"Oi Raquel, quero te parabenizar, mais uma vez, pelo livro. Este e-mail é apenas o desabafo de um amigo, concordo em tudo com sua pesquisa e com a postura adotada na mesa redonda. Hoje t irei a manhã para lê- lo e teve um ponto que me chamou bastante atenção: na pág 87, no relato da artesã Eloísa está grifado: " O SEBRAE que disse pra gente pintar as peças pra ficar melhor...". Não foi bem assim: trabalhei por dois anos nesta comunidade (Itamatatiua), quando cheguei lá eles estavam fazendo "sereias" (oriundas de uma oficina ministrada por uma ONG), havia forte descaracterização do trabalho de raiz entre muitos outros problemas detectados. A pintura das peças sugerida por mim, foi em virtude de muitas bonecas trincarem durante a queima necessitando de reparos feitos com gesso (não sei se vocês tiveram a oportunidade de vê-las), então, para que o trabalho não fosse "perdido", utilizava-se este modo de reparo: fechamento das trincas e pintura para não deixar falhas aparentes. Bonecas em perfeito estado não deveriam ser pintadas. Foram dois anos em que pude pesquisar e cooperar na recuperação de peças que estavam em vias de extinção como a travessa pernil, a lamparina de azeite, garrafas, xícaras, canecas etc. Também criamos novas peças como as gamelas em forma de frutas da região, especialmente manga e caju e as dançarinas da dança do negro e do tambor de crioula (típicos da comunidade). Um grande problema que encontro nas comunidades refere-se às contradições no discurso, infelizmente, meus 11 anos de convivência com comunidades artesanais me permitiram presenciar cenas onde o discurso variava. Sempre lutei para que o artesão saísse desta condição de "coitado" diante das esferas institucionais. Tenho muito orgulho do excelente trabalho desenvolvido por vocês. Sou seu fã! Forte abraço, Márcio"
O trecho acima trata de um e-mail que recebi de Márcio Guimarães, designer e consultor do SEBRAE-MA, alguns dias após o lançamento do livro Identidade é valor, em junho de 2011. No livro, mapeio as cadeias produtivas do artesanato em três comunidades remanescentes de quilombo do interior do município de Alcântara (MA) e discuto os processos socioculturais que permeiam a produção e o consumo do artesanato nestas comunidades, a partir do ponto de vista das artesãs.
Na comunidade de Itamatatiua, a qual Márcio se refere, há mais de duzentos anos se produz cerâmica artesanalmente, e as atribuições de uso deste artefato vem mudando ao longo das décadas. Mais recentemente, a associação de artesãs recebeu atenção de instituições como o SEBRAE, por meio de ações de incentivo e qualificação da produção artesanal.
Neste artigo busco discutir o papel do designer como agente destes processos e sua relação com a comunidade, a partir das formas de subjetividade de pesquisadores, designers e artesãs sobre esse profissional que, contemporaneamente, é cada vez mais presente na cadeia produtiva do artesanato tradicional. O contexto de análise é entrecruzado de discursos e práticas que revelam ansiedades ligadas ao capitalismo tardio, como Sherry Ortner analisa em seu artigo Subjetividade e crítica cultural (2007).
Lançarei mão dos dados empíricos obtidos durante minha pesquisa de campo em Itamatatiua e depoimentos de profissionais que já atuaram como consultores. De um lado, o depoimento de Márcio Guimarães, como designer, e do outro, os depoimentos de pesquisadores do artesanato que atuam em ações e programas de inventário e preservação patrimonial. Carla Belas, socióloga, que participou do processo de indicação geográfica do capim dourado no Jalapão, como consultora do CNFCP [1]. Ricardo Lima, antropólogo, atua na academia e também coordena o PROMOART [2], além da Sala do Artista Popular [3] do CNFCP. As experiências destes agentes sociais que trabalham com comunidades de artesãs se mesclam à minha experiência pessoal e profissional, como designer e pesquisadora do artesanato.
A partir de uma experiência próxima, procuro dinâmicas sociais mais amplas sobre o papel do designer na sociedade contemporânea. Contudo, para afastar-me de generalizações, observo na reflexão teórica de Abu-Lughod (1993) um caminho metodológico para a construção da escrita etnográfica, e busco nas entrevistas e no texto do e-mail que recebi, as narrativas que se distanciem da minha tradução.
Ao optar pelos discursos dos agentes, e não o das instituições, aproximo-me de suas subjetividades, seus modos de ver, sentir e pensar a partir de seus pontos de vista. Com isso, na perspectiva de Ortner (2007), procuro algo além de posições de enunciação essencializantes: o designer, a artesã, o pesquisador – não estou em busca de um padrão de conduta ou uma posição hierárquica de discursos, mas de um mapa de subjetividades que moldam e ao mesmo tempo refletem uma ordem simbólica, através da experiência sobre os seus trabalhos e as formas sutis de poder que os permeiam.
O DESIGNER NO CENTRO
Neste item abordaremos o papel tradicionalmente atribuído ao designer, e refiro-me ao artigo do sociólogo C. Wright Mills, intitulado O homem no centro: o designer. Mills aborda a atuação deste profissional no entrecruzamento de dois importantes deslocamentos contemporâneos. Um, de ordem econômica, a mudança da ênfase econômica da produção para a distribuição. Outro, de ordem política, a subordinação da arte, da ciência e do saber às instituições dominantes da economia capitalista e do estado nacionalista (MILLS, 2009, p. 65).
A mudança da ênfase econômica implica, no caso que me proponho a analisar, um fator importante da atuação do designer na qualificação de produções artesanais tradicionais. Na comunidade de Itamatatiua, desde a década de 1970 está havendo uma mudança na utilidade do pote, quando ele deixa de servir para armazenar água e passa a ser uma peça de decoração. O valor simbólico-cultural impõe-se ao valor utilitário, a função do pote deixa de ser o armazenamento de água, antes extremamente necessário, pois não havia água encanada, e agora se torna um enfeite, um objeto simbólico, processo já sistematizado por Canclini (1983), em seus estudos sobre o artesanato mexicano.
Antes, havia uma circulação da cerâmica entre os povoados de Alcântara, havia comércio e, portanto, estes produtos sempre estiveram inseridos no mercado. Neste artigo, quando me refiro à inserção contemporânea do artesanato no mercado, estou aludindo ao mercado globalizado, fruto destes deslocamentos políticos e econômicos descritos acima por Mills e conceituados por Canclini, em relação à circulação global do artesanato, como trânsito intercultural.
Neste deslocamento de função do artefato, o designer atua como mediador entre a esfera da produção artesanal e o mercado. O que tem sido criticado na atuação deste profissional é a sua interferência assimétrica na autonomia do artesão. Em uma entrevista, o pesquisador e gestor do PROMOART, Ricardo Lima, fala sobre o assunto:
Tenho visto barbarismos sendo cometidos pelo país todo em nome do gosto, da estética, do bom design. Ao mesmo tempo em que se fala que possuem um valor cultural extremo, transformam essas comunidades brasileiras em mera mão de obra da concepção do designer, que acha que tem a primazia do gosto, a primazia da forma, a primazia da estética. Eu vou me colocar sempre contra esse tipo de designer, mas isso não signif ica que eu seja contra o encontro do design com o artesanato. Eu sou contra interferência que fere princípios. (LIMA, 2010)
Com o deslocamento da posição do artesão, que tradicionalmente é mestre da atividade e de si mesmo no processo, observamos aí uma ruptura quando é chegada a noção de mercado na comunidade. Por meio da encomenda, o mercado e o consumidor se fazem presentes, e contraria o que Mills aponta como uma das principais características do artesanato: a não-existência de um "motivo ulterior para o trabalho além do produto que está sendo feito e o processo de sua criação" (MILLS, 2009, p.76).
Na análise da cadeia produtiva do artesanato de Itamatatiua, foi possível observar a categoria encomenda como o estopim da produção (NORONHA, 2011, p. 77). A produção espontânea, a que parte do artesão, existe, mas a prioridade é a produção sob encomenda, porque pressupõe a venda garantida. Na encomenda, a forma, o acabamento, o prazo, são frutos de negociações entre o artesão e o consumidor. A expressão do artesão enquanto detentor de um saber fica condicionada ao uso que outro fará de seu artesanato:
Por exemplo, a comunidade quilombola de Muquém, em Alagoas, que produz uma cerâmica maravilhosa, uma expressão fortíssima, tem uma mulher chamada Irinéia, que modela umas cabeças de barro que te permite um estudo de penteados afro desde o Brasil escravocrata até hoje. Tenho o relato de uma pessoa que pede a intervenção de alguém para evitar o que estava acontecendo ali, que era a chegada de um designer que pede para que Irinéia execute figuras de Branca de Neve e anões para botar em jardim, dizendo que o merc ado ir ia pagar muito bem por essas figuras. Isso é de uma violência cultural enorme e eu não posso me calar quando eu ouço um relato desses, quando sei que há um caso desses acontecendo. É contra esse mau designer que eu venho brigando muito. (LIMA, 2010)
O relato de Lima remete à mesma crítica que Mills promove quanto à atuação do designer: uma posição de centralidade na sua intervenção na produção artesanal, uma tentativa de sobrepor o conhecimento especializado ao conhecimento tradicional em prol das demandas de mercado.
Carla Belas, durante a pesquisa sobre a produção do artesanato em capim dourado no Jalapão, identificou questões relacionadas à intervenção do designer na produção artesanal que reforçam as assimetrias de conhecimento e poder entre os artesãos tradicionais e as demandas do mercado:
Nesse sentido, foi promovida uma série de ações, entre as quais cursos de produção e design de peças oferecido pelo SEBRAE-TO. Esses cursos, se por um lado abriram novas perspectivas de mercado indicando uma linha de produtos como mandalas, sous plats, bolsas, fruteiras – que não faziam parte da produção artesanal tradicional –, por outro, aumentaram a quantidade de artesãos e homogeneizaram o design dos produtos, criando enorme concorrência de novos artesãos com os grupos tradicionais da região, principalmente porque a maioria dessas novas áreas produtoras se encontra em locais muito mais acessíveis aos prováveis compradores. (BELAS, 2008)
O trecho acima consta como texto de um catálogo relativo a uma exposição sobre o artesanato do capim dourado, realizada na Sala do Artista Popular do CNFCP – Museu do Folclore Edison Carneiro, principal centro de pesquisa sobre o artesanato no Brasil. O processo de homogeneização da forma do artesanato, a introdução de novos produtos é uma das mais graves interferências do designer em processos produtivos tradicionais, na visão dos pesquisadores do CNFCP. Em outro trecho da entrevista de Lima, é possível perceber este pensamento:
Mas, realmente, eu fico meio indignado quando vejo essa outra condição, em que se pega uma população que tem um saber tradicional imenso e, chegando ali, distribui: "Olha, você vai fazer isso, isso e isso". O designer dá os modelos daquilo que ele quer que seja feito, para sair premiado como grande indivíduo que concebeu aquela coleção para aquela população. Aí é outra questão. (LIMA, 2010)
Esta contextualização é importante para entendermos como a subjetividade destes dois agentes, os pesquisadores Belas e Lima, que atuam neste local de referência – portanto centro de construção de conhecimento especializado sobre a produção e preservação do artesanato no Brasil – foram construídas a partir de experiências pessoais vivenciadas em contextos de pesquisa sobre a atuação de designers em comunidades nas quais atuaram.
Na ocasião do lançamento do livro Identidade é valor, convidei Belas para uma palestra, no seminário que precedeu o lançamento do livro. Ela aceitou, e depois que enviei os arquivos do livro ela retornou o e-mail, parabenizando pela forma que eu me relacionava com as artesãs. Já em São Luís, quando conversávamos em uma pizzaria, ela confessou que quando recebeu meu convite pensou em declinar e disse: "Evento de design? O que esses designers querem desta vez?". Esta passagem mostra o quanto a experiência vivida no Jalapão havia constituído o seu ponto de vista sobre "os designers".
Durante a palestra em São Luís, a socióloga mencionou esse fato, e disse que quando presenciou nossa atuação e o debate com as artesãs, dias antes em Alcântara, sua opinião começou a mudar. Diante de uma audiência de designers, Carla apresentou todo o processo de intervenção promovido por "designers" no Jalapão e os efeitos negativos na cadeia produtiva do artesanato de capim dourado em Tocantins, apontando indícios de uma atuação assimétrica no processo de qualificação que o "SEBRAE" promove.
A própria forma que o SEBRAE refere-se ao trabalho do designer em uma comunidade – qualificação artesanal – já denota uma relação assimétrica entre o conhecimento especializado e o conhecimento tradicional. Nesta expressão subjaz a idéia de que sem a intervenção do designer o artesanato não tem qualidade e que para ser introduzido no mercado precisa ser qualificado por ele. Estas concepções sobre o artesanato e o designer, ao longo do tempo, tornam-se modelos de e modelos para (GEERTZ, 1989) a formação das subjetividades de artesãos, designers e pesquisadores do tema, como observamos na descrição de Lima:
"A gente está chegando à conclusão de que o nosso artesanato não tem design". Isso é uma incorporação altamente nova e revela que a realidade não pode ser pensada em termos de "popular" e "erudito", separando esses mundos. "O meu artesanato não tem design". O que é isso? Essas exclusões não existem na realidade. (LIMA, 2010)
CRUZAMENTOS CONTEMPORÂNEOS: SUBJETIVIDADES EM JOGO
Neste item, a partir do estudo de uma experiência próxima, como Geertz propõe – um e-mail recebido por um colega de profissão – inicio um breve exercício de observar formas de subjetividades de agentes que se relacionam com o designer Márcio, e a sua própria subjetividade, para pensar como este profissional, que intervém na produção artesanal na contemporaneidade, é representado socialmente e como as experiências vivenciadas pelos agentes com os quais se relacionam também influem nesta construção.
O texto de Mills e de Canclini, e as reflexões de Lima e Belas delineiam um contexto de profundas mudanças na função do artesanato, que transita entre a sua utilização tradicional e a ressemantização do uso pelos consumidores, e até mesmo pelas artesãs. Com estas mudanças, o designer exerce um papel ambíguo, transitando entre posturas percebidas como positivas e proativas ou que distanciam a produção local de seus aspectos tradicionais. Este papel de mediação negativado é explicitado por Mills já em 1954 quando escreve o artigo Forças produtivas e as frustrações do designer, que depois recebe o título O homem no centro: o designer.
Já na década de 1950 esses efeitos da atuação do designer como um construtor de "mundos de segunda mão" são percebidos e analisados pelo sociólogo. O uso do artesanato como metáfora de uma forma produtiva que garante ao artesão o controle sobre o seu trabalho, porém, é uma realidade que não existe mais. São sobre estas frustrações e angústias que pretendo me debruçar agora.
Estes deslocamentos de posições acontecem no âmbito do capitalismo tardio, a inserção destes artefatos na contemporaneidade e o processo de alienação do signo artesanato aumentam o senso de desorientação do sujeito pós-moderno. Ortner, ao se lançar sobre a obra de Geertz, propõe a análise das formas de subjetividade como uma interpretação cultural a partir da qual é possível construir a crítica cultural.
Desta forma, a partir da emergência de novas formas de consciência lanço mão de uma experiência pessoal, minha pesquisa sobre o artesanato de Alcântara e minha relação com estes agentes – Carla, Ricardo, Eloísa e Márcio. Indo "além de Geertz", como Ortner propõe, retomarei o email do designer, "nos permitindo propor questões afiadas sobre a formação cultural de subjetividades dentro do mundo das relações de poder amplamente desiguais, e sobre as complexidades das subjetividades pessoais dentro de tal mundo." (ORTNER, 2007, p. 400).
Durante a pesquisa de campo em Alcântara, nos três povoados onde pesquisei, era comum entre as artesãs o discurso sobre os designers, sobre o SEBRAE, sobre o comprador, sobre a vendedora. Nas falas e práticas cotidianas sobre seus saberes tradicionais, remetiam-se ao designer genericamente, com poucas alusões a quem eram estes profissionais. Na bibliografia consultada era freqüente a crítica aos designers, encerrados em uma categoria indiferenciada.
Contudo, esta posição do designer precisa ser analisada sem essencialismos. Os casos relatados por Lima e Belas refletem uma posição hierarquicamente superior do designer em relação ao artesão. Consideram que este último aceita a imposição do conhecimento especializado perante as situações de qualificação e treinamento. A crítica dos pesquisadores tangem a questão de que o artesão se desloca da função de autonomia sobre o processo produtivo para ser mão de obra na execução de um projeto cuja autoria é do designer. Não estou afirmando que os pesquisadores neguem a consciência e a subjetividade dos artesãos enquanto atores sociais, mas, mesmo aludindo a casos específicos, referem-se a contextos amplos, à macro-processos que encontram ao longo de suas trajetórias como pesquisadores do artesanato no Brasil.
Observo, a partir da leitura de Ortner, que as experiências subjetivas individuais são passíveis de serem modelos para um pensamento coletivo, que pelo lugar de fala dos pesquisadores que tomei para análise, torna-se um pensamento institucional. Quando a prática se formaliza na fala acadêmica, estas subjetividades alimentam as subjetividades de outros agentes, servindo como modelo de uma prática, e assim sucessivamente.
O e-mail com o qual iniciei o artigo mostra um diálogo entre eu, designer, professora de design e pesquisadora e um designer, também professor de design, que durante onze anos atuou como consultor do SEBRAE-MA. A estratégia de trabalhar com o e-mail me possibilita dialogar com o que Márcio escreveu e o que ouvi da artesã Eloísa, a quem Márcio se refere. Nesta construção de um diálogo a partir de narrativas, pretendo, na perspectiva de Abu-Lughod, desconstruir a idéia de que as artesãs são passivas na recepção das interferências do designer nas suas produções artesanais, e que da mesma forma, nem todos os designers cometem negligências culturais - como descrito por Mills.
Em minha conversa com as artesãs de Itamatatiua, falávamos sobre a questão da pintura das peças produzidas, sobre a utilização da pintura "a frio", sobre as preferências das artesãs sobre o uso e não uso da tinta. A opinião das artesãs variava muito, e eis a fala à qual Márcio refere-se:
Eloísa, de Itamatatiua: Aí, depois que o SEBRAE veio a gente não fazia assim em grupo; a gente fazia nas casa de gente. Aí depois que o SEBRAE veio organizar a gente e a gente ganhou essa sede... O SEBRAE que disse pra gente pintar as peças pra ficar melhor, que os turistas gostam...
Dos Anjos, de Itamatatiua: Mas tem turista que não gosta não, que dizem que gostam mais da queimada, e das manchadas do fogo mesmo, porque são tradicional daqui de Itamatatiua...
Eloísa: É, varia, cada qual gosta de um jeito. É bom a gente ter na loja de todo tipo, mas os turistas às vezes gostam da boneca pintada, mas também gostam da tradicional do quilombo... (NORONHA, 2011, p.87)
Nestas falas observo que as artesãs posicionam-se de forma passiva às ações do SEBRAE. No e-mail que recebi, observamos o ponto de vista que eu não tinha na ocasião da escrita do livro. Sempre tive consciência que estava escutando apenas as representações das artesãs, e que durante a sequência da pesquisa, teria a oportunidade de ouvir outros agentes envolvidos nas cadeias produtivas.
O que é relatado como uma personificação do institucional pelas artesãs – o SEBRAE veio, o SEBRAE disse – parece uma estratégia de "defesa" das artesãs perante a minha atuação como pesquisadora, uma forma de se eximirem da responsabilidade de optarem pela pintura, uma forma de "camuflar" o seu próprio gosto. Este foi um assunto polêmico durante um momento de trabalho em dezembro de 2010, quando nos reunimos na sede de Alcântara, os pesquisadores e 21 artesãs representantes dos três povoados. Tingir ou não tingir a fibra, pintar ou não pintar o barro, foi uma acalorada discussão sobre o que é tradicional, o que é bem aceito pelo consumidor e o que é do gosto das artesãs. Nes ta ocasião deixei clara minha posição e minhas motivações para o uso de pigmentos naturais e a não pintura do barro.
Quando Márcio conta, em tom de desabafo, sua posição como consultor de design em Itamatatiua, relembro que nunca haviam mencionado seu nome, como autor da estratégia de pintura a frio para cobrir imperfeições das peças, e não como opção estética.
Ao adentrarem este percurso estratégico, de atribuir a opção e autoria da idéia da pintura ao SEBRAE, observa-se um processo de produção de sentido a partir de teias de significados, como Geertz nos propõe.
O meu ponto de vista, como designer e pesquisadora, minhas referências estéticas e o meu gosto provocam um acionamento de determinados discursos nas artesãs, que estão presentes nas suas formas de subjetividades, que por sua vez são também construídas em suas relações com os consumidores, e a recíproca também é verdadeira.
Para exemplificar tal fato, é possível observar na fala da artesã o acionamento de um valor simbólico-cultural relacionado à identidade étnica e a tradição de um artesanato produzido por uma comunidade remanescente de quilombos. A remissão a este valor simbólico representa uma adequação ao gosto do outro, que influência na concepção de gosto da própria artesã.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A imagem que vem se construindo dos designers – e que os próprios designers enquanto categoria profissional também reforçam – é a do profissional criativo que se apropria do conhecimento tradicional, e o submete a uma demanda de mercado.
A partir do caso relatado por Márcio Guimarães no e-mail que abre este artigo, pelo papel de palestrante exercido por Carla Belas no lançamento do livro Identidade é valor, observo o meu próprio papel como designer e pesquisadora, e como as nossas subjetividades refletem-se nos mútuos discursos que se constroem.
Pensar o papel do designer apenas pelo ponto de vista da construção de significados e sua interpretação cultural implica um processo de generalização do próprio conceito de cultura, e da forma como a escrita etnográfica vem sendo construída. Pensar as relações de poder presentes nas relações sociais sobre as quais pude me deter brevemente neste artigo implica ir além da simples interpretação para uma crítica mais profunda da cultura nas quais estamos imersos.
Como sujeitos conscientes, parafraseando Ortner, moldamos e somos moldados pelas subjetividades dos nossos outros, marcados por eventos próximos e também pelas grandes mudanças históricas. O papel do designer, assim como o das artesãs e pesquisadores, aflora como a individualidade de cada um agindo para a construção destas relações, e a formação das subjetividades – de e para – a construção do contexto contemporâneo da produção artesanal. A nossa percepção sobre a alteridade é exponencialmente sensibilizada, pois nos damos conta dos limites, das fragilidades, das nossas próprias potencialidades e a dos outros, construindo uma relação sincrônica e relativística de contínuo aprendizado na elaboração dos nossos sistemas de representações [4].
Desta forma, talvez seja possível nos posicionarmos de uma forma estratégica no sistema de produção imposto como um padrão, possibilitando que tenhamos nas nossas atividades profissionais e acadêmicas uma postura de tradutores efetivos e não de reprodutores de linguagem. Propomos, com isto, um deslocamento, do centro dos processos para o meio deles, entre os artesãos e os consumidores, como uma estratégia de melhor nos alfabetizarmos na linguagem do outro, mediando assim o léxico específico daquelas comunidades, do mercado e o repertório teórico do nosso campo de atuação.
Notas:
1 O Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP) é a única instituição pública federal que desenvolve e executa programas e projetos de estudo, pesquisa, documentação, difusão e fomento de expressões dos saberes e fazeres do povo brasileiro. Disponível em: http://www.cnfcp.gov.br/interna.php?ID_Materia=2
2 O Programa de Promoção do Artesanato de Tradição Cultural (Promoart) foi concebido com a finalidade de apoiar produtores de artesanato de tradição cultural no Brasil, enfatizando seu profundo enraizamento na cultura local e o valor identitário que assume para diferentes grupos sociais.
3 Espaço de exposições de curta duração (cerca de 40 dias) voltado para difusão e comercialização da produção de artistas e comunidades artesanais. Precedidas de pesquisas de campo e documentação fotográfica, as mostras contam com edição de catálogo etnográfico e, em decorrência da divulgação e do contato direto com o público, propiciam, para artistas e artesãos, oportunidades de expansão de mercado e condições de participação mais efetiva no processo de valorização e comercialização de sua produção. Disponível em: http://www.cnfcp.gov.br/interna.php?ID_Secao=46
4 Em outro artigo em fase de elaboração estou trabalhando com o conceito de sistemas de representação, que na definição de Stuart Hall, se constitui não por conceitos individuais, mas pelas diferentes formas de organizá-los, agrupá-los, arranjá-los e classificá-los, e pelas complexas formas de se estabelecer relações entre tais conceitos. Para o autor, representação é uma prática, uma espécie de trabalho, em que se utiliza objetos materiais e efeitos. Mas o significado não depende dos atributos materiais do signo, mas da sua função simbólica. (HALL, 1997, p. 25).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABU-LUGHOD, Lila. Writing Womens Words: bedouin stories. Berkeley: University of California Press, 1993.
BELAS, Carla Arouca. Capim dourado: costuras e trançados do Jalapão / pesquisa e texto. Rio de Janeiro: IPHAN, CNFCP, 2008.
CANCLINI, Néstor Garcia. As culturas populares no capitalismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
LIMA, Ricardo Gomes. Entrevista concedida a Daniel Douek. 2010. Disponível em: http://www.acasa.org.br/ensaio.php?id=265&modo= Acesso em: 19 jul. 2011.
NORONHA, Raquel (org.). Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato de Alcântara. São Luís: EDUFMA, 2011.
ORTNER, Sherry B. Subjetividade e crítica cultural In: Horizontes Antropológicos. N. 28. Porto Alegre, 2007.
MILLS, C. Wright. Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.