ENTREVISTA
RAQUEL NORONHA
Publicado por A CASA em 9 de Janeiro de 2012
Por
Daniel Douek

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"O design etnográfico nos possibilita exercer o distanciamento do olhar"
Raquel Noronha é designer, mestre e doutoranda em ciências sociais, professora assistente do departamento do Departamento de Desenho e Tecnologia da UFMA e coordenadora do projeto Iconografias do Maranhão.
Como se envolveu com o trabalho em comunidades de artesãos?
Me formei na Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI), no Rio de Janeiro, e logo depois da faculdade vim morar no Maranhão. Minha experiência profissional começou a se desenvolver no âmbito da qualificação de artesanato, por meio de consultorias para o Sebrae e Prefeitura. Comecei a trabalhar numa área que o Sebrae chama de Design Urbano, isto é, criação de identidade visual para praças de cidades turísticas do interior do estado. Entrando nessa questão da identidade cultural dos municípios, passei a estudar o modo como as pessoas viam e percebiam essas cidades. Tal foi o tema do meu mestrado, que eu desenvolvia paralelamente na UFMA, no programa de pós-graduação em Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia: como as pessoas que vivem e trabalham no centro histórico de São Luís percebem a noção de patrimônio. Eu já era professora do Departamento de Desenho e Tecnologia da universidade e comecei a trazer os alunos para esse universo da pesquisa de campo. Uma coisa que eu sempre falo para eles: quem projeta, projeta alguma coisa para alguém, então vamos entender quem é esse alguém, vamos parar de projetar para um usuário imaginário, vamos projetar para um usuário que a gente conhece, que a gente pode chegar perto e entender as suas necessidades, as necessidades de uma situação real, de um campo empírico. O projeto Iconografias no Maranhão surgiu num esforço de tentar teorizar sobre o que eu estava fazendo na prática.
Quais foram as principais ações desenvolvidas no projeto Iconografias do Maranhão?
A primeira iniciativa foi uma intervenção no bairro da Praia Grande, centro histórico da cidade, mapeando imagens, pessoas, até os cortes do cabelo. Foi um mapeamento iconográfico bastante amplo. Fizemos um livro, mas não foi publicado, porque era uma iniciativa dentro da sala de aula, sem financiamento.
Para a segunda etapa, inscrevi o projeto no edital do MEC e MinC de financiamento de projetos de extensão, o ProEx/Cultura. Conseguimos o financiamento e pude ir a campo com os alunos de uma forma mais estruturada, sempre com a ideia de observar e deixar o outro conduzir o nosso olhar. Treinamos o olhar com a teoria e vamos a campo colocar essa teoria em prática junto ao nosso interlocutor, junto ao nosso informante. O objetivo inicial do projeto era mapear os ícones da cultura popular e da religião afro no Maranhão, o que seria um trabalho hercúleo. Fiz um recorte em treze grupos significativos de Tambor de Crioula, Bumba meu Boi, blocos afro e terreiros de Tambor de Mina. Foi o auge da experiência do Iconografias, um trabalho intenso durante um ano e três meses em que agreguei muitos estudantes e o resultado foi incrível. Vi meus alunos desabrochando e conseguimos chegar ao desenvolvimento de produtos que tenho chamado de “produtos com identidade local”, no sentido da teorização que a Lia Krucken faz de produtos terroir, ou seja, produtos que só podem ser desenvolvidos em determinados locais que oferecem as condições necessárias para tanto. São condições ligadas ao clima, à natureza, à própria cultura desses grupos específicos. Brinco que estávamos inventando uma tradição, inventando um produto, inventando uma forma de se mostrar e de mostrar esse simbolismo: o que era significativo, na opinião deles, para representar visualmente sua própria cultura e, em nossa opinião, como essas imagens poderiam ser convertidas em ícones. É um processo de representação gráfica de um pensamento coletivo. O designer está nesse meio, ele é o mediador entre essas duas pontas, a representação coletiva e a representação gráfica.
Nesse papel de mediação, é fundamental o conhecimento antropológico, aí está o pulo do gato dessa associação entre design e antropologia: como você traduz, sem impor ao outro, a sua voz, o seu traço gráfico, mas buscando conceitualmente nesses grupos uma identidade visual. Foi esse o desafio. Cada grupo tem uma iconografia com um traço gráfico diferente, porque esse traço gráfico está ligado a um conceito que foi construído a partir da observação participante. Tenho alunos que nunca tinham ido ao tambor de crioula, que nunca tinham ido a grupos de Bumba meu Boi e, hoje, um deles até dança em um grupo de Bumba meu Boi. Na perspectiva patrimonial do projeto, trata-se de conhecer para preservar, mostrar para ser conhecido e, com isso, preservado.
A terceira etapa, eu intitulei Identidade é Valor. Já era uma etapa mais madura, em que não nos preocupamos tanto com a representação gráfica do ícone, estávamos mais interessados em entender a cadeia produtiva desses grupos de artesanato do interior do Maranhão. Tais grupos eram assistidos pelo Sebrae, já existia um laudo antropológico elaborado por dois professores da UFMA – professor Benedito Souza Filho e professora Maristela de Paula Andrade – para o Iphan, indicando possiblidades de identificação e registro de patrimônio material em Alcântara. Então, partimos para o trabalho de campo mais intenso, com menos alunos, um trabalho antropológico muito mais profundo no sentido de mapear a cadeia produtiva e entender o processo criativo dessas comunidades; entender sua perspectiva temporal, como era antes e como é agora, e também numa forma sincrônica, isto é, ver, no dia a dia, como reelaboram as práticas, como se adaptam às contingências do cotidiano, às questões de comercialização e de produção e como dão saída a esses produtos, incluindo o relacionamento com os intermediários, com as instituições de fomento – considerando um certo paternalismo que também vai sendo criado entre essas instituições e as comunidades.
Agora estou indo novamente a Alcântara para estudar a questão da identidade do artesanato. Como esse artesanato pode ser comunicado patrimonialmente, a partir de uma visão das próprias artesãs? Como elas se representam como artesãs? Tem toda essa questão da identidade étnica, pois Alcântara é um grande território étnico. Existe essa questão da titulação das terras quilombolas, e isso é um filão de mercado, um artesanato que é produzido por comunidades quilombolas.
Atualmente, estamos na quarta etapa do projeto Iconografias do Maranhão, fazendo o mapeamento dos operários navais das embarcações tradicionais do Itaqui Bacanga, uma área em torno da UFMA. Estamos pesquisando as embarcações e o manguezal, principalmente essa relação entre o homem e o manguezal, como realizam seu trabalho e tiram o seu sustento. Estamos produzindo uma nova série de ícones que iremos lançar até o final de março e esta etapa é patrocinada pela FAPEMA.
De que maneira se articula a relação entre produção de artesanato para venda e consumo de bens pelas artesãs? Produtos vendidos a turistas são também aproveitados para uso próprio?
Esse artesanato que elas produzem não é para uso próprio. Há uma história curiosa. Eu estava em Itamatatiua, uma comunidade onde artesãs produzem cerâmicas, e elas estavam tomando o controle da pousada local, para que os visitantes pudessem conhecer sua produção, o que facilitaria a venda. Elas estavam com um dilema sobre como arranjar dinheiro para comprar louça para a pousada. Então, eu sugeri: “Gente, vocês não produzem pratos e travessas para restaurantes? O pessoal não vem comprar isso de vocês? Por que não fazem para a pousada?”. E me responderam: “Ah, a gente queria tudo limpinho, tudo branquinho”. Ou seja, há uma baixa autoestima em relação ao que é produzido por elas. Falam que é bonito, mas não usam em casa.
Em Santa Maria, estava numa conversa cotidiana com três artesãs que trabalham com fibra de buriti, produzindo sacolas e jogos americanos. Aí elas falaram: “Isso é bolsa para turista”. Eu perguntei: “Mas vocês não usam?”. E uma delas respondeu: “Não, isso é coisa para turista, eu gosto daquela de couro com a fivela dourada com o nome da marca”.
Uma análise que podemos fazer desse artesanato inserido no mercado global é que ele já é produzido para o trânsito. Dentro de uma perspectiva do multiculturalismo e da globalização, esse artesanato já não é produzido, como afirmavam as definições primordiais de artesanato, para uso próprio. Em Alcântara, estamos vendo um processo muito acelerado de desprendimento dessa função do artesanato para a comunidade. Néstor Garcia Canclini, que estuda o artesanato no México no final da década de 1970, já fala de uma ressignificação do artesanato para um uso secundário, mas estabelecido pelos turistas – o turista dá uma função de enfeite, de adorno. Os artesãos, entretanto, ainda vendem com uma função primária, de uso. Já em Alcântara, pesquisando trinta anos depois de Canclini, percebo esse processo completamente acelerado: as próprias artesãs já ressignificam esse uso. Elas não esperam o outro pedir uma adaptação, elas se antecipam. Como em Brito, outra comunidade na qual estou trabalhando, em que fazem redes com a cor dos times de futebol. Luis da Câmara Cascudo tem um grande estudo sobre a rede de dormir, mostrando que é uma coisa pessoal, indicando o uso das cores claras pelos senhores, discutindo todo o papel social da rede de dormir na comunidade sertaneja em que a gente vê essa questão. A rede continua sendo um objeto de uso pessoal, só é feita por encomenda, não há redes prontas para comprar a qualquer hora, mas as artesãs já adaptam para a cor do time de futebol, para o tamanho da pessoa (P, M ou G), elas já parcelam, coisas que não faziam antes. Há toda uma adaptação para um uso de terceiros e não mais um uso da própria comunidade.
O que é iconografia?
Existem vários conceitos para iconografia. Os mais tradicionais estão relacionados a imagens de santos, imagens religiosas. Penso numa definição que amplie essa noção da própria imagem. Iconografia é mais do que representação gráfica, é um processo semiótico de tradução de uma representação coletiva. Nosso papel de designer nesse âmbito da cultura tradicional é construir a materialidade desses símbolos elaborados cultural e socialmente. Entendo iconografia como a tradução de um símbolo para um ícone num processo compartilhado, dialógico, que envolve todas as partes da construção da imagem, desde a percepção até a tangibilização desse imaginário. Iconografia é muito mais do que esse resultado visual, prático, é o processo.
Como os ícones são construídos?
A partir de uma metodologia que vem sendo elaborada há alguns anos e está sempre em construção. Basicamente, existem três momentos da construção iconográfica – isso foi baseado na teoria da análise de obras de arte de Erwin Panofsky, que tem uma correspondência profunda com o que estamos fazendo.
A primeira etapa consiste no trabalho da interpretação pré-iconográfica, quando vamos a campo sem anotar, sem fotografar, apenas para conhecer o que iremos iconografar, num processo de convivência que dura de três a quatro meses. Nesse momento, a gente olha, escuta, percebe. Escuta muito mais do que fala. As pessoas estranham nossa presença, então há um processo de naturalização e de adaptação da gente no espaço do outro e do outro em relação à nossa presença em seu espaço. Houve lugares em que não fomos aceitos, aí não tem como estabelecer esse diálogo, e o processo foi interrompido.
Se formos aceitos, iniciamos a segunda etapa, que é o processo da identificação desses ícones: o que é importante para o fazer e o saber daquela comunidade? Recebemos informações sobre isso e aprendemos. A gente testa, brinca, bota a mão na massa. Vamos convivendo e criando uma relação com essas pessoas. A criação dessa relação é fundamental para todo o processo, uma vez que o ícone vai melhor traduzir o que a gente melhor entender. Por exemplo, o uso de cores, o uso de traços, a percepção de como é aquele grupo, se é um grupo unido, se é um grupo que tem uma hierarquia muito forte, se é um grupo que é mais tradicional, se é mais contemporâneo, se já está permeado pelas classificações do governo do estado, se ele é um grupo alternativo, considerados aqueles que já introduziram instrumentos ou elementos rítmicos diferentes do que é considerado tradicional. Não buscamos, de forma alguma, uma “autenticidade”; a mistura e o novo também são bem-vindos. Não selecionamos os grupos por serem mais ou menos autênticos, mas sim pelo papel social que desempenham na comunidade, sua produção, o que é comunicado, os produtos culturais que eles nos fornecem, sem essa preocupação com o fato deles serem tradicionais ou não. Nesse segundo momento, começamos a fotografar, percebemos que determinado tambor é mais importante do que outro, questionamos os motivos dessa maior importância. Em seguida, começamos a perceber quais são os ícones, quantos são. Nesse trabalho da cultura afro-maranhense, eram muitos grupos, foi um trabalho bem amplo. Delimitei uma quantidade média de ícones e queria que houvesse uma costura entre eles. Então, exerci um papel de edição e direção de arte para que houvesse uma visualidade coesa em relação aos ícones de cada grupo. Para criar e manter um conceito coletivo, houve um trabalho minucioso e exaustivo. Fizemos entrevistas, anotamos palavras, sempre com o intuito de construir conceitualmente a visualidade.
E então, seguimos para a terceira etapa, que é a finalização dos ícones, em que entra o trabalho da vetorização, do desenho propriamente dito. Muitas vezes, esse desenho era feito à mão, de uma observação do próprio local, dependendo da capacidade técnica de cada aluno, ou, então, era vetorizado em cima da própria foto, mas utilizando um conceito gráfico visual. Fazíamos muitos mapas conceituais de estilos de traços, coisa que remetem a determinado grupo de boi; fizemos uma espécie de moodboard de cada grupo, com cores e formas. Existem ícones mais geométricos, outros mais detalhados, mais fotográficos, outros mais orgânicos. Isso tudo tem a ver com o conceito do próprio grupo. Feitos os ícones, retornamos à comunidade para discutir essa visualidade, ver se aquilo está de acordo com o que eles pensam sobre si ou se tem que mudar. Tem horas em que acertamos em cheio e tem horas em que cometemos equívocos, e é esse o processo, de ir e voltar até que se chegue num resultado que seja ótimo tanto para nós como para eles.
Por um lado, a cultura é dinâmica, está em constante transformação; ícones, por sua vez, são representações estáticas. Como não petrificar a cultura com o estabelecimento de ícones?
Acho que pela a forma como utilizamos essas imagens. Nossa proposta não é fazer com que aquilo se torne símbolo novamente, isto é, não pretendo que aquilo simbolize o que nós reconhecemos como símbolo de determinada comunidade. Mas isso está um pouco fora do nosso controle. Por exemplo, tem um ícone do Boi da Floresta publicado no livro que são umas bandeirinhas verdes e rosas na sequência verde, rosa, verde, rosa, verde, rosa, porque era a forma como eles colocavam as bandeirinhas no barracão do boi. Quando foram trocar o telhado, tiraram as bandeirinhas, jogaram fora, e, depois que o telhado ficou pronto, colocaram bandeirinhas novas. A Nadir, coordenadora do grupo e esposa do seu Apolônio, mestre do boi, falou: “Não podemos fazer uma fileira verde e outra rosa, porque lá no livro está verde e rosa, verde e rosa, verde e rosa”. Então, de certa forma, já estamos influenciando uma visualidade. Já vi ícone bordado em fantasia de boi. Fomos lá, observamos algum detalhe no boi – um santo, por exemplo –, fizemos o ícone, e ele voltou da nossa forma para o boi. Então, é claro que esses ícones são estáticos, e eles são ressignificados e se transformam de novo em símbolos. Mas acredito que, nesse processo, relativiza-se o papel da imagem. É preciso dizer que aquilo não é uma verdade absoluta; que aqueles ícones foram escolhidos pela nossa percepção naquele momento com aquela pessoa. Talvez, se fosse outra pessoa sendo entrevistada, diria outra coisa. A iconografia não é uma coisa encerrada em si própria. Aquilo ali é nossa visão, é inevitável que seja, é o nosso recorte, a nossa abordagem. Não acredito que se enraíze. Vejo como uma coisa que faz parte da própria imagem, é fugaz, é efêmera, se ressignifica, se transforma em outra coisa, não fica estática, parada no tempo.
Com a criação de um cardápio de opções contendo o que seria a “identidade de um lugar”, não se deslegitimam outras possibilidades? Há inovações dos grupos que ultrapassam os limites dos ícones publicados no livro?
Acho que essa questão tem a ver com a forma como disponibilizamos as imagens. Elas não são só publicadas no livro, estão sempre disponíveis virtualmente. Entregamos isso sem nenhum tipo de fim lucrativo, e as pessoas, no início, não entendiam o que ganhávamos. Sempre falei que trabalhava na perspectiva da preservação patrimonial, e uma das formas de preservação é a comunicação do patrimônio. Se uma imagem circula e é entendida por alguém lá na frente, essa pessoa passa a ter conhecimento sobre o que é aquela manifestação, aquele processo criativo, aquela comunidade, aquele grupo, então essa pessoa tem a capacidade de refletir sobre todo o processo. Nesse novo livro, mostramos a cadeia produtiva, para indicar o quanto é caro produzir artesanato – quando falo isso, refiro-me a vários tipos de valor, não só o valor econômico. Quando pedimos dois reais de desconto numa feira de artesanato, estamos desqualificando todo esse processo, cadeias produtivas que têm quatorze ou quinze etapas, realizadas manualmente, por pessoas que muitas vezes só têm essa fonte de renda.
Respondendo a pergunta, a forma como as pessoas se apropriam dessa imagem não é estanque, e elas sempre têm a possibilidade de usá-la de uma maneira diferente daquela que está apresentada no livro. O processo de construção iconográfica não se encerra e outros ícones podem ser gerados. Tenho muito cuidado, por exemplo, com a criação de marcas territoriais, que foi uma das abordagens utilizadas em meu trabalho com o Sebrae, em duas cidades importantes aqui do Maranhão, Carolina e Tutóia. Queriam imagens que fossem a cara dessas cidades, mas fico sempre pensando em sistemas de imagens, não imagens únicas, que remetam diretamente a um elemento ou algum ponto turístico. Fico pensando nos lugares comuns, nos lugares que são compartilhados. Isso aconteceu, por exemplo, num trabalho que fizemos em São Luís, a marca territorial de um bairro, utilizando a igreja. A igreja era o lugar comum desse bairro, o lugar de congregação não só religiosa, mas comunitária, o lugar em que as pessoas se reúnem; as crianças jogam bola em frente à igreja; a chave da igreja não fica com o padre, fica com o chefe comunitário. Então, é o lugar de fruição mútua. Quanto mais ampla for essa representação, menor a possibilidade de negarmos outras possibilidades, de negarmos que outras imagens representem aquele lugar.
Sou muito a favor do compartilhamento digital. Isso é fundamental para a abordagem que tenho do projeto, que é querer que as pessoas se apropriem dessas imagens, porque ao se apropriarem, ao torná-las suas, elas se sentem à vontade para mudá-las. Não é uma coisa intocável: “aquilo é da designer Raquel Noronha”. Não, não é, é de cada um que participou, é meu, é das artesãs, é dos meus alunos. Está tudo na internet, baixa quem quiser. Esse compartilhamento é o que promove o conhecimento, a preservação patrimonial e a possível abertura para que outras imagens sejam construídas, testadas, sampleadas.
Disponibilizar um arquivo e fazer com que uma pessoa que não tenha um conhecimento técnico específico altere esse arquivo, às vezes, é malvisto. Mas o processo é tão experimental que isso não é um problema. É uma releitura, uma adaptação, uma ressignificação dessas imagens. É importante para que não se cristalize, para que sejam fomentadas novas iniciativas.
Como fazer para que um ícone não se transforme num estereótipo?
Aí entra uma questão muito importante que é o conhecimento da pesquisa de campo da metodologia antropológica, isto é, a metodologia da pesquisa etnográfica no trabalho do designer. A confluência desses dois campos de conhecimento, design e antropologia, é fundamental. Por quê? Porque faz com que possamos construir imagens como textos contemporâneos, imagens que têm portas e janelas para se comunicar com o mundo – não são imagens fechadas. E quem é o autor dessas imagens, são os artesãos ou somos nós? A meu ver, a autoria é compartilhada entre vários agentes. Essas imagens deixam a porta aberta.
Para chegar a uma imagem que não constitua um estereótipo, sempre deixei meus alunos muito à vontade: “Pode ser dessa cor?”. “Pode”. “Pode ser dessa outra cor?”. “Pode”. “Pode ser mais dessa cor?”. “Pode”. Eles falam: “Raquel, parece que pode tudo!”. Pois é, o que não pode é eu dizer como deve ser feito. Como coordenadora, tenho que dar a liberdade e o consentimento para que aquele aluno, aquele artesão ou aquele músico coloquem a mão deles também. Acredito também que essa possibilidade do compartilhamento evita que as imagens se tornem estereótipos.
O conhecimento da antropologia nos coloca diante de possibilidades dialógicas de contornar algumas situações. Por exemplo, quando chegamos ao campo, sem câmara fotográfica, sem papel para anotar, apenas escutando o outro, é uma forma dessa pessoa não se sentir subjugada, não sentir que existe uma hierarquia de um conhecimento científico sobre um conhecimento empírico. É uma forma interessante de abordar e ser aceito, de se inserir naquele contexto. Isso não quer dizer que haja uma neutralidade – eu sou pesquisadora e os artesãos são artesãos, existem conhecimentos específicos –, mas esse nivelamento da forma como se conversa, da forma de se vestir para ir ao campo, da forma como se olha para as pessoas, como se diz as coisas, isso tudo é um aprendizado que construímos a partir dessa experiência etnográfica. Isso ajuda a elaborar um projeto mais direcionado para o outro, um projeto mais aceito, mas não é uma novidade no campo do design, sabemos que existem correntes de pensamento filosófico que trabalham com essa possibilidade do projeto coletivo, da coautoria.
O que é design etnográfico? Qual o papel da etnografia nos projetos de design?
Comecei a escrever sobre isso no início do projeto; em seguida, uma orientanda minha consolidou esse pensamento em sua monografia; depois, nós publicamos alguma coisa a respeito.
Em nosso imaginário, está presente a ideia de um “outro” muito distante. Isso está em toda literatura antropológica: o “outro” que está em Bali, o “outro” que está na Polinésia. De fato, esses outros com quem estou trabalhando lá em Alcântara são muito distantes da minha realidade; vivo numa cidade, tenho uma vida diferente da vida rural. Mas o design etnográfico não deve ser utilizado apenas no campo ou em uma realidade ligada à cultura popular. Às vezes, nos vemos em uma situação em que o “outro” é a gente mesmo, é o nosso vizinho. Nós projetamos também para quem está ao nosso lado, e é muito complexo, porque a gente supõe que conhece aquela realidade. O design etnográfico, ou a pesquisa etnográfica aplicada ao design, possibilita a familiaridade com o que nos é estranho e um estranhamento com o que nos é familiar. Por meio de técnicas e metodologias, o design etnográfico nos possibilita exercer, de forma consciente e intencional, o distanciamento do olhar. Assim, podemos desconstruir pré-noções e preconceitos, bem como a ideia de uma imagem que se tome ou que se perceba como uma verdade absoluta. Sempre faço questão de deixar muito claro para quem eu trabalho, seja uma empresa, sejam meus alunos, sejam as comunidades: aquilo ali é um recorte, fruto de uma visão compartilhada, num determinado momento. Não quer dizer que daqui a um ano, se eu voltar lá, não veja outras coisas. Minha proximidade naquele momento e meu afastamento posterior possibilitam olhar de outra forma.
Então, a antropologia aplicada ao design nos dá essa chave de olhar de uma forma que vai além do olhar do designer. Faz-nos questionar nosso próprio papel na sociedade, com aquelas pessoas; faz-nos perceber que o artesanato que estamos pesquisando, traduzindo e representando tem um papel social. A partir dos objetos que são produzidos, podemos falar sobre aquela cultura específica – estou usando o conceito de “cultura” em uma abordagem particular, assumindo que podemos considerar cada uma dessas comunidades como uma cultura; há um amplo debate sobre “cultura” e “culturas”, e prefiro trabalhar nessa abordagem de que cada um desses grupos tem uma cultura, uma forma de se relacionar, pensar, construir e ressignificar esses artefatos.
Para os estudantes do curso de design, quais os benefícios da experiência junto a uma comunidade de artesãos? E para a comunidade de artesãos, quais os benefícios dessa parceria?
Sem dúvida, é uma via de mão dupla. Para os alunos, é um novo olhar que vai sendo construído, uma possibilidade de conhecer uma realidade que muitas vezes está distante da sua. Isso os sensibiliza para esse processo de estranhamento e familiarização, os deixa mais críticos em relação a seu próprio papel na sociedade. Acho que é quase um ato cívico olhar para o outro e perceber que existe uma realidade diferente da sua. Além disso, o embate entre conhecimento acadêmico e conhecimento empírico é fundamental: é um exercício de humildade reconhecer que pessoas têm um conhecimento diferente do seu e nem por isso melhor ou pior, é apenas diferente.
Por outro lado, se a parceria é feita com respeito e cuidado, as comunidades têm muito a ganhar no sentido de uma qualificação técnica de determinados aspectos de sua produção, otimização do processo, tratamento de pós-uso de seus produtos, desenvolvimento de novos artigos para comercialização, inserção de processos que reduzem impactos ambientais – aliás, todas as cadeias produtivas que mapeamos em Alcântara geram fortes impactos ambientais.
Se entrarmos nesse discurso da “pureza”, da “autenticidade”, esse artesanato, como patrimônio, corre o risco de definhar. Por exemplo, em Itamatatiua as artesãs já estão muito idosas. O forno com que elas queimam a cerâmica é a lenha, e elas dizem que estão muito cansadas e não conseguem pegar a madeira. Como já não tem lenha perto, e elas têm que andar várias horas carregando aquilo. Se em algum momento for implantado um forno elétrico ali, vai haver mudança no produto? Vai. Vai haver mudança na coloração, na textura, na resistência. Mas a universidade pode ter um projeto nessa comunidade para testar o material e encontrar uma temperatura ideal para esse forno que mantenha determinadas características que são fundamentais para a cerâmica de Itamatatiua. É melhor mudar ou acabar? Esse tipo de intervenção da universidade é extremamente positivo nesses processos que eu prefiro não chamar de “qualificação artesanal” – esse é um termo que o Sebrae usa que eu acho extremamente pejorativo. Não é o design que qualifica a produção, a produção já tem uma qualidade intrínseca, o que fazemos é otimizar alguns processos, deixar num ponto ótimo. Podemos perguntar: ótimo para quem? É aí que está a sutileza do processo, temos que perceber que nem sempre aquilo que é ótimo para a produção do ponto de vista da geração de renda e lucro é ótimo para as artesãs pesando na tradição, no que é feito ancestralmente, na opinião delas. Voltando ao design etnográfico, é essa metodologia que nos possibilita perceber que o que é bom para nós, às vezes não é bom para eles.
Nos últimos anos, é crescente a participação de universidades em projetos que promovem a interação entre designers e artesãos. Qual o papel dessas instituições nesse tipo de atividade?
A universidade é necessária principalmente como mediadora desses processos. Quando uma instituição como, por exemplo, o Sebrae entra numa comunidade, tem metas para atingir. Muitas vezes essa meta está além da capacidade produtiva das comunidades. Ouvi diversos relatos de encomendas tão grandes que as comunidades não conseguiram cumprir. Por que não conseguem cumprir? Porque não têm capacidade produtiva. Então, às vezes, a produção está afinadinha, mas se você pede um pouquinho a mais do que elas têm possibilidade de produzir, isso pode causar uma extrema frustração nas artesãs, porque elas não vão conseguir dar conta, e o que era uma enorme possibilidade de retorno financeiro se transforma num fiasco. Nesse sentido, o papel da universidade é fundamental para mediar e gerenciar. A gestão em design é muito importante, porque com o mapeamento de uma cadeia produtiva, podem-se analisar impactos ambientais, a qualidade do material, a resistência da fibra, o tingimento, quanto tempo dura. Esse conhecimento acadêmico é fundamental para embasar laudos, por exemplo, de uma instituição como o Sebrae, dos museus que trabalham com artesanato e outras instituições não governamentais. Na universidade, temos capacidade e pessoal técnico pronto para esse tipo de mediação, para dar os limites dessa negociação entre artesão e mercado, que é muito delicada. Muitas vezes, instituições têm esse papel de aumentar a produção, mas essa curva tem limite, ela não é ad infinitum.
De acordo com Adélia Borges, o encontro entre designers e artesãos é, muitas vezes, um encontro entre “letrados” e “iletrados”. Quais devem ser os cuidados para atenuar hierarquias existentes na sociedade e estabelecer uma relação mais equilibrada?
É preciso partir dessa perspectiva da diversidade. Cada um deve perceber que o seu ponto de vista não é melhor que o do outro – você tem o seu, ele tem o dele. Para fazer um bom projeto, você não tem que abdicar do seu e ver como o nativo vê, porque isso é impossível, já que são pessoas diferentes, que estão em culturas diferentes, mas você não pode pensar que sua cultura é superior à dele. Acho que isso é um grande início para essa conversa: você perceber que o seu conhecimento e sua visão de mundo são uma coisa e as do outro, outra, e a sua não é melhor que a dele e nem vice-versa. Se você se propõe a sair de sua casa e ir projetar para uma comunidade, pegando horas de viagem de caminhão ou de ônibus para chegar lá, barco, o mínimo é perceber que você está indo lá não para impor alguma coisa, mas para escutar. Tem que ter essa visão. Se você vai lá cheio de ideias pré-concebidas, cheio de ideias formadas, simplesmente para confirmar suas ideias, você está se negando ao exercício do olhar, do ver e do escutar. Esse é o grande exercício: escutar o outro e fazer esse papel de mediação, senão não estamos ganhando nada.
Há muita discussão sobre qual o limite da interferência em uma comunidade de artesãos. Enquanto designers costumam ser mais abertos em relação a mudanças na forma dos objetos, antropólogos tendem a ser mais conservadores. Como você, que tem um pé no design e outro na antropologia, avalia esta questão? Qual é o limite do trabalho do designer, principalmente no que se refere às propostas de transformação dos objetos?
Uma vez fui a Pequiá, uma comunidade de artesãos bem distante de São Luís, próxima aos Lençóis Maranhenses. Andei horas e horas de carro traçado na areia. Quando cheguei, fui entrando no galpão e, ao lado de potes maravilhosos de cerâmica que elas produziam, vi um jogo de sushi de cerâmica. Obviamente, ao ver aquilo numa lonjura daquela, fiquei curiosa e perguntei: “Quem teve a ideia de fazer isso?”. Uma delas respondeu: “Minha filha, que mora em São Luís; ela vai a esses restaurantes de comida japonesa e deu a ideia de fazer”. Foi a filha dela que sugeriu. Se tivesse sido um designer, alguém de fora, acho que seria um problema, já escutei reclamações de antropólogos assim: “Olha o que ele fez com a produção, olha o que ele inseriu ali, algo que não tem nada a ver com aquela cultura”. Como foi a filha de uma artesã, acho que os antropólogos não se incomodariam tanto: “Ah, é natural, é da adaptação, é do contato com a cidade, uma ressignificação”.
Esses limites são extremamente orgânicos. Seria uma irresponsabilidade minha dizer: “O designer deve ir até aqui e o antropólogo deve ser mais tolerante e ver que isso precisa mudar senão vai acabar”. Primeiro, depende de cada profissional que está inserido no projeto; segundo, cada vez mais um tem que entender o trabalho do outro, porque eu percebo que falta um entendimento do que é a função de um e qual é a do outro. Há pouco tempo, escrevi um artigo sobre isso relatando que, alguns dias após o lançamento do livro Identidade é valor, recebi um email de um designer comentando uma passagem em que uma artesã dizia que pintava as peças de cerâmica com tinta acrílica porque um designer do Sebrae mandou. O e-mail era justamente desse designer, que era consultor do Sebrae, e ele queria me mostrar o outro lado da moeda. Ele disse que só sugeriu a ela que pintasse as peças que estivessem quebradas, assim não perderia a peça inteira! E naquela situação, as artesãs também jogaram comigo. Não devemos atribuir ao artesão um papel passivo, eles também articulam com a nossa presença nestes locais. Eles não são coitadinhos para os quais impomos alguma coisa como designer; o antropólogo também não precisa tomar conta. Artesãos têm capacidade de agência, têm uma capacidade de negociação. Seria etnocentrismo de nossa parte achar que a gente está lá fazendo o que quer. Eles também negociam o tempo todo – e falo negociar não no sentido negativo, é extremamente positivo que eles negociem, que eles articulem. O que aconteceu naquela ocasião foi que as artesãs estavam falando mal do Sebrae de alguma forma. Ao dizer que foi o Sebrae que mandou, elas estão negando o nome do Márcio Guimarães, que é o designer.
São nessas ranhuras, nessas dobras extremamente complexas que percebemos esses limites, onde você pode ir, onde você não pode. E é escutando, percebendo, estando lá no lugar que se tem a possibilidade e a capacidade de negociar com os artesãos, com os antropólogos e com os outros mediadores dessas cadeias produtivas, como a moça da loja, que tem um papel importantíssimo, porque ela dita moda, ela fala o que sai mais e o que sai menos, ela faz controle de qualidade, ela realimenta o processo.
Todos esses limites são descobertos no campo. Não adianta teorizar e falar dos problemas fora do campo. Temos que ter em mente que as pessoas com as quais a gente dialoga negociam conosco, assim como nós negociamos com elas. Não há como impor. A gente propõe, elas aceitam se elas quiserem. Agora, eu tenho que relativizar tudo isso. Nesse processo de interferir na produção de um artesão, existe poder de persuasão, existe promessa, existe sedução – “Olha, você vai ter lucro”. Isso existe e é nisso que os antropólogos estão de olho. Mas existem designers e designers, e o próprio processo de reflexão sobre o design vai formar novos profissionais mais capacitados para esse tipo de abordagem. Já sou professora da UFMA há sete anos e, hoje em dia, vejo ex-alunos com uma capacidade crítica mais aguçada por conta dessa sensibilização, por conta dessa metodologia de projeto. Acho que é uma questão de metodologia, de ver o outro. É também uma questão política do design, a velha questão do design social. Há muitas escolas que se preocupam com isso e temos profissionais cada vez mais capacitados para lidar com essa realidade.
Em determinado momento do livro Identidade é valor: as cadeias produtivas do artesanato em Alcântara (São Luis, EDUFMA, 2011) você fala a respeito das dores que, muitas vezes, o trabalho artesanal inflige às artesãs. Por que isso ocorre e como o problema pode ser contornado?
Fizemos um mapeamento não só da cadeia produtiva, mas de como as artesãs se relacionam com o seu próprio trabalho. Então, quando estávamos conversando com as artesãs, comecei a ver que elas mudavam de posição muitas vezes, que elas reclamavam “Está doendo minha mão”, “Vou parar um pouquinho” – a observação em campo nos permite esse tipo de olhar. Ou seja, a produção artesanal provoca dor. Tem até um trocadilho: a produção dá/da dor. A produção é incentivada por órgãos de fomento ao artesanato e sai do controle das artesãs. Quando tem encomenda – e eu estou tratando encomenda como uma categoria antropológica, a encomenda é, muitas vezes, o estopim do processo produtivo – elas têm que dar conta dentro de um determinado prazo. Percebo que quando esse produto é inserido no mercado, quem está comprando não respeita o tempo da produção, por mais que compre sob um discurso de responsabilidade social. O tempo do artesanato é um, o tempo do mercado é outro, e essas artesãs ficam no meio do tempo do artesanato e do tempo do mercado. Isso provoca profundas dores nessas mulheres, de ter que virar a noite para terminar o acabamento; filho, marido, todo mundo vai trabalhar no acabamento das peças para dar tempo de entregar no prazo. Esse prazo é ditado pelo mercado, não pelas artesãs – é imposto a elas –, e o que eu pretendia mostrar com esse livro é que o tempo do artesanato pressupõe “X” etapas daquela cadeia produtiva, e o valor desse artesanato incide exatamente nisso. Não podemos depositar o valor do artesanato no produto final, mas sim no processo produtivo. Se atribuirmos valor só ao produto final, iremos anular toda a cadeia produtiva.
A dor é presente em quase todas as artesãs, quase todas reclamam de dor, têm dificuldade de se locomover, a maioria das artesãs de fibra tem tendinite no braço, dor na vista. As que trabalham com potes grandes, têm dor na coluna, porque trabalham sentadas. É mais um aspecto onde pode haver uma intervenção, uma intervenção ergonômica, com a criação de uma mesa que melhore a altura dessas mulheres que trabalham sentadas no chão, por exemplo. Mas não adianta colocar essas mulheres em uma mesa alta, sentadas num banco; elas gostam de trabalhar sentadas no chão. E aí é o limite. O designer não pode chegar como uma mesa e um banco de última geração, com a altura certa, se não faz parte do costume sentar à mesa, se o costume é sentar no chão. Então, o designer tem que estar ali olhando, observando, pois ele tem que criar uma solução que se adapte àquela realidade.