máquinas fotográficas no Promocenter e foram à balada no dia anterior. Na minha cabeça, eram senhoras que faziam aquele bordado, não meninas de saia curta, salto alto, que foram comprar máquinas fotográficas para postar fotos de seus produtos no Orkut! O bordado é super tradicional e ao mesmo tempo há essa ligação com a modernidade. Elas querem manter isso, faz parte do processo. Nem todos os grupos são assim, mas existem casos bem-sucedidos na união dessas duas realidades, sem perder a característica e a história por trás.
A história por trás do objeto, a forma como é produzido, é prescindível para que ele faça sucesso no mercado?
Depende muito de que mercado estamos falando. Dentro do mercado de brinde corporativo, no qual a Tekoha atua com mais força, os clientes – empresas – tem um determinado orçamento disponível. Neste mercado, a história é bacana, mas não é decisiva na hora do cliente fazer uma compra ou não. Quanto mais valor ele conseguir agregar ao produto que cabe em seu orçamento, melhor. Se ele conseguir comprar um produto artesanal com história, mostrar que sua empresa é sustentável, que se importa com o mundo, é lógico que ele vai preferir. Mas tem que caber dentro da verba que ele dispõe.
No varejo, percebemos uma disposição maior em gastar mais dinheiro com produto com história, quando há uma herança por trás, mas tem limite, não é elástico.
Você havia dito que o grande objetivo da Tekoha não era o lucro, mas gerar uma transformação social. Depois de alguns anos de trabalho, vocês conseguiram de fato cumprir esse objetivo?
Sim. É lógico que sempre queremos mais. Às vezes, me perguntam: “Qual é a renda exata que a Tekoha gerou para os grupos?”. Não sei. Mas sei que quando crio um tipo de relacionamento diferente com essas pessoas, que não se limita a uma relação de fornecedor-comprador, já estou criando um novo modelo de trabalho, uma economia diferente, na qual essas pessoas estão incluídas, levando-se em consideração o que elas falam, trabalhando-se com transparência.
Percebo que estou criando algo novo quando uma artesã do Piauí liga para me dar parabéns no meu aniversário. Sinto que ela sabe que levo em consideração o que ela me diz, que ela faz parte da minha cadeia, do meu crescimento, e eu faço parte do crescimento dela. Já trabalhei na área de compras em outras empresas e não sabia quem era a pessoa com quem eu lidava. Esse tipo de relação diferenciada, ter carinho, conectar de fato essas realidades diferentes, é o princípio maior da Tekoha. Acho que isso nós, sim, conseguimos. Ainda não sei dizer quanto que as compras de produtos de comunidades geraram de impacto. Pretendemos saber direitinho quando a Tekoha tiver mais estrutura, quando tiver lucro que permita investir na mensuração disso. Mas já me sinto cumprindo um papel de criar um modelo diferente de comercializar e de se relacionar.
Como a Tekoha impactou na vida de vocês como empresários? É possível ganhar dinheiro promovendo melhorias sociais?
Sim, é possível. Como empresários da área social, não iremos acumular muito dinheiro; não teremos um bônus de um milhão de reais no final do ano vendendo artesanato. Inclusive, isso vai contra a nossa proposta. Seria paradoxal receber isso quando se está falando em geração de renda e diminuição de desigualdade social. Mas é possível viver com aquilo que ganhamos. Eu indico muito empreender.