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A CASA E O MUNDO














ARTIGO

AS CASAS NA ORGANIZAÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO BORORO

Publicado por A CASA em 16 de Fevereiro de 2012
Por Sylvia Caiuby Novaes

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ALDEIAS

A sociedade Bororo conta atualmente com uma população de 628 indivíduos, divididos em sete aldeias localizadas em várias áreas (que já não constituem um território único e continuo) no Estado de Mato Grosso do Sul. Estão situadas no vale do Rio São Lourenço, tendo como limite ao norte o Rio das Mortes e, ao sul, o Rio Pequiri. Para que se tenha uma idéia da expressão desta sociedade no passado, basta dizer que as áreas ocupadas atualmente pelos Bororo correspondem a 0,1 % do seu território tradicional de ocupação.

Em termos ecológicos, as aldeias Bororo estão geograficamente assentadas em áreas de cerrado, excetuando-se a aldeia do Tadarimana, localizada numa área onde 60% é floresta, e a aldeia do Perigara, situada no complexo do Pantanal.

As sete aldeias que constituem a sociedade Bororo: Perigara, Córreqo Grande, Tadarimana, Sangradouro, Meruri, Garças e Jarudori são praticamente autônomas do ponto de vista político, econômico e ritual. As relações entre elas se estabelecem, atualmente, através das inúmeras visitas que são feitas entre membros das várias aldeias (visitas que podem durar até seis meses), dos casamentos e das relações de parentesco.

As aldeias Bororo são tradicionalmente circulares. Um número variável de casas se dispõe ao redor de um círculo com um diâmetro de aproximadamente 100 metros (EB I, p. 434), que tem no centro a casa dos homens (baimana gejewu) e o pátio (bororo). Como em várias aldeias do grupo lingüístico Gê, - Kraho, Xikrin, Xavante, etc. - a periferia constituída pejas casas corresponde à esfera doméstica e feminina da sociedade Bororo, ao passo que o baimana gejewu e o bororo correspondem à esfera jurídica, política e ritual desta sociedade que, embora ocasionalmente freqüentados pelas mulheres, caracteriza-se por ser uma esfera tipicamente masculina.

O que diferencia os Bororo de outros grupos indígenas é o fato de que as unidades fundamentais da organização social desta sociedade se inscrevem na própria morfologia da aldeia, no espaço ocupado por cada casa na sua disposição relativa ao redor do círculo.

A aldeia circular, constituída de casas que mantêm, não apenas a mesma distância entre si, mas também a mesma distância do centro da aldeia (da esfera política e jurídica) denota claramente que esta é uma sociedade igualitária e que os diversos grupos que a compõem (clãs, grupos domésticos, linhagens) mantêm entre si uma relação de complementaridade nas suas diferenças, e não uma relação do tipo dominação/subordinação, tal como ocorre entre nós (relação que também pode ser apreendida através da disposição das casas em qualquer uma das nossas grandes cidades).

Os Bororo têm sempre como referência um modelo de aldeia que é circular e é através deste modelo que eles representam a sua sociedade e o seu universo. Atualmente, embora a aldeia circular continue sendo o modelo a ser atingido, poucas são as que apresentam esta forma. Na aldeia do Periqara, as casas estão espalhadas pela área. Na aldeia do Tadarimana, as casas se dispõem ao longo do córrego que lhe dá o nome. Em Jarudori, a população que resiste aos avanços da cidade sobre suas terras mora em cinco casas de palha, alinhadas ao pé de um morro. Das aldeias Bororo, Córrego Grande, situada a cerca de 100 km da cidade de Rondonópolis, é a única que sempre manteve uma forma circular na disposição das casas.

A Reserva Indígena Meruri, que contava nos anos 1980 com cerca de trezentos indivíduos, está há oitenta anos sob a interferência dos missionários salesianos. Ai a luta pela terra levou aos episódios que culminaram, em 1975, com a morte do índio Bororo Simão e do missionário salesiano Rodolfo Lunkenbein. Por esta época, vários indivíduos da aldeia do Meruri (principalmente aqueles vindos da antiga aldeia do Paraíso) resolveram estabelecer uma nova aldeia, mais afastada da missão, onde poderiam viver sem a interferência direta dos salesianos. Esta nova aldeia - a aldeia do Garças - visava também a ocupação um território que se via constantemente ameaçado por posseiros e fazendeiros. Esta atitude dos Bororo, de defesa de suas terras e de garantia de seus direitos é, coerentemente, acompanhada pela retomada da forma circular das aldeias. Se no Meruri eles moravam em casas de alvenaria alinhadas em duas ruas, de modo a formar um ele, na aldeia do Garças todas as casas são de palha, e estão dispostas num círculo, tal como no modelo tradicional.

Se o contacto com a sociedade envolvente forçou uma modificação na disposição das casas (funcionários da FUNAI construíram as novas aldeias, não levando em conta a disposição circular, os missionários tentaram interferir na organização social Bororo, introduzindo a aldeia em ele) não chegou, no entanto, a alterar a forma pela qual os Bororo concebem a sua sociedade e a relação entre seus membros. É por isso que a forma circular continua sendo o modelo utilizado para expressar o modo pelo qual eles se representam. Mesmo quando situados em aldeias com casas dispostas em ruas, eles apontavam para as casas como se elas estivessem dispostas em círculo, descrevendo deste modo as relações sociais entre seus moradores.

As aldeias reproduzem o modelo ideal de organização social Bororo. Cada casa está associada a uma linhagem. Em termos de descendência, os Bororo são matrilineares, ou seja, uma criança, ao nascer, será identificada ao grupo de parentes de sua mãe - comumente denominado clã. O clã, por sua vez, divide-se internamente em três sob-clãs, cada um deles contendo um número variável de linhagens. Sabe-se que um indivíduo pertence a tal ou qual linhagem pelo nome que ele tiver recebido na cerimônia de nominação, realizada logo após o seu nascimento.

Estas linhagens ou títulos são a expressão atual de heróis que em tempos míticos estabeleceram as bases da organização social Bororo, foram protagonistas de façanhas prodigiosas e criaram uma série de estilos ou modos de ser Bororo. "Os nomes e títulos representam modos variáveis, no tempo e no espaço, de ser a mesma coisa ... " (Viertler. 1978;345). Praticamente todos os homens Bororo podem enumerar a ordem de distribuição destes títulos ao redor da aldeia.

O sistema de parentesco Bororo e as genealogias são pensados em termos de uma maior ou menor proximidade do título de um Bororo com o de outrem, e esta proximidade é medida em termos das posições dos títulos dentro do modelo circular da aldeia, pois a distribuição dos lugares dos títulos é fixa, apresentando pouca variação no tempo e no espaço. (Viertler, 1978:63).

A circularidade é algo extremamente presente no cotidiano da vida Bororo. É com um movimento circular do braço estendido que eles apontam para o céu, indicando, através da posição do sol, ou da estrela Vênus, a hora do dia a que querem se referir. A própria cartografia Bororo concebe o território desta sociedade tendo como limites vários acidentes geográficos que se dispõem de modo a formar um grande círculo. No canto Baroqo Biri Bataru Dada, que registrei em 1975, os pontos geográficos do território Bororo são enumerados pelo cantador, que vai indicando com o braço estendido a sua localização, começando pelo Rio São Lourenço, indo gradativamente enumerando outros lugares conhecidos, até o ponto em que o sol nasce, continuando a enumerá-los até o local do sol poente, quando o cantador terá completado o círculo em volta de si mesmo, e terminado o canto. Outras formas de expressão da circularidade, como bem aponta Viertler (1978:63), são as coreografias das danças funerárias, a roda da cerimônia do marido (buriti), a forma descrita pelos zunidores agitados no ar e as táticas de guerra, que envolvem círculos concêntricos em volta do inimigo.

Em suma, é muito significativo que os Bororo continuem tendo em mente um modelo de aldeia circular para representar a sua sociedade, mesmo quando moram em aldeias onde as casas estão dispostas de uma outra forma. Os Bororo se mantêm, até hoje, como uma sociedade igualitária, dividida internamente em segmentos que não se opõem numa perspectiva vertical, mas em clãs e linhagens, cujas diferenças implicam numa relação de complementaridade.

Creio que este aspecto se constitui num importante fator de resistência da sociedade Bororo como um todo às mudanças e transformações impostas pelo contato com a sociedade nacional. E se este contato impõe uma alteração na forma tradicional de disposição das casas, o modelo ideal de aldeia, que rege as relações entre os indivíduos e que permite uma representação desta sociedade, continua a ser a aldeia circular.

ASPECTOS DA ARQUITETURA DA CASA SORORO

As casas tradicionais Bororo são extremamente simples do ponto de vista arquitetônico. São casas de palha, com cobertura de duas águas que não chegam até o solo e que são constituídas de um único cômodo, sem divisões internas.

Atualmente, os Bororo moram em casas construídas de diferentes tipos de materiais; são casas de alvenaria (aldeia do Meruri, próxima à missão), de pau-a-pique (algumas das casas da aldeia do Tadarimana), de madeira (casas da aldeia do Perigara). Mas as casas mais comuns continuam sendo as de palha (Córrego Grande, várias das casas do Perigara, as recém-construídas no Meruri e no Tadarimana, todas as de Jarudori e da aldeia do Garças). As de palha, constituídas de um único cômodo, têm as paredes feitas de uma espécie de esteira, trançada pelas mulheres da casa.

Além disso, embora varie o número de indivíduos que convive numa mesma casa (um mínimo de dois e um máximo de dezoito, como pude constatar nas diversas vezes que estive em campo), todas elas têm, em geral, uma área de 45 metros quadrados.

As casas de palha, com chão de terra batida, continuam a ser as mais adequadas para o clima local. Nas horas mais quentes do dia o interior é fresco e o fogo, que permanece constantemente aceso, espanta os mosquitos infernais que a região prodigamente oferece. As noites em Mato Grosso são em geral frias, mas a casa guarda um pouco do calor do dia e o local fica agradável.

Os missionários salesianos introduziram no Meruri as casas de alvenaria com divisões internas; a experiência não parece ter sido bem sucedida, pois os índios preferem passar o dia no puxado de palha que eles mesmos construíram atrás das casas. Nas de alvenaria o calor é insuportável durante o dia, e à noite elas são frias. Como o solo é de tijolos, as condições higiênicas se tornam mais precárias. Mas o principal problema destas casas, segundo os próprios Bororo, são as divisões internas introduzidas pelos missionários. Aquilo que constituía para os salesianos um impositivo moral se transformou em algo sem sentido para os índios, acostumados a uma casa sem divisões internas, onde nada está fora das vistas (Caiuby Novaes, 1980:16, 38). A casa tradicional permite acompanhar simultaneamente o alimento que está sendo cozido no fogo central, certificar-se que o bebê continua dormindo na rede, vigiar toda a casa para que o moleque do vizinho não venha roubar cocos, ver se os velhos não precisam de alguma coisa.

A casa Bororo é extremamente versátil na sua simplicidade. Nela, praticamente tudo está ao alcance das mãos, ou dos pés. É muito comum ver uma mulher sentada numa esteira à beira do fogo, tomando chimarrão, trançando algum artefato de palha e embalando, com uma cordinha amarrada no dedo do pé, uma rede onde está uma criança. Pedras usadas para apoiar as panelas que vão ao fogo servem também para quebrar os inúmeros tipos de cocos. Como a casa tem um único cômodo, sem divisões internas, nenhuma galinha que entre passará despercebida e será logo enxotada com uma vara comprida.

Com relação aos espaços sociais da casa Bororo nota-se que, embora haja numa mesma casa duas ou três famílias nucleares, cada uma delas mantém uma nítida separação espacial, tanto de dia quanto de noite. Os limites dos espaços familiares são marcados pelos jiraus, usados atualmente para dormir, ou então pelas esteiras e redes. O espaço de cada família sempre se localiza nas extremidades da casa, nunca no centro. Nestes lugares guardam todos os seus pertences, é aí que dormem e comem, aí recebem suas visitas cotidianas. À noite é muito frequente ver um casal conversando baixinho e fazendo em suas esteiras um artefato qualquer. Tem-se, às vezes, a impressão de que são duas ou três casas distintas numa única casa, o que talvez reflita a situação anterior em que cada uma destas famílias tinha a sua casa e os homens passavam a maior parte do tempo no i mána gejéwu.

O centro da casa parece constituir um local especial, que não é exclusividade de nenhuma família em particular. É aí que são recebidas as visitas consideradas importantes, de alguém que chega de uma longa e demorada viagem, daqueles que voltaram sãos de um tratamento de saúde na cidade e que são aí recebidos de modo formal, com choro ritual e várias ofertas de alimento.

O centro da casa é também o espaço destinado aos rituais. Certas fases de um ritual ocorrem dentro da casa (outras no pátio bororo, numa clareira denominada aijemuga ou na casa dos homens, o i mána gejéwu) e são sempre realizadas no centro, nunca nas extremidades. Este espaço central passa a ser a representação física da casa, que é por sua vez o local onde se circunscreve a primeira unidade de organização social Bororo, que é a linhagem. É esta unidade social que tem no plano da aldeia o seu lugar específico.

É também no centro da casa que colocam o fogo, continuamente avivado para cozinhar, espantar mosquitos, ou simplesmente como fonte de calor, durante a noite. Antigamente, parece que cada família nuclear tinha o seu fogo (Enciclopédia Bororo, p. 448) mas hoje ele é usado por todos os membros do grupo doméstico, o que parece justificar sua localização central.

PERCEPÇÃO DO ESPAÇO DOMÉSTICO

Se em praticamente todas as sociedades a casa é o reino das mulheres, na dos Bororo este aspecto é ainda mais nítido. Eles são tradicionalmente uxorilocais, ou seja, quando dois indivíduos se casam, o homem deve mudar-se para a casa de sua mulher. Embora haja várias ocasiões em que esta regra não é seguida (Caiuby Novaes, 1979:27-32), ela é, certamente, a norma ideal de residência entre os Bororo.

Isto significa que uma casa será geralmente, embora nem sempre, habitada por um casal mais velho, suas filhas casadas, com seus respectivos filhos e os filhos homens ainda solteiros. A casa Bororo abriga também indivíduos vindos de outras aldeias que pertencem ao mesmo clã que as mulheres da casa. Mais adiante trataremos da relação entre casas e clãs.

Por enquanto, interessa ressaltar que a casa se caracteriza por ser um campo social nitidamente feminino. Embora os homens frequentem a casa para dormir e comer, são as mulheres que nela permanecem mais tempo, sendo que aí são realizadas as tarefas tipicamente femininas, como a preparação dos alimentos e dos artefatos de palha. Apesar do fluxo constante de pessoas que se agregam e deixam a casa Bororo, este é relativamente menor por parte das mulheres. No caso da separação do casal, por exemplo, (as taxas de separação são altíssimas entre os Bororo e não é raro um indivíduo casar-se cinco vezes) as mulheres permanecem na moradia com seus filhos e filhas.

Como em todos os lugares do mundo, homens e mulheres brigam e fazem alianças. As grandes "fofocas" surgem da baatada (que compreende o círculo de casas da periferia da aldeia) e, dada a própria morfologia da aldeia, espalham-se com incrível rapidez. Além disso, embora as mulheres morem a poucos metros de distância umas das outras, estão continuamente se visitando e trocando favores, As casas se constituem, assim, no centro da sociabilidade cotidiana, por oposição ao pátio (bororo) e a casa dos homens (bái mána gejéwu), locais tipicamente masculinos (mesmo que frequentados ocasionalmente pelas mulheres), de desempenho dos rituais e das relações formalizadas.

Se pensarmos na oposição natureza/cultura, extensamente desenvolvida por Lévi Strauss e outros autores estruturalistas, poderemos caracterizar o centro da aldeia como sendo o domínio da cultura por excelência, onde têm lugar as representações de aroe, os heróis míticos que deram origem à sociedade Bororo. Em contrapartida, as casas se constituem no espaço onde se dão as grandes transformações naturais: a procriação e o envelhecimento, a transformação dos alimentos crus em cozidos. Além disso, é no espaço da casa que são criados os laços de substância (Da Matta, 1976) que unem os indivíduos co-residentes. Estes laços de substância comum advêm do fato de que estas pessoas compartilham do mesmo alimento, moram sob o mesmo teto, participam da mesma substância vital - rakare - contida nos fluídos trocados: sangue, sêmen, sangue menstrual e leite materno. Obviamente esta substância natural que identifica e une os indivíduos de uma mesma casa só pode ser pensada e vivida através de todo um quadro cultural. Através desta mesma perspectiva podemos também afirmar que, se a periferia das casas é pensada como o domínio da natureza (este é o domínio do bope, entidade responsável pelas grandes transformações naturais, como a morte e a procriação), esta é também uma natureza pensada através da cultura.

Se a oposição natureza/cultura pode ser vista como uma oposição entre a periferia e o centro da aldeia, num outro ângulo é a aldeia como um todo - centro e periferia - que se opõe ao espaço imediatamente circundante, constituído pelas roças. Se na aldeia praticamente tudo é público, do conhecimento de todos, na roça se consegue uma privacidade que não é possível no domínio da aldeia. Este é o local preferido para que a família se veja a sós e, embora pareça paradoxal, é também o local mais propício para as relações extraconjugais.

Por outro lado, as roças constituem um espaço onde os caminhos são trilhados, um espaço cultivado e conhecido, por oposição à floresta, habitat do bope, onde as pessoas inúmeras vezes se perdem, ou são acometidas de visões delirantes de espíritos e entidades sobrenaturais. Assim, um indivíduo se transforma em bari, xamã, quando, após ter tido visões extraordinárias, dirige-se, a convite de um determinado espírito, a uma caçada solitária na floresta. "Lá chegando aparece-lhe o espírito, quase sempre com aspecto de macaco, que lhe pergunta se lhe quer pertencer de alma e corpo. O índio, com grande agitação e perturbação, caso queira, declarará sua obediência" ... (Enciclopédia Bororo, vol.I, p.243).

Soube também do caso de uma mulher, já bem mais velha que, tendo se perdido na floresta, passou fome e resolveu comer a única coisa que achara - ovos de ema -. Morreu logo depois de ter chegado à aldeia, pois ovos de ema são alimentos do bope, que não podem ser ingeridos por qualquer pessoa antes de passarem pelo xamã.

O universo Bororo é assim constituído de uma série de espaços adjacentes, a partir de um ponto central - o pátio e a casa dos homens - onde se situa o domínio da cultura por excelência, sendo seguido imediatamente pela periferia das casas, pela clareira do aije-muga, pelas roças e, finalmente, pelo mato e a floresta.

A partir deste primeiro ponto de referência, os espaços seguintes vão sendo cada vez mais caracterizados como domínio da natureza. Observe-se, no entanto que, em termos da concepção que os Bororo têm da morfologia de seu território, não existe uma oposição absoluta e dicotômica entre natureza e cultura. O que há é uma passagem gradativa de um espaço mais cultural para um espaço mais impregnado de natureza. A oposição pátio - casa dos homens/floresta só pode ser pensada através de um continuum pátio - casa dos homens/periferia das casas; aldeia (pátio, casa dos homens, periferia)/ roças; roças/floresta.

                               centro        periferia      roças       floresta

CULTURA----------------------------------------------------------NATUREZA

 

A CASA COMO UM CAMPO SEMÂNTICO

Os rapazes Bororo que atingiram a puberdade são iniciados durante as fases finais de um funeral. Esta iniciação ocorre após toda uma preparação física e social que é realizada em local afastado da aldeia (para descrição minuciosa da iniciação e dos eventos que a precedem, consulte-se a Enciclopédia Bororo, vol. I, pp. 627-642).

Separados de suas famílias, os iniciandos são guiados por homens experientes, os erubadaré-ge (traduzidos em português como 'padrinhos') e submetidos a todos os trabalhos dos homens, principalmente caça e pesca, manejo e fabricação de arcos, flechas e redes de pescar; são, durante esta fase, instruídos na confecção de artefatos e com relação aos mitos e tradições da sociedade Bororo.

Como se sabe, a sociedade Bororo é dividida em duas metades: ecerae e tugarege, sendo que os indivíduos pertencerão ao mesmo clã e, portanto, à mesma metade que sua mãe. Estas duas metades são exogâmicas, ou seja, um indivíduo deverá escolher como cônjuge alguém da metade oposta à sua. Do mesmo modo, os parentes maternos do rapaz a ser iniciado escolherão para padrinho um membro da metade oposta à do iniciando. Esta escolha deverá levar em consideração não apenas as metades, mas também os sub-clãs em que o rapaz poderá escolher a própria esposa: entre estes será escolhido o padrinho (EB I, p. 639).

Escolhido o padrinho, este é levado ao centro do pátio e já os parentes clânicos do rapaz entregam-lhe os brotos de babaçu com os quais ele deverá confeccionar os estojos penianos a serem dados ao iniciando. A entrega dos brotos é feita com as palavras: "Kaegáe gáe, kaeqáe gáe, kaegáe gáe: este broto será mesmo tua esposa".

Os vários estojos penianos são colocados num cordel que o rapaz deverá cingir à guisa de coroa. Na madrugada seguinte o rapaz é levado por seus parentes ao centro do pátio. Logo a seguir vão buscar o padrinho e o fazem dançar ao redor do jovem ornado com os estojos penianos, dizendo as mesmas palavras da véspera:

"Kaegáe gáe, etc. Este estojo peniano será mesmo a tua esposa." (EB I, p. 640). O padrinho coloca então o estojo peniano e o acompanha até a casa de suas madrinhas (que pertencem ao clã do padrinho, na metade oposta à do iniciando), que executam um choro ritual. Depois o rapaz vai até a casa de sua mãe, que também chora ritualmente.

Segundo a Enciclopédia Bororo, "A imposição do estojo peniano é uma cerimônia solene pela qual um rapaz, real ou supostamente púbere, deixa a sociedade dos meninos pala ingressar na dos homens. Depois desta função é reconhecido pela coletividade como homem, com todos os direitos, inclusive o de assistir às festas próprias dos homens e o de casar-se". (p. 628)

Se me detive a descrever alguns aspectos da iniciação dos rapazes Bororo é porque há uma estreita relação entre este ritual e a concepção que os Bororo têm da casa, de seu espaço doméstico. Uma casa é, certamente, abrigo de homens, mulheres e crianças. Mas para os Bororo ela é mais do que isso: é o local onde se inscreve a principal unidade de funcionamento da sociedade Bororo, que é a linhagem. Há, assim, a casa da linhagem de Baitogogo, de Tadugo, de Aturua, de Akaruio Bokodori, de Ki Bakororo, etc. Praticamente todos os homens Bororo são capazes de enumerar a ordem em que se dispõem estas várias casas ao redor do círculo da aldeia. No entanto, para que estas casas estejam nela concretamente representadas, é necessário que haja indivíduos que pertençam a estas linhagens e que possam ocupar as casas.

Há entre os Bororo uma série de prescrições matrimoniais que estabelecem quais linhagens deverão se unir matrimonialmente. Como a descendência é matrilinear, uma criança pertencerá ao mesmo clã que sua mãe. Por outro lado, é só após ter sido iniciado que um rapaz pode efetivamente casar-se e fazer filhos. Ao se casar, ele deverá, como já assinalamos, transferir-se para a casa de sua esposa, e aí procriar filhos para o clã dela.

A língua Bororo designa com o mesmo termo tanto a casa como o estojo peniano que o rapaz recebe no ritual de iniciação: bá. É inconcebível que um homem, depois de iniciado, apareça publicamente sem o bá. Por outro lado, não se pode conceber um homem Bororo sem uma categoria social que o identifique e o relacione aos outros membros do grupo.

Neste sentido são extremamente significativas as palavras dos parentes maternos do iniciando, e de seu padrinho: " ... este estojo peniano será mesmo a tua esposa", não só porque é só após ter sido iniciado e ter recebido o que o jovem poderá casar-se, mas também porque é entre as mulheres do clã de seu padrinho que ele deverá escolher sua futura mulher.

Quando dois jovens se casam, eles passam a ter na casa da mãe da mulher um espaço próprio. É a criação deste novo espaço, - que se concretiza na localização das esteiras ou jiraus onde o casal deverá dormir e guardar seus pertences - que indica o estabelecimento de uma nova família nuclear. Ao que parece, antigamente esta nova família deveria se estabelecer numa outra casa, construída atrás da casa da mãe da jovem esposa, portanto no mesmo raio do círculo em que está a casa da frente. As aldeias Bororo eram assim constituídas de vários círculos concêntricos. Hoje, provavelmente em virtude da depopulação, as famílias nucleares ligadas pelo lado materno tendem a ocupar a mesma casa, com espaços sociais distintos no seu interior.

A casa Bororo se transforma de modo análogo às transformações por que passam seus membros. Novos espaços são criados, não só para uma mulher solteira que se case, mas também para famílias que venham de uma outra aldeia e queiram se estabelecer na casa por um tempo mais longo, o que é muito comum.

A morte é, certamente, a principal transformação que ocorre na vida de um indivíduo, fato atestado pelo funeral Bororo, cerimônia extremamente longa e complexa. As pessoas que mantinham com o morto uma identidade social (por serem membros da mesma linhagem), ou de substância (por pertencerem à mesma família nuclear - pai, mãe e filhos) passarão a observar o luto e a viver num estado de marginalidade social.

Os enlutados devem se restringir à periferia da aldeia; seu espaço se limita à esfera doméstica da sociedade, afastando-se, portanto, do pátio e da casa dos homens (o domínio público da sociedade). Na casa do morto as portas e janelas que dão para o centro da aldeia permanecem fechadas. Confinadas em suas casas, as mulheres deixam de acompanhar o que se passa na aldeia, fato que jamais ocorre em épocas normais.

Os enlutados são pessoas que, em todos os sentidos, situam-se à margem da vida social e que se despojam de todos os atributos que os qualificam como indivíduos sociais portadores de uma determinada cultura. O luto situa as pessoas num estado liminar, entre a natureza e a cultura. Para se sentarem, não se utilizam de esteiras; sentam-se no chão (como os animais, segundo os próprios Bororo). Não usam pinturas corporais (atributo de identidade clânica, esteticamente valorizada) e as roupas que incorporaram dos civilizados não são nunca lavadas; vão deixando no corpo apenas uns trapos sujos que, com o passar dos dias, vão também desaparecendo.

"Bope koia", é por causa do bope, disse-me uma das enlutadas, que as coisas estão assim. As mulheres confinadas em suas casas vazias, o corpo sujo e feio (sem ornamentação ou roupas), sem cabelos (os enlutados arrancam todos os cabelos da cabeça por ocasião da morte de uma pessoa com quem tinham uma identidade), ou com cabelos que crescem às soltas, sem serem domesticados. A morte de um indivíduo contamina os seus 'iguais', que passam a viver num estado de 'poluição' física e social.

Se a formação de uma nova família leva à criação de novos espaços na casa Bororo, a morte de um de seus habitantes esvazia por completo o interior da casa, pois todos os objetos que pertenciam ao morto, que foram por ele doados, ou com os quais ele tinha alguma ligação são destruídos ou queimados. Ainda com relação à casa, note-se que durante o luto apenas a porta de trás, a que dá para o caminho que leva à roça e ao mato (lugar de bope) fica aberta e é utilizada.

Tudo o que pertenceu a um indivíduo deverá ser destruído após sua morte e, evidentemente, sua casa não poderia permanecer intacta: também ela deverá ser queimada. Neste sentido é possível ver a casa Bororo e todo seu ciclo de transformações (os novos espaços que são criados em seu interior, portas e janelas que permanecem fechadas durante o luto, queima da casa quando da morte de um de seus membros) como uma das expressões materiais da concepção que os Bororo têm da vida e de sua organização social.

Se a morte põe fim a um homem concreto, também sua casa deverá desaparecer. No entanto, assim como a identidade social de um individuo deverá permanecer após sua morte através do aroe maiwu (indivíduo da metade oposta ao morto e que é escolhido para ser seu representante social no mundo dos vivos), também a categoria social que aquela casa representa deverá permanecer. Uma nova casa será então construída naquele mesmo espaço.

Como já disse Gaston Bachelard (1957:19), a casa é um importante instrumento de análise para que se possa entender a alma humana. Para os Bororo, esta afirmação também se aplica, com a ressalva de que aqui não é apenas ela que nos permitirá melhor entendê-los, mas também a aldeia como um todo, e as relações que se estabelecem entre as várias casas.

A aldeia Bororo tem, nas casas que se dispõem ao redor do círculo, a representação das várias linhagens que compõem esta sociedade. É assim uma espécie de "mapa" da sociedade Bororo. Neste sentido, ser Bororo é, antes de mais nada, ter um lugar específico neste espaço, é ser, por exemplo, Akaduie e situar-se entre Bakorokudu e Kurugugua, ou ser Okoge Kigadureu e ter uma relação prevista, em tempos míticos, com Birimodo e Araru Kurireu.

 

Referências Bibliográficas

ALBISETTI, Cêsar e VENTURELLI, Angelo - Enciclopédia Bororo, volume I. Museu Regional Dom Bosco. Campo Grande, 1962.

BACHELARD, Gaston - La Poétique de l'Espace. Presses Universitaires de France. Paris, 1957.

CAIUBY NOVAES, Sylvia: Mulheres, Homens e Heróis. Dinâmica e permanência através do cotidiano da vida Bororo. Dissertação de Mestrado (mimeo.); USP, 1979.

VIERTLER, Renate - O Estudo do Parentesco e as Práticas de Nominação. In: Revista de Antropologia, vol, 21, 1ª parte. 1978.


Fonte: Trecho extraído do livro "Habitações indígenas"



Bibliografia Associada:

Habitações Indígenas