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Artesãs na sede da Associação do Povoado de Mumbuca em abril de 2008. Foto: Carla Belas / Acervo CNFCP


ARTIGO

O CONSUMO DE BENS CULTURAIS E A SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIO IMATERIAL: O CASO DO CAPIM DOURADO DO JALAPÃO [1]

Publicado por A CASA em 8 de Dezembro de 2011
Por Carla Arouca Belas

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Carla Arouca Belas [2]
CPDA/UFRRJ
carla_belas@yahoo.com.br

Resumo

Nas sociedades modernas a crença no planejamento racional e no desenvolvimento científico, levou a negação da tradição e tudo o que ela representava. O trabalho manual, de produções em pequena escala, deu lugar ao trabalho manufaturado, de produção e consumo em massa. Tudo o que lembrasse o passado era sinônimo de atraso e deveria ser substituído pela visão de desenvolvimento e futuro.
A crise dessa primeira fase da modernidade possibilitou a redescoberta e a reabilitação do passado, revisitado na crescente onda de valorização dos saberes tradicionais e de consumo de produções da cultura popular. A Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial promulgada pela UNESCO em 2003 e o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial (PNPI) instituído pelo Ministério da Cultura do Brasil em 2000, constituem exemplos dessa conjuntura que têm por objetivo propiciar à salvaguarda de técnicas, práticas, saberes, modos de fazer, celebrações e inúmeras outras formas de expressões artísticas tradicionalmente passadas de geração a geração.
A valorização do patrimônio imaterial encontra-se ainda em consonância com o contexto pós-fordista de produção e consumo. Em contraposição aos padrões de consumo uniformes e globais, um número crescente de consumidores busca mercadorias diversificadas e pauta suas escolhas com base não no produto em si, mas no seu valor simbólico, se é ambientalmente correto, socialmente justo e/ou étnico/identitário.
O capim dourado constitui um exemplo de produção artesanal tradicional recentemente valorizada que alcança mercados dentro e fora do Brasil. Sua ampla aceitação levou o Governo do Estado do Tocantins a investir na disseminação desta técnica artesanal como alternativa de geração de renda para as populações da região do Jalapão. O resultado, no entanto, foi a massificação e a homogeneização da produção, além da ameaça de extinção do recurso natural. A fim de reverter esse quadro atualmente o governo local investe em estratégias de diferenciação e qualificação, que associam à titulação de patrimônio cultural a mecanismos de proteção do sistema de propriedade intelectual. O presente artigo se propõe a refletir sobre a relação entre consumo e salvaguarda de bens culturais, analisando o papel do Estado na regulação da interação entre detentores de bens culturais e o setor produtivo.

Palavras-chave: patrimônio imaterial, artesanato e consumo



Modernidade e a Invenção do Patrimônio

O termo modernidade foi originado no Renascimento, século XVI, para caracterizar um contexto de contraposição à ordem tradicional e crescente racionalização do mundo social. Contudo, é no século XVIII, influenciado pelos ideais do Iluminismo e pela necessidade dos Estados de produzir novos conhecimentos para subsidiar decisões políticas, que o projeto moderno encontra as condições ideais para se desenvolver (Hall, 2006).
Com a revitalização das universidades e a profissionalização das disciplinas, com destaque para as ciências sociais, inicia-se um esforço global para o avanço do conhecimento com base em descobertas empíricas. Pretendia-se “aprender” a “verdade” ao invés inventá-la ou intuí-la, rejeitando-se as especulações e as deduções filosóficas (Wallerstein,1996, p.28). Em prol da inventariação expedições científicas foram organizadas com o fim de identificar, catalogar e preservar bens culturais que hoje compõem o acervo dos grandes museus do mundo. O desenvolvimento de instrumentos de gravação de áudio e ao aprimoramento dos registros de imagens no final do século XIX permitiram a formação de arquivos de músicas, danças e cerimônias rituais de tradição oral. Segundo Hall (2006), no mesmo período na esfera política, sob a perspectiva do fortalecimento dos Estados, esses registros das culturas tradicionais assumem um papel fundamental no processo de construção das nações.
No Brasil a busca por uma identidade nacional contou com o apoio dos estudos dos folcloristas Sílvio Romero, Amadeu Amaral e Mário de Andrade. Em 1936, a pedido de Gustavo Capanema, então Ministro da Educação e Saúde, Mario de Andrade elabora o Anteprojeto de Proteção do Patrimônio Artístico Nacional, cujo texto serve de subsídio ao Decreto-Lei 25/37, que regulamenta a proteção do patrimônio cultural e cria o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), atual IPHAN. Embora tenha lhe servido de base, o Decreto pouco incorporou as contribuições de Mário de Andrade em relação ao patrimônio imaterial, restringindo-se principalmente a proteção ao patrimônio edificado, como explicita Falcão (2001):

“...a defesa de Mário de Andrade do patrimônio imaterial não granjeava o mesmo apoio político da classe média que o patrimônio material de pedra e cal obtinha de nossa elite. Era proposta restrita a um grupo de intelectuais avançados no tempo. Demanda de ninguém politicamente poderoso. Nem dos partidos de esquerda, nem dos de direita. Nem dos democratas, nem dos ditatoriais. A preservação da lenda ou da dança indígena não tinha a mesma legitimidade social de um altar barroco resplandecendo a ouro. Era quase uma extravagância intelectual. Ter razão antes do tempo, diz o ditado, é errado” (169-170p)
 
O texto de Falcão mostra a contradição do projeto modernista no que se refere à valorização da cultura popular. O que estava em pauta não eram o reconhecimento e a valorização da diversidade, mas ao contrário, a construção discursiva de uma memória nacional unificada a ser disseminada pelos meios de comunicação e pelo ensino formal. Como mostra Canclini (2003), a cultura popular era apropriada para legitimação de governos e, ao mesmo tempo, rejeitada pelos mesmos, uma vez que também representava a “superstição, a ignorância e a turbulência” que os ideais modernos pretendiam abolir. Tratava-se assim, como afirma citando Barbero, de uma “inclusão abstrata e exclusão concreta” (Barbero, 1987, apud Canclini, 2003, p.208).
No final do século XX, num contexto de forte crise das instituições modernas e insurgência de movimentos sociais, uma nova política de salvaguarda da cultura popular é então desenvolvida sob o título de patrimônio imaterial. O marco inicial dessa nova política no âmbito internacional foi o protesto de um grupo de países de grande sociodiversidade, liderados pela Bolívia, em relação ao conceito estrito de patrimônio contido na Convenção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (1972), que reconhece como patrimônio cultural apenas os bens móveis e imóveis, conjuntos arquitetônicos e sítios urbanos e naturais. Um movimento mundial em torno da valorização e da proteção das então chamadas “expressões populares de valor cultural” levou a realização de estudos e debates por parte da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco, que resultaram em inúmeras ações e documentos como: a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultural Tradicional e Popular (1989), a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (2003) e a Convenção Sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2005).
No Brasil a política de valorização e salvaguarda das expressões da cultura popular é implementada como referência aos artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988. Estes garantem a proteção às formas de expressão e aos modos de criar, fazer e viver dos grupos formadores da sociedade brasileira com destaque a expressões das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras[3]. Visando regulamentar tais dispositivos constitucionais e criar mecanismos que favoreçam a identificação e salvaguarda do patrimônio imaterial, em agosto de 2000 foi promulgado o Decreto 3551 que institui o Registro de Bens Culturais de Natureza

Imaterial e cria o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial, delegando ao IPHAN a responsabilidade pela implementação e acompanhamento das duas ações.
Entretanto, a atual política de patrimonialização, de forma diferenciada da política empreendida pelo Estado moderno no início do século XX, não apenas reconhece o valor de determinadas expressões culturais e a importância de preservá-las para as novas gerações, como se propõe a apoiar a inclusão política e econômica dos detentores de patrimônio imaterial, como argumenta Londres[4]:
 
“O grande desafio a partir do decreto n.3.551/00, para o Estado, em parceria com a sociedade, é dar continuidade à formulação e à implementação efetivas de políticas públicas para a cultura articuladas e de amplo alcance, que realmente beneficiem o cidadão. Atenção especial deverá ser dada àqueles grupos que, embora responsáveis pela criação e preservação de manifestações culturais vivas e admiráveis, - como os grupos indígenas, as comunidades ribeirinhas do sertão e das florestas, para citar apenas alguns casos, - raramente têm recebido o reconhecimento de toda a nação. Esse apoio, por outro lado, não pode ficar restrito ao âmbito do Ministério da Cultura, pois envolve questões complexas como a da preservação do meio ambiente, da propriedade intelectual, dos efeitos da comercialização e do turismo, entre outras. Fazer essa articulação, a partir de perspectivas diferentes e de objetivos comuns, é uma tarefa complexa em que cabe ao poder público especial responsabilidade. São desafios que só serão realmente enfrentados a partir de uma concepção sistêmica das políticas culturais, com a descentralização de ações, o estabelecimento de parcerias e, sobretudo, uma ampla abertura para a participação das comunidades” (Londres, 2000, apud Iphan, 2006, p.36)

A partir de uma perspectiva similar Lipovetsky (2004) afirma que o monumento histórico já não constitui um símbolo cuja conservação tem fim em si mesmo, sendo a cada dia mais necessário “justificar os encargos com ele em nome dos efeitos financeiros, do desenvolvimento turístico ou da imagem midiática das cidades e regiões” (Lipovetsky, 2004, p.87). Assim, seja o bem cultural de natureza material ou imaterial, mais do que simplesmente garantir a preservação da memória das tradições formadoras de uma identidade nacional, o que se quer hoje é reconhecer a existência de múltiplas identidades, e gerar a partir da patrimonialização perspectivas de inserção econômica, num imbricamento cada vez maior entre patrimônio e mercado.


Do consumo de massa ao consumo personalizado: mercantilização dos bens culturais

A produção e o consumo de massa constituíram o eixo de regime econômico de acumulação fordista e da política keynesiana do estado de bem estar social, que desenvolveram e expandiram a economia capitalista no âmbito internacional no período do pós-guerra até inícios da década de 70. Baseado em métodos de racionalização da atividade industrial - como a extrema especialização e rotinização do trabalho, produção seriada e em larga escala, e o controle de todos os insumos e etapas de produção - o fordismo[5] revolucionou a economia ao associar produção de massa a consumo de massa. Dessa forma, mais do que um novo sistema de organização e controle da produção e do trabalho, representou, segundo Harvey (1989), “uma nova estética e uma nova psicologia, em suma, um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada, modernista e populista” (p.121). O keynesianismo, através da forte intervenção estatal, garantiu as bases sociais e a infra-estrutura para a expansão do fordismo, construindo um equilíbrio tenso de poder entre o trabalho organizado, o grande capital corporativo e o Estado-nação. Harvey (1989) mostra que esse equilíbrio começa a desmoronar quando a capacidade de expansão do capitalismo se exaure gerando uma crise de consumo em meio a um crescente aumento no custo da produção. Na esfera social, política e cultural, novos movimentos sociais e contraculturais emergem de grupos excluídos das benesses do sistema fordista e de insatisfeitos com a estética funcionalista, a excessiva racionalização, a burocratização e a despersonificação do projeto moderno. De acordo com Hall (2006) esses movimentos constituíram o nascimento de um “sujeito fragmentado” e definido a partir de múltiplas identidades, conforme afirma:

Cada movimento apelava para a identidade social de seus sustentadores. Assim, o feminismo apelava às mulheres, a política sexual aos gays e lésbicas, as lutas raciais aos negros, o movimento antibelicista aos pacifistas, e assim por diante. Isso constitui o nascimento histórico do que veio a ser conhecido como a política de identidade – uma identidade para cada movimento. (Hall, 2006, p.45)

Para Harvey (1989) a conjuntura que levou a crise do fordismo na esfera econômica e do keynesianismo na esfera política poderia ser resumida numa única palavra, rigidez: rigidez dos investimentos de capital fixo de larga escala e de longo prazo em sistemas de produção em massa; rigidez de planejamento que dificultava alterações em função de possíveis variações do mercado consumidor; rigidez na alocação e nos contratos de trabalho; e rigidez dos compromissos do Estado em manter e ampliar os gastos públicos com programas de assistência para atender a uma crescente demanda social num momento em que receitas fiscais se reduziam... (p.136). Como tentativa de enfrentamento da crise as empresas passaram por um período de racionalização, reestruturação e intensificação do controle do trabalho. Foram realizadas mudanças tecnológicas, busca de novas linhas de produtos e nichos de mercado, a dispersão geográfica para zonas de maior facilidade no controle do trabalho e fusões e medidas para acelerar o tempo de giro do capital. Ações que no plano social e econômico resultaram: na flexibilização dos mercados de trabalho gerando níveis relativamente altos de desemprego “estrutural”; flexibilização na organização industrial com oportunidades para a formação de pequenos negócios e sistemas mais antigos de trabalho doméstico, familiar e artesanal; flexibilização dos produtos e padrões de consumo, com a substituição das economias de escopo por economias de escala e redução do tempo de giro dos produtos e do consumo; flexibilização do conceito de tempo e espaço com a compressão de distâncias e escalas temporais.
Essa oposição entre produção em massa e especialização flexível, enfatizada por Harvey (1989) é firmemente criticada por Kumar (1997), para quem “... a ‘crise do fordismo’ e sua transformação em formas pós-fordistas são, na verdade, partes de uma evolução contínua” ou uma revolução permanente. Assim, segundo este autor, muito longe de dar origem à ‘inflexibilidade’, os princípios do fordismo se aplicaram a ‘uma faixa extraordinariamente vasta de contextos técnicos’, “abrindo caminho para o dinamismo tecnológico constante e a adaptabilidade máxima dos métodos de produção... apresentado sob diversas roupagens tecnológicas e organizacionais” (p.72).
Giddens (1991) também enfatiza o caráter dinâmico e globalizante das instituições modernas. Em concordância, Hall (2006) afirmar que uma das principais distinções entre as sociedades ‘tradicionais’ e as ‘modernas’ é a perspectiva de mudança constante, rápida e permanente e a capacidade altamente reflexiva destas. Mostra assim, que globalização não é algo recente, contudo desde a década de 70 a integração global tem aumentado o seu ritmo e o alcance, resultando na “aceleração dos fluxos e laços entre as nações” (Hall, 2006, p.68).
Para Canclini (2003) a conjuntura atual não deve ser vista como uma etapa ou tendência que substituiria o mundo moderno, mas como uma maneira de “problematizar os vínculos equívocos que ele armou com as tradições que quis excluir ou superar para constituir-se”(2003;28p.). Lipovetsky (2004), por sua vez, não apenas enfatiza a continuidade, como defende que nos encontramos num estágio de radicalização dos preceitos modernos, a hipermodernidade. De acordo com Lipovetsky (2004) o mérito da pós-modernidade encontra-se no aprofundamento da reflexão crítica por meio da difusão da ideia de que na década de 70 estávamos diante de uma sociedade mais diversa, mais facultativa e com menos expectativas em relação ao futuro. Passado esse período viveríamos agora a exacerbação dos preceitos modernos como: o mercado, a eficiência técnica e o indivíduo. Para Lipovetsky “Trata-se não mais de sair do mundo da tradição para aceder á racionalidade moderna, e sim de modernizar a própria modernidade, racionalizar a racionalização – ou seja, na realidade destruir os ‘arcaísmos’ e as rotinas burocráticas, pôr fim à rigidez institucional e aos entraves protecionistas, recolar, privatizar, estimular a concorrência” (2004, p.57).
De acordo com Lipovetsky os grandes princípios estruturantes da modernidade continuariam os mesmos embora mais fluidos e flexíveis como forma de se adaptarem ao ritmo hipermoderno. Para além de uma sociedade de opostos ou de rupturas, o contexto atual desvendaria uma sociedade de paradoxos, onde a tradição é incorporada a lógica de mercado. Como afirma Lipovetsky, numa sociedade paradoxal “Os indivíduos hipermodernos são ao mesmo tempo mais informados e mais desestruturados, mais adultos e mais instáveis, menos ideológicos e mais tributários da moda, mais abertos e mais influenciáveis, mais críticos e mais superficiais, mais céticos e menos profundos” (2004, p.27-28). Nessa perspectiva elementos pré-modernos são constantemente reciclados no sentido de se constituírem em argumentos comerciais e ferramentas mercadológicas - centros históricos são revitalizados; prédios antigos são transformados em centros culturais, hotéis e/ou lojas comerciais; antigas fábricas têm seus espaços remodelados para abrigar shoppings centers; músicas e danças tradicionais ganham os espaços dos palcos e o artesanato as galerias de arte. Expressões culturais tradicionais são usadas também como forma de afirmação de identidades, não de uma identidade única forjada pelo Estado-nação, mas de uma diversidade de identidades associadas a movimentos de reconhecimento dos direitos sociais de minorias étnicas.
José Jorge de Carvalho (2004) usa o termo “sincronização perversa” para caracterizar esse contexto no qual uma conjuntura de resistência cultural coincide com o crescente interesse da indústria cultural pelo exótico. Afirma que “no momento em que o pesquisador discursa academicamente sobre uma determinada tradição musical, aponta de forma indireta para seu potencial uso como fonte de entretenimento”. Assim, de forma diferenciada da pesquisa etnográfica do início do século XX, que se resumia em identificar, catalogar e disponibilizar informações para as gerações futuras, sem qualquer justificativa financeira, o pesquisador etnográfico atualmente se vê envolvido em dilemas sociais, políticos e econômicos da comunidade. Com o fim de conseguir benefícios monetários e, assim, reparar
injustiças sociais, ele se torna cada vez mais “mediador da mercantilização da arte dos pesquisados” (Carvalho, 2004, p.68).
A relativização do determinismo e do evolucionismo da primeira fase da modernidade permite lançar um outro olhar, com novas possibilidades de interações, para o que antes constituía uma separação clara entre o culto, o popular e o massivo. Hall (2006) afirma que pode ser “tentador pensar na identidade, na era da globalização, como estando destinada a acabar num lugar ou noutro: retomando as suas ‘raízes’ ou desaparecendo através da assimilação e da homogeneização”. No entanto, para ele, este constitui um falso dilema, e utiliza o termo “tradução” para definir a situação de determinados grupos que embora tenham fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições já não pretendem um retorno ao passado, mas assumem de forma definitiva a condição de híbridos. Na mesma linha Canclini (2003) afirma que é necessário preocupar-se menos com o que se extingue na cultura popular, e mais com o que se é transformado, afirmando que “nunca houve tantos artesãos, nem músicos populares, nem semelhante difusão do folclore, porque seus produtos têm funções tradicionais (dar trabalho aos indígenas e camponeses) e desenvolvem outras modernas: atraem turistas e consumidores urbanos que encontram nos bens folclóricos signos de distinção, referências personalizadas que os bens industriais não oferecem” (p.22).
Embora o contexto atual possibilite uma revitalização das tradições locais a partir dos movimentos de identidades e patrimonialização dos bens culturais é importante não perder de vista que a relação dos grupos locais com o mercado não é de forma alguma igualitária. Diferentes perspectivas, acessos a informações e a capacitações interferem nos resultados das negociações, que claramente tendem a ser mais favoráveis as instituições que representam o mercado. Nesse sentido, a atuação do Estado enquanto mediador das relações entre produtores culturais tradicionais e os agentes econômicos aparece cada dia mais como fundamental.

O Estado e a salvaguarda de bens culturais

O colapso da política keynesiana leva os países desenvolvidos a formularem a teoria do “Estado Mínimo” como forma de sanar os problemas de crise fiscal. O consenso neoliberal, Consenso de Washington, atrela o apoio financeiro das agências multilaterais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, ao cumprimento por parte dos países de recomendações referentes à redução da regulação estatal das economias nacionais e ao reconhecimento de direitos de propriedade intelectual e de direitos de investidores estrangeiros. O combate a inflação passa a constituir a preocupação central, em nome do que justificam-se a redução de gastos com salários e benefícios sociais com desastrosas consequências no plano social como descreve Santos (2005):

“A economia é, assim, dessocializada, o conceito de consumidor substitui o de cidadão e o critério de inclusão deixa de ser o direito para passar a ser a solvência. Os pobres são os insolventes... Em relação a eles devem adoptar-se medidas de luta contra a pobreza, de preferência medidas compensatórias que minorem, mas não eliminem a exclusão, já que esta é um efeito inegável do desenvolvimento assente no crescimento econômico e na competitividade a nível global. Este consenso neoliberal entre os países centrais é imposto aos países periféricos e semiperiféricos através do controle da dívida externa efectuado pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial. Daí que estas duas instituições sejam consideradas responsáveis pela ‘globalização da pobreza’. A nova pobreza globalizada não resulta de falta de recursos humanos ou materiais, mas tão só do desemprego, da destruição das economias de subsistência e da minimização dos custos salariais à escala mundial” (Santos, 2005, p.35)

A ideia de supressão da intervenção estatal não é recente. Polanyi (2000) mostra que a proposta de um mercado auto-regulável encontrava-se na base do colapso econômico da civilização do século XIX. Argumenta, tomando como exemplo as consequências da Revolução Industrial em prejuízo ao meio ambiente e a saúde dos trabalhadores, que a ideia de um mercado auto-regulável é uma utopia e que “tal instituição não poderia existir em qualquer tempo sem aniquilar a substância humana e natural da sociedade; ela teria destruído fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto.” (Polanyi, 2000, p.18).
Entendemos que a ficção que, segundo este autor, naquele período transformou o trabalho, a terra e o dinheiro em mercadoria, ainda hoje abre caminho para a mercantilização de outros elementos essencialmente culturais, gerando impactos nas produções tradicionais relativos tanto a exaustão de recursos naturais quanto a desintegração de ambientes culturais por meio da descontextualização e perda de sentido de determinadas expressões artísticas, a padronização e limites a criatividade no caso do artesanato.
De acordo com Polanyi (2000), foi apenas com o surgimento de um contramovimento espontâneo de proteção social visando à preservação do homem, da natureza e da organização produtiva na segunda metade do século XIX que se conseguiu enfrentar a ação do mercado em relação aos fatores de produção (trabalho, terra e dinheiro) e, dessa forma, evitar o risco “da sociedade humana se tornar um acessório do sistema econômico”. O autor argumenta que a não intervenção do Estado constituía o grande mito do século XIX, pois ao invés de diminuir o Estado aumentou e incrementou o seu alcance. Como exemplo cita as manufaturas de algodão, indústrias mais importantes do livre comércio, que foram criadas e se mantinham com a ação de “tarifas protetoras, de exportações subvencionadas e de subsídios indiretos dos salários”. Além deste, o governo financiava a coletas de informações estatísticas e patrocinava as ciências e as experiências que serviram ao desenvolvimento industrial. Nesse sentido, segundo o autor, o laissez-faire não possuía nada de natural ou autossuficiente, era produto de uma ação deliberada do estado, que mantinha aberto o caminho para o mercado livre por meio do “incremento de um intervencionismo, controlado e organizado de forma centralizada”.
Embora os críticos de Polanyi apontem que seus argumentos são um tanto quanto deterministas, pois a relação com o mercado envolveria múltiplos interesses e contextos sociais diversos que podem não necessariamente levar a degradação dos ambientes culturais e, por conseguinte, ao desaparecimento das culturas tradicionais. No entanto, não se pode negar que se trata de relações desiguais de poder envolvendo conflitos das mais diversas ordens entre comerciantes, usuários e produtores de bens culturais de âmbito local e global. A questão é como encontrar um meio sustentável de preservar e incentivar a diversidade cultural mantendo certo equilíbrio na correlação de forças entre: as populações tradicionais portadoras de saberes e práticas culturais; os agentes da economia de rede global interessados em transformar bens culturais em bens de consumo; e os consumidores que cada vez mais valorizam produtos com componentes étnicos e/ou ecológicos e o acesso pago a experiências culturais. E, mais, como conciliar a tendência capitalista de expansão do mercado a partir do aumento do consumo com a tendência de valorização de produções específicas patrimonializáveis?
Polanyi (2006) nos apresenta um conceito de mercado baseado na indissociabilidade entre economia e dinâmica cultural, onde o Estado tem um papel fundamental de regulamentação e incentivos sem os quais não seria possível o desenvolvimento da economia. O problema está quando o Estado age apenas nas etapas de incentivo e patrocínio do desenvolvimento do setor produtivo se esquivando do papel de mediação dos interesses das parcerias estabelecidas.

Capim dourado do Jalapão: contradições entre salvaguarda e consumo

A expansão da produção artesanal do capim dourado do Jalapão foi resultado direto do incentivo do governo do Estado do Tocantins que buscava uma alternativa de geração de renda para população local. O Estado do Tocantins é recente, foi criado a partir da divisão do estado de Goiás pela Constituição de 1988, constituindo-se assim no mais novo Estado da Federação. A região do Jalapão, localizada ao leste do Estado do Tocantins, constitui um território de 53,3 mil Km2, onde se localiza a maior área contínua de cerrado do Brasil. É protegida por meio de três Unidades de Conservação de Proteção Integral (Parque Estadual do Jalapão, Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins e Parque Nacional das Nascentes do Parnaíba) e duas Áreas de Proteção Ambiental (APA Jalapão e APA Serra da Tabatinga). Trata-se, portanto, de uma área de grande potencial ecoturístico, envolvendo extensas dimensões de terras pouco habitadas, com populações que vivem em localizações isoladas em pequenos povoados e outras concentradas nas sedes de 15 municípios no estado do Tocantins: Barra de Ouro, Campos Lindos, Centenário, Goiatins, Itacajá, Itapiratins, Lagoa do Tocantins, Lizarda, Mateiros, Novo Acordo, Ponte Alta de Tocantins, Recursolândia, Rio Sono, Santa Tereza de Tocantins e São Félix do Tocantins (SEPLAN, 2003). A economia local concentra-se no setor primário, destacando-se a pecuária e a agricultura de práticas tradicionais extensivas. Praticamente não há indústria e, em grande parte dos municípios, o comércio é bastante incipiente. Apenas recentemente o turismo começa a despontar como alternativa de atividade econômica, principalmente no município de Mateiros, que embora concentre a maior parte dos atrativos turísticos da região, ainda possui um dos menores IDHs do Estado[6].
A produção do artesanato com capim dourado é atualmente realizada na maioria dos municípios do Jalapão, sendo uma das principais fontes de renda para as populações locais. Neste artigo trataremos especialmente da produção artesanal do município de Mateiros, principalmente da sede deste município e do povoado de Mumbuca, considerado, de acordo com relatos orais, o núcleo inicial da produção artesanal com capim dourado. Aprendida por meio da interação com o povo indígena xerente, esta produção artesanal ficou restrita a Mumbuca e a Mateiros por um período de mais ou menos 80 anos. Sua expansão para os outros municípios da região foi recente, ocorreu a cerca de 10 anos, quando com a criação do Estado do Tocantins a partir da aposta do governo local nesta atividade artesanal como política de incentivo a geração de renda. (Belas, 2007)
Nesse sentido, no ano de 2000, com o financiamento da Fundação Cultural do Estado e apoio do SEBRAE-TO foi promovida uma série de ações, dentre as quais, o apoio a criação de associações de artesãos e a oferta de cursos de produção e design de peças. Essas ações, por um lado, abriram novas perspectivas de mercado aos núcleos iniciais de produção (Mumbuca e sede de Mateiros) indicando um novo designe para peças tradicionais e novos produtos de maior aceitação por consumidores dos grandes centros como: mandalas, sousplats, bolsas e fruteiras. Por outro lado, levou ao aumento da concorrência pelo crescimento do número de artesãos e a homogeneização da produção.

Em comparação com as vendas nos núcleos de produção tradicionais (sede de Mateiros e Mumbuca) as ações de difusão da técnica artesanal acabaram favorecendo muito mais o comércio nos núcleos de produção recentes, como o município de Ponte Alta, que possui melhores vias de acesso e infra-estrutura como hotéis, correios, bancos e internet fundamentais enquanto suporte a atividade comercial.
Além da saturação do mercado a expansão da produção artesanal ocasionou impacto negativo sobre o recurso natural. O aumento na demanda por matéria-prima, tanto do capim dourado quanto do olho do buriti, que fornece a linha para a costura das peças, incentivou a atividade de coleta em grande escala por coletores ocasionais interessados em vender a matéria prima para artesãos de outras localidades do estado e do país (Belas, 2007). A retirada indiscriminada levou a Naturantins, órgão ambiental do estado, instituição responsável pela administração do Parque Estadual do Jalapão, a instituir a Portaria Naturatins Nº. 362 de 25 de maio de 2007, com a finalidade de regulamentar a atividade de coleta e evitar a comercialização do capim in natura.
Recentemente sob o risco de extinção dos recursos naturais e com a desvalorização da atividade artesanal em função da massificação da produção, o governo local tem realizado novas intervenções, agora não mais sobre a perspectiva da difusão, mas da singularização. Num movimento oposto ao da “obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”, onde a diferenciação entre copia e original perde o sentido no contexto de modernidade (Benjamin 1994), o que se busca agora é a reabilitação da ‘áurea’ por meio da indicação de ‘autenticidade’. As iniciativas do governo local uniram-se diversas outras de atores os mais variados – organizações não governamentais, universidade, instituições do governo federal e associações dos detentores de bens culturais - com o intuito de aumentar o valor da produção artesanal do capim dourado no mercado, propiciar melhor regulação do acesso à matéria-prima e atender a reivindicações de direitos intelectuais sobre saberes tradicionais. Destaco cinco ações como as mais significativas desse novo contexto: primeiro, o estabelecimento de parcerias entre as associações de artesãos de Mumbuca e de Mateiros com instituições de pesquisa e órgãos ambientais para a concessão de certificação pelo manejo dos recursos naturais; segundo o reconhecimento do povoado de Mumbuca como comunidade remanescente de ex-escravos por parte da Fundação Palmares; terceiro, a parceria da Fundação Cultural do Tocantins com o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP) a fim de promover um espaço de comercialização diferenciado e permanente no Rio de Janeiro; quarto, a realização do Inventário Cultural da Produção Artesanal com Capim Dourado de Mumbuca a partir da perspectiva de patrimonialização; e, por fim, a solicitação da indicação geográfica Jalapão para a produção artesanal do capim dourado.
Em 2001, a associação Capim Dourado do Povoado de Mumbuca solicitou ao Ibama que desenvolvesse pesquisas sobre o manejo e a conservação do capim dourado (syngonanthus nitens) e do buriti (mauritia flexuosa). A motivação inicial para essa solicitação foi a proibição por parte da Naturatins da realização da queima do capim dentro e no entorno da Unidade de Conservação Ambiental. A queima é uma técnica tradicional de manejo dos artesãos locais que a utilizam com o intuito de melhorar a coleta do capim no ano seguinte. Queriam, com as pesquisas, comprovar que a técnica era feita de modo controlado e não representava danos ao meio ambiente local. As pesquisas foram iniciadas em 2002 e contaram com a parceria da ONG PEQUI (Pesquisa e Conservação do Cerrado), Embrapa/Cenargem, Universidade de Brasília e o Programa de Pequenos Projetos (PPP/GEF/PNUD), além da própria Naturatins. Como resultado desse trabalho foi desenvolvida uma cartilha para auxiliar os artesãos no manejo dos recursos naturais e formuladas etiquetas de certificação visando a diferenciação e agregação de valor no mercado das peças dos artesãos que cumpriam com as especificações ambientais. As etiquetas são padronizadas e contêm informações específicas sobre o endereço e telefone das associações dos artesãos e informações gerais relacionadas à sustentabilidade ecológica, à responsabilidade social do produto e à identificação do local de produção (Jalapão – TO – Brasil).
 
Em 2006 a Fundação Palmares reconheceu a comunidade de Mumbuca como remanescente quilombola. Como não partiu de uma demanda local, a ideia de se tornar uma comunidade quilombola, segundo relatos dos próprios moradores, não era a princípio bem vista no povoado. A percepção foi mudando aos poucos, a medida que aumentou-se a compreensão dos benefícios que poderiam advir da titulação. Principalmente, a garantia ao direito às terras que tradicionalmente ocupam, tendo em vista a ameaça de serem remanejados em função do povoado encontrar-se dentro do perímetro do Parque Estadual do Jalapão, que por tratar-se de uma unidade de proteção integral não pode manter comunidades no seu interior (Belas, 2007).
A parceria entre a Fundação Cultural do Estado do Tocantins e o CNFCP ocorreu em 2008 por meio do projeto Sala do Artista Popular (SAP), que agrega valor a produções artesanais de todo o país a partir da produção de um catálogo etnográfico e da organização de exposição com venda de peças artesanais no Museu do Folclore Edson Carneiro no Rio de Janeiro. O projeto Sala do Artista Popular é desenvolvido com o intuito de favorecer a autonomia dos artesãos, dando visibilidade e propiciando a inserção de seus produtos num mercado qualificado de artesanato.

A Fundação Cultural do Tocantins também realizou a inventariação da produção artesanal de capim dourado no povoado de Mumbuca. Ações de inventário e registro a partir da política de patrimônio imaterial implementada pelo IPHAN têm permitido a promoção do patrimônio cultural imaterial junto à sociedade, a orientação para ações de apoio e fomento a bens culturais em situação de risco, o tratamento e o acesso público às informações produzidas.
A ideia da solicitação de uma indicação geográfica para diferenciar a produção artesanal do Jalapão partiu do governo do estado, que apoiou os artesãos locais na reunião da documentação encaminhada ao INPI em 2008. As Indicações Geográficas são definidas no artigo 22 do Acordo de Propriedade Intelectual Relativo ao Comércio (ADPIC) como “indicações que identifiquem um produto como originário do território de um Membro, ou região ou localidade deste território, quando determinada qualidade, reputação ou outra característica do produto seja essencialmente atribuída à sua origem geográfica”.
De uma forma mais específica, a legislação brasileira de propriedade industrial, lei no9279/96, defini dois tipos de Indicações Geográficas, a Indicação de Procedência e a Denominação de Origem, as associando não apenas a identificação de produtos como também de serviços. De acordo com essa legislação a Indicação de Procedência designa o “nome geográfico de um país, cidade, região ou uma localidade de seu território, que se tornou conhecido como centro de produção, fabricação ou extração de determinado produto ou prestação de determinado serviço” (art. 177); enquanto a Denominação de Origem designa produtos ou serviços não apenas associados a uma determinada região, mas cujas “qualidades ou características se devam exclusiva ou essencialmente ao meio geográfico, incluídos fatores naturais e humanos” (art. 178).
A valorização de fatores humanos em associação ao meio ambiente de um dado território e, ainda, a possibilidade de garantir direitos coletivos, torna as Indicações Geográficas um potencial instrumento para agregar valor a produtos de comunidades tradicionais. Dentre as vantagens em se utilizar esse mecanismo de proteção esta: a redução de atos de apropriação indevida e concorrência desleal; a preservação de recursos naturais e saberes tradicionais; o favorecimento ao desenvolvimento local; e o aumento no valor de mercado dos produtos.
No entanto, o que acreditamos ser importante destacar é que todas essas iniciativas, desenham um contexto demandante de crescente protagonismo dos detentores de bens culturais. Para além do simples papel de beneficiários de políticas sociais ou vítimas da apropriação de mercado, eles encontram-se progressivamente imersos em arranjos de negociações de interesses das mais diversas instituições que compõem redes sociais de alcance cada vez mais amplo. O que exige dos mesmos capacidade de aprendizado e inovação a fim de estabelecer parcerias que auxiliem a adequação da própria produção aos padrões estéticos, funcionais e simbólicos do consumo moderno sem, ao mesmo tempo, perder de vista os valores, saberes e práticas tradicionais que conferem a especificidade e a identidade do produto. Trata-se de um processo constante de apreensão e reinvenção do significado cultural, econômico e político da própria produção artesanal.

Considerações finais

As ideologias modernizadoras que apostavam no fim das formas de produção, crenças e bens tradicionais são substituídas por um novo contexto firmado numa relação complexa entre o moderno e o tradicional. Neste contexto como aponta Kumar (1997) “o cultivo de diferenças locais, a celebração da etnicidade, o estímulo à preferência do consumidor por uma grande variedade de objetos e experiências culturais ‘autênticos’, exóticos” não são contraditórios aos interesses de mercado, uma vez que o regime de acumulação flexível impõe uma constante reformulação de signos de distinção que o consumo massificado desgasta.
A relação entre patrimônio e mercado encontra-se hoje mediada tanto pela lógica da difusão em massa, ampliar o mercado e o consumo de bens para aumentar a margem de lucro ou gerar renda e emprego, quanto da singularização, com a recriação de signos de distinção social. A valorização comercial da produção étnica/tradicional e as atuais políticas de patrimonialização são tão apropriadas pelo mercado quanto o são pelo Estado e pelos próprios detentores de bens culturais. A questão atual está em como garantir as condições de protagonismo dos detentores de bens culturais, a fim de que sejam capazes de negociar de forma mais equitativa e decidir sobre o modo como e quanto desejam interagir com o mercado.

Notas:

[1]Esse artigo foi apresentado no IV ENEC - Encontro Nacional de Estudos do Consumo: Novos Rumos da Sociedade de Consumo? 24, 25 e 26 de setembro de 2008 - Rio de Janeiro/RJ. Sendo atualizado para esta nova publicação.

[2] Doutoranda do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da UFRRJ (CPDA).

[3] O art.216 expressa que o patrimônio cultural do país é integrado tanto pelo patrimônio material (obras, documentos, edificações e sítios de valor artístico, histórico ou arqueológico) quanto pelo patrimônio imaterial (celebrações, expressões culturais e técnicas artesanais). Prevendo no §1º. a realização de inventários, registros, vigilância e tombamento como formas de proteção.

[4] Londres, Cecília. Referências Culturais: Base para Novas Políticas de Patrimônio. In: Manual de Publicação do Departamento de Documentação e Indentificação. MinC/Iphan, Brasília, 2000.

[5] Harvey (1989) afirma que a data simbólica de início do fordismo foi o ano de 1914, quando o industrial norte-americano Henry Ford introduziu com base nos princípios da administração científica (Taylorismo) o dia de oito horas e cinco dólares como recompensa para trabalhadores da linha automática de montagem de carros.

[6] 0,448 de acordo com o Atlas de Desenvolvimento Humano.

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