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A CASA E O MUNDO

ARTIGO

O DESIGNER E A PRODUÇÃO DE SENTIDO NA CONSTRUÇÃO DE ICONOGRAFIAS

Publicado por A CASA em 23 de Maio de 2012
Por Raquel Noronha

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Neste artigo pretendemos refletir acerca do papel do designer, entendendo-o como mediador no processo de construção de iconografias a partir de sua atividade como intérprete e tradutor da representação da identidade cultural.

Iniciaremos nosso percurso explorando a própria noção de iconografia e buscando aprofundar nossa reflexão sobre as categorias de identidade, imagem e representação, que tomamos de empréstimo da Antropologia. Abordaremos, ainda, a dicotomia matéria-forma, situando-a como uma questão fundamental para nosso estudo sobre a tangibilização da cultura em imagens.

Propomos como estudo de caso o projeto Iconografias do Maranhão [1], nossa atual experiência de mapeamento iconográfico. Ao refletirmos sobre as etapas do processo de pesquisa – a análise e a síntese iconográfica [2] – estaremos problematizando acerca da produção e do consumo da cultura – mais especificamente sobre a sua imagem – no âmbito da contemporaneidade.

Iconografia: construindo uma categoria

Tradicionalmente, a Iconografia é o ramo da História da Arte que trata do conteúdo temático ou significado das obras de arte, enquanto algo de diferente da sua forma. (PANOFSKY, 1982: 19)

Em nossa abordagem, propomos uma ampliação do conceito. Consideramos iconografia como um conjunto de imagens representativo de uma coletividade, de um assunto, de um lugar: sua fauna, flora, elementos arquitetônicos, a religião, as festas, os saberes e as pessoas. Estamos falando de uma representação coletiva, categoria que aprofundaremos a seguir. Em uma iconografia, busca-se identificar que elementos são estruturantes da vida social e constroem as relações de significação em determinado grupo, ou qualquer outro recorte estabelecido para o mapeamento. Para Canclini (2004: 41), estes elementos que constroem o mundo das significações, as relações de sentido, constituem a cultura.

Em um mapeamento iconográfico, o objetivo é estabelecer prioridades, hierarquias sobre quais fenômenos e artefatos constitutivos da sociedade possuem um caráter diacrítico e evidenciam as suas peculiaridades.

Ao representarmos graficamente um artefato de importância simbólica para determinado grupo não temos o controle – e nem o desejamos – sobre a manutenção nas relações de significação dos sujeitos da pesquisa para com a representação que construímos deste artefato. Machado nos aponta que

O artesão da flauta conhece as entranhas de seu objeto, o modo como o instrumento produz escala musical, os segredos que determinam sua perfeição ou imperfeição; o pintor pinta uma flauta fantasmagórica, da qual conhece apenas a aparência externa. (MACHADO, 2001: 9)

Podemos comparar a ação do pintor tal qual entendida por Machado, ao trabalho de representação gráfica de um designer. Essa atividade é corriqueiramente empreendida por esse profissional. Se tomarmos a etimologia da palavra iconografia, temos na sua origem grega a construção: eikon, imagem + graphia, escrita. Escrita por meio da imagem.

Quando designers escolhem um determinado fenômeno ou artefato pertencente a um grupo social para tangibilizá-los em imagens, devemos observar que tal fenômeno ou artefato é uma instância dinâmica, que foi produzida, circula e é consumida na história social. Não é algo que apareça sempre da mesma maneira. Quando retiramos um artefato ou fenômeno de seu lugar [3] de origem e promovemos uma destinação diversa da qual foi prevista por seus produtores, estamos estabelecendo um trânsito intercultural deste signo. Sobre sua experiência como pesquisador do artesanato no México, Canclini aponta que:

Muitos artesãos sabem que o objeto vai ser utilizado de modo diferente do original, mas, como precisam vender, adaptam a concepção ou o aspecto do objeto artesanal para que seja usado mais facilmente nesta nova função, que talvez evoque seu sentido anterior por causa da iconografia, ainda que seus fins pragmáticos e simbólicos predominantes participem de outro sistema sociocultural. (CANCLINI, 2004: 42)

Estamos falando de circulação de bens e mensagens e este movimento acarreta mudanças de significado. Este processo caracteriza a passagem de uma instância social para outra.

Quando escolhemos um artefato e o representamos graficamente produzimos um ícone daquele artefato. Este ícone é a sua representação. Se este ícone for vendido impresso em uma camiseta para um turista, há um processo de ressignificação do ícone: uma nova interpretação, mediada por uma interpretação anterior – a do designer, que realizou a representação gráfica.

E esta é a grande questão de nossa investigação: no ato de iconografar, como se escreve a imagem? Com que traço gráfico o designer – a partir de uma pesquisa de campo, de um sistema sêmico (RAFFESTIN, 1993), e do uso sistêmico dos elementos da comunicação visual –, identifica, descreve, classifica e interpreta os seus sujeitos da pesquisa? Nosso objetivo é entender qual é essa linguagem capaz de transitar interculturalmente e cambiar entre o icônico e o simbólico, entre a representação identitária – construída a partir do entendimento da identidade local –, e as representações coletivas – construídas a partir de referenciais simbólicos diversos e heterogêneos.

Esta indagação torna-se mais obscura quando contextualizamos nossa análise no âmbito da contemporaneidade, quando falamos de hibridização da identidade e compartilhamento de códigos culturais. Quando as fronteiras do sentido se tornam fluidas e todas essas relações de trânsito não obedecem a uma sequência linear.

Representação, identidade e imagem

O uso da categoria representação apresenta-se com ambiguidade neste estudo. Ora falamos de representação gráfica, como sendo o resultado de uma interpretação gráfica de um artefato ou fenômeno, ora falamos de representação coletiva, definida por Durkheim como “modos de agir, de pensar e de sentir que apresentam a notável propriedade de existir fora das consciências individuais”. (DURKHEIM, 1978: 88).

Neste item, abordaremos as relações destas duas categorias, que, por hora, diferenciamos: representação gráfica e representação coletiva. A principal questão é: como uma representação gráfica torna-se uma representação coletiva? Quais os entraves de linguagem devem ser entendidos e traduzidos pelo designer no momento da interpretação sobre o que será finalmente integrado a um mapeamento iconográfico?

Primeiramente, buscamos traduzir para o âmbito do nosso projeto de pesquisa, as definições das categorias identidade e imagem. Tomamos contribuições do campo do Design e empréstimos das bases epistemológicas da Antropologia a fim de construirmos estas definições para uma metodologia de mapeamento iconográfico. Não nos aprofundaremos demasiadamente nesta questão, pois já nos debruçamos sobre ela em estudo anterior (NORONHA et ali, 2008). Traduzir a identidade cultural de uma comunidade, de um grupo social em uma imagem, uma marca visual, uma representação gráfica, implica apreender as diferenças (sociais e visuais) nos limiares deste lugar. Entendemos identidade como

algo que nos confere conforto e aquilo que nos tranqüiliza, aquilo que é comum a um grupo, a uma comunidade, a uma sociedade. A busca dessa identidade tem a função simbólica de consolidar o pensamento sobre determinado assunto, fato ou artefato, estabelecendo limiares, fronteiras. A identidade é uma repetição, que gera representações, discursos. A categoria de identidade se materializa nas marcas que produz. A identidade torna-se uma característica de superfície. (NORONHA et ali, 2008: sp)

De forma complementar, tomamos a categoria imagem como estas “marcas produzidas” pela identidade. Impressões plasmadas na (e pela) sociedade. Estamos falando de signos que são ao mesmo tempo produzidos e consumidos por essa sociedade. Mais a diante teremos a oportunidade de aprofundar a discussão sobre o fluxo de produção e consumo de representações gráficas, que a partir daqui, tomamos como sinônimo de imagem.

A imagem, conclui Platão, pode se parecer com a coisa representada, mas não tem a sua realidade. É uma imitação de superfície, uma mera ilusão de óptica, que fascina apenas as crianças e os tolos, os destituídos de razão. O pintor, portanto, produz um simulacro [eidolon, de onde deriva a palavra ídolo], ou seja, uma representação do que não existe ou do que não é verdade, engodo, imagem [eikon] destituída de realidade (...) (MACHADO, 2001: 9).

O designer, quando inserido em um campo de pesquisa tem uma dupla tarefa acerca da categoria representação: apreender as representações dos sujeitos de sua pesquisa, por meio da vivência no lugar da pesquisa e constatar preferências, gostos, novas formas de fazer, o saber local (símbolos da identidade cultural), que podem ser inspiradores, servindo como referência ao seu projeto; e representar, traduzir em linguagem gráfica (ou imagens, ou ícones da identidade cultural) as representações coletivas destes sujeitos.

Quando estes ícones da identidade cultural são lançados ao consumo, com a sua transformação em produtos, acontece um novo processo de tradução, o da sua apreensão por parte de quem os consome conhecendo pouco ou mesmo não conhecendo a sua dimensão simbólica enquanto representação coletiva da cultura de um grupo social. O que difere nesta apreensão destes signos é onde, em que lugar eles foram consumidos. A partir de qual sistema sêmico eles serão ressemantizados? Se há uma relação de territorialidade (RAFFESTIN, 1993) no ato do consumo ou se foram consumidos no não-lugar. Assim, o sentido da representação é reelaborado:

Os recursos simbólicos e seus diversos modos de organização têm a ver com os modos de auto-representar-se e de representar os outros nas relações de diferença e desigualdade, ou seja, nomeando ou desconhecendo, valorizando ou desqualificando. (CANCLINI, 2004: 46)

A iconografia do artefato ou fenômeno representado passa a ser o signo que informa. E como, no desterro, esses signos ainda comunicam a sua identidade? A imagem deixa de ser a representação iconográfica e passa a ser o símbolo em si.

Assim, em trânsito, ela deixa de se relacionar com seu artefato ou fenômeno diretamente e então ocorre um processo de ressemantização. A interpretação do signo se constrói a partir de um referencial distante, de segunda, terceira, quarta mão. Acreditamos que essa remissão às representações dos outros opera segundo as sistematizações que Foucault (2004) realiza acerca dos jogos de remissões. Perde-se a noção de origem, os discursos [4] são nós em uma rede de muitos outros discursos. Não está claro de qual lugar de fala o discurso parte.

O grau de eficiência desta tradução da identidade em imagem – a eficiência da representação – está associado ao nível de aproximação do designer com os sujeitos da pesquisa, ou seja, o quão inserido o designer estará no sistema sêmico do grupo social em questão. Para Raffestin,

A representação proposta aqui é, portanto, um conjunto definido em relação aos objetivos de um ator. Não se trata, pois, do “espaço”, mas de um espaço construído pelo ator, que comunica suas intenções e a realidade material por intermédio de um sistema sêmico. Portanto, o espaço representado não é mais o espaço, mas a imagem do espaço, ou melhor, do território visto e/ou vivido. É em suma, o espaço que se tornou território de um ator desde que tomado numa relação social de comunicação. (RAFFESTIN, 1993: 147, grifo nosso)

Desta forma, a construção do sistema sêmico está relacionada com a apropriação do espaço, portanto associada à categoria de territorialidade. Mas esta relação, no âmbito da produção e do consumo da cultura, parece-nos extremamente volátil, sem limiares definidos. Estamos falando de territorialidade em tempos de diáspora (HALL, 2003). Essa possibilidade nos leva a pensar na construção de inúmeras redes de significações sobre o mesmo artefato ou fenômeno, que longe de sua “origem” assumem conotações diversas. As posições dos agentes sociais no espaço revelam as relações de comunicação que Raffestin nos evidenciou: uma estrutura triádica, baseada nos agentes, suas representações e práticas sobre um espaço/tempo, e a conseqüente interação entre esses agentes, formando tessituras – conjuntos de relações de poder, simétricas ou assimétricas.

O consumo da representação

Neste item, partimos da definição de interculturalidade de Canclini, para analisar as relações de poder envolvidas no ato da apreensão das representações coletivas dos grupos sociais e a sua tradução na forma de representação gráfica. Observaremos como estes ícones transformam-se em artefatos e permeiam a dimensão sóciomaterial da sociedade. Ao cambiarem entre representação coletiva e representação gráfica, em um movimento orgânico, sem limites ou regras, as imagens adquirem um significado intrínseco, que Panofsky define como mundo dos valores simbólicos. Ao se tornarem uma apropriação de uma pessoa ou grupo, ou mesmo toda uma comunidade, essa imagem comunica um sentido convencional, compartilhado por aquelas pessoas. A construção deste significado intrínseco muitas vezes é mediada pelo designer que, então, torna-se a figura estratégica, considerando a atribuição de valor simbólico aos objetos a partir dos estudos sobre a magia, de Mauss.

Para Canclini, a interculturalidade remete à confrontação e ao entrelaçamento, àquilo que sucede quando os grupos entram em relações de troca. “(...) [A interculturalidade] implica que os diferentes são o que são, em relações de negociação, conflito e empréstimos recíprocos.” (CANCLINI, 2005: 17). Se o objetivo de uma iconografia é levar signos identitários de determinado grupo social para um público maior, que não vivencia as práticas sociais no lugar onde elas acontecem, o que ocorre é uma ressignificação destes ícones. E em um processo de distanciamento entre os “detentores” do signo identitário, passando pela tradução realizada pelo designer – a representação – e chegando à recepção deste signo por uma pessoa que não tenha uma memória de uma experiência prévia do artefato ou fenômeno em questão, temos um processo de alienação do caráter icônico daquele signo. Como dissemos anteriormente, a imagem deixa de ser a representação iconográfica e passa a ser o símbolo em si. Transforma-se em um objeto, ou, melhor dizendo, em um artefato. Sobre a palavra artefato, Cardoso nos expõe uma curiosa etimologia, que nos leva a relacionar os termos artefato e feitiço:

Para explorar melhor essa questão do design como uma espécie de fetichismo, vale a pena mais uma visita ao país das etimologias.
Lembrando que ‘fetichismo’ deriva, na sua origem indireta, do vocábulo português ‘feitiço’, faz-se relevante examinar mais detidamente esta última palavra. ‘Feitiço’ se relaciona ao particípio passado ‘feito’, no sentido de ‘coisa-feita’, tanto que na sua acepção como adjetivo é ‘artificial’, ‘factício’, ‘postiço’ ou ‘falso’, como em ‘pérolas feitiças’. O sentido mais comum que atribuímos hoje à palavra, como substantivo é o de bruxaria, cuja origem está na idéia de um ‘trabalho feito’ contra alguém. Pois é justamente nessa idéia do ‘trabalho feito’ que reside o ponto comum entre feitiço, arte e design. ‘Feitiço’, ‘feito’ ‘factício’ têm a sua origem comum no adjetivo latim factittius, que significa ‘artificial’. (...) Existe um paralelo conceitual importantíssimo entre esse mau sentido de ‘feito com arte’ e o bom sentido da mesma idéia, que se expressa em latim por arte factus, que dá origem ao nosso ‘artefato’. (CARDOSO, 2001: 29)

Após o percurso descrito por Cardoso, propomos um aprofundamento na discussão sobre o papel do designer ao atuar como um mediador de representações.

Um fenômeno social, representado por um designer na forma de uma imagem, circula e sofre uma série de re-interpretações ao longo de seu percurso na sociedade. Adquire um valor de uso, que pode ser o de converter-se em um imã de geladeira, estampado com uma imagem de bumba-meu-boi. Adquire um valor de troca, pois passa a ter um valor de mercado, relacionando trabalho e produção, traduzido por um preço em moeda corrente. Essas seriam traduções em um nível sociomaterial, processos nos quais o designer está tradicionalmente envolvido. Questões estéticas e formais, relacionadas aos materiais e aos usos do produto, envolvendo os meios de produção e seus custos chegando ao preço final do produto.

Porém, os objetos possuem, segundo Baudrillard (1974), mais duas dimensões que se relacionam às representações deste artefato, que se denominam valor signo e valor símbolo: o primeiro diz respeito aos elementos semióticos do produto, que o diferenciam dos demais, como o uso das cores, o acabamento do azulejo, o fato de ter sido pintado à mão ou ter sido impresso em serigrafia, enfim as características que agregam outros valores sem ser os de uso. O valor símbolo está vinculado aos rituais, ao fato, por exemplo, de ser presenteado com um imã de azulejo de São Luís, por uma pessoa querida que visitou a cidade. Este fato confere a este artefato sentido distinto, que o torna não-permutável porque nasce da relação entre as pessoas entre si e entre elas e os artefatos.

A partir de convenções e simbolismos, credenciamos os artefatos a ingressarem na sociedade e a constituírem o seu amálgama, suas relações de sentido, que organizam a vida social e as relações de significação. Ao designer, cabe o papel de ser o mensageiro, o mediador entre as relações de poder e as relações de sentido, exercendo o seu papel de interpretação de códigos culturais e a sua tradução em códigos materiais.

Ao interpretar a cultura, o designer faz às vezes do feiticeiro. Mauss, em seus estudos sobre a magia e a relações entre as pessoas e os símbolos mágicos, nos aponta que “a imagem está para a coisa assim como a parte está para o todo. Dito de outro modo, uma simples figura é, fora do contato e de toda comunicação direta, integralmente representativa.” (MAUSS, 2003:104). No caso da representação em magia, há uma série de leis que regem a relação entre a pessoa ou coisa e a sua representação, no que tange às propriedades mágicas.

No nosso caso, são as convenções do sistema sêmico do lugar no qual estamos inseridos como pesquisadores que norteiam e indicam que partes daquele todo (a cultura) podem ser alienadas, para que, mesmo no desterro do trânsito intercultural, uma imagem tenha autonomia sígnica, ainda que seja para significar conceitos demasiadamente distantes do seu lugar de origem.

A natureza essencial dos trabalhos de design não reside nem em seus processos, nem em seus produtos, mas em uma conjunção muito particular de ambos: mais precisamente, na maneira em que os processos de design incidem sobre seus produtos, investindo-os de significados alheios à sua natureza intrínseca. Esta ação de investimento, que pretendo enquadrar aqui dentro de uma categoria um tanto esdrúxula, que denominarei, contrariando o senso comum da palavra, de fetichismo dos objetos. (CARDOSO, 2001: 17)

Quando estas imagens são consumidas, elas necessariamente são uma apropriação de segunda-mão. Quando um interpretante constrói a sua relação de comunicação com o artefato, ele a realiza a partir do seu próprio sistema sêmico, que pode ser próximo ou distante – simbólica ou fisicamente – do contexto inicial da produção do sentido. Quando este artefato é produzido por um designer, ainda somam-se a ele as representações deste profissional, que enquanto mediador e tradutor transita entre as representações coletivas das pessoas que foram suas informantes e as suas próprias representações. Sobre uma informação inicial, novas camadas de sentidos são superpostas, sem anular as anteriores. A produção e o consumo da cultura são processos que transformam matéria em forma, e novamente forma em matéria, e assim sucessivamente. Perde-se a noção de origem e de destino: um artefato que agora é um nó central da teia de significado, daqui a alguns instantes é apenas um ponto secundário. A teia de significados é complexa, não tem início nem fim, e o trânsito entre o ícone e o símbolo acontece simultaneamente, sem regras ou limites pré-estabelecidos.

Informação e experiência

Como observamos no item anterior, em um mapeamento iconográfico o designer busca nas representações dos grupos sociais a matéria para construir suas representações. Então, o design é um dos métodos de dar forma à matéria e de fazê-la aparecer como aparece, e não de outro modo. Existe, portanto uma intenção projetual. Propomos, no âmbito do projeto Iconografias do Maranhão, que tratemos as representações dos grupos sociais que estamos pesquisando como artefatos ou fenômenos, para englobar as dimensões ditas materiais e intangíveis do patrimônio [5]. Tanto os artefatos como os fenômenos possuem uma existência material, ainda que representem manifestações consideradas intangíveis [6]. Portanto, a cultura é a matéria sobre a qual o designer constrói a iconografia.
Essa representação gráfica (iconografia) traduz as marcas diacríticas dos grupos sociais pesquisados. Para Flusser, a área do Design é fruto de um processo de codificação da experiência. Todo artefato é produzido por meio da ação de dar forma à matéria seguindo uma intenção. In-formar, no sentido etimológico, é dar forma a algo.

O designer cria a forma para acondicionar a matéria. A essa forma, ou melhor dizendo, a esta fôrma, damos o nome de linguagem. É a forma que faz o material aparecer. Mapear iconografias, no sentido strictu, é formalizar (informar) as representações sobre a cultura.

Essa linguagem, que na verdade é um processo de estilização, constitui-se de representações coletivas (símbolos da cultura – identidade) convertidos em representações gráficas (ícones da cultura – imagem). Porém o processo não cessa nesta primeira conversão. Ele continua, com o consumo destas imagens, com o seu trânsito intercultural, com as novas estilizações provocadas com as transformações de imagens em objetos, com usos diferenciados dos atribuídos em sua “origem”, na sua territorialidade. Quando uma imagem é consumida no desterro, ela assume uma significação diferente, sem os referenciais simbólicos do contexto na qual foi criada. De um ícone de determinado grupo social, a imagem consumida passa a ser novamente um símbolo, uma convenção, sem uma ligação direta (icônica) com uma tessitura “original”. Novos valores de uso, troca, signo e símbolo são atribuídos a esta imagem-artefato-fenômeno.

Enquanto linguagem, o processo de estilização pode ser considerado uma tradução, uma representação de uma realidade a partir de traços característicos de registro, de gênero ou de período. Aí entra o traço gráfico do designer, ou a sua capacidade de interpretar e traduzir a matéria.

O texto é considerado desconstrutivamente como o lugar para a produção de significados de um modo interativo e dinâmico, que envolve o leitor em determinações sociais, culturais e institucionais e em uma multiplicidade de interpretações possíveis e análises baseadas em diferentes formações de leitura para diferentes propósitos críticos. (SANTAELLA, 2007:60)

Onde lemos texto, proponho que leiamos imagem, ou representação. Nessa linha, a análise de uma imagem é também a análise das interações entre várias posições subjetivas e das intertextualidades e histórias a que essas posições se filiam. Quanto mais o designer se aprofundar na experiência da cultura que ele irá interpretar, mais apto a traduzi-la ele estará. “Disso resulta uma visão do texto como bricolagem, múltiplos fragmentos que se suturam a realidades sociais e culturais por meios institucionais e culturais.” (SANTAELLA, 2007:60)

O designer como autor, transcende a sua função de intérprete-tradutor. Ele deixa sua marca na representação, ou seja, suas próprias representações sobre a cultura. No processo de in-formar, estamos atuando de forma ativa na construção do sentido. Estamos estabelecendo hierarquias e classificações, estamos nomeando, dando forma à matéria. Estamos construindo linguagem a partir de um lugar privilegiado de fala. Ao darmos forma à matéria estamos produzindo modelos, que passarão a ser repetidos, reinterpretados e reposicionados sob as estruturas de força da sociedade.

Referência bibliográficas

AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994.
CANCLINI, Néstor Garcia. Diferentes, desiguais e desconectados. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005.
CARDOSO, Rafael. Design, Cultura Material e o Fetichismo dos Objetos. In: Arcos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 14-39, 1998.
FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. Rafael Cardoso (org.). São Paulo: Cosac Naify, 2007.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
HALL, Stuart. Da diáspora – identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003
MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
NORONHA, R. G; OLIVEIRA FILHO, H. L; RODRIGUES, C. D. Lugares comuns: a marca territorial do Desterro, identidade e etnografia. In: P&D, 2008, São Paulo. Anais do VIII P&D design. São Paulo : P&D, 2008.
NORONHA, Raquel. No coração da Praia Grande: representações sobre a noção de patrimônio na Feira da Praia Grande, São Luís, Maranhão. Dissertação de Mestrado.
Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais. Orientação: Prof. Dra. Maristela de Paula Andrade. UFMA, 2007.
PANOFSKY, Erwin. Estudos de Iconologia. Lisboa: Editorial Estampa, 1982. RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. SP: Ática, 1993.
SANTAELLA, Lucia. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007.

Notas:

1 O projeto, aprovado pelo edital do PROEXT-CULTURA 2008, consiste em construir uma iconografia da identidade local da cidade de São Luís, no estado do Maranhão, por meio de mapeamento dos elementos estéticos e culturais que caracterizam os grupos tradicionais da cultura afro-maranhense, incluindo-se 4 grupos de bumba-meu-boi; 4 tambores de crioula; 4 blocos afro e 4 casas religiosas a partir de entrevistas com os agentes sociais envolvidos e observação dos seus cotidianos. Com isso busca-se construir um acervo de imagens e disponibilizá-lo em mídia digital e banco de dados online. Como resultado final, o projeto prevê a criação de produtos e peças gráficas, por alunos do curso de Design da UFMA em conjunto com as comunidades e baseados na sua própria produção artesanal, com os elementos estéticos e culturais apreendidos durante a pesquisa. Assim, visamos à possibilidade de sua confecção pela própria comunidade, gerando renda e trabalho para os sujeitos envolvidos nas atividades culturais e turísticas nas localidades envolvidas.

2 Adotamos a perspectiva metodológica de Erwin Panofsky (1982) para caracterizar as etapas de tratamento da obra de arte, em nosso caso, as imagens que representam a cultura afro-maranhense. O autor trabalha com uma divisão triádica – a análise pré-iconografica; a análise iconográfica; e a síntese iconográfica. Como o próprio autor propõe estas etapas não são estanques, se misturam em um processo orgânico e interdependente.

3 Utilizamos a categoria lugar a partir da concepção de Marc Augé: “O lugar antropológico é a construção concreta e simbólica do espaço, que se refere à casa, às aldeias, ou seja, aos lugares que têm sentido, que são identitários, relacionais
e históricos e que trazem subjacente o sentido de permanência [...]” (AUGÉ, 1994: 34).

4 Entendemos por discurso muito mais do que a fala. Como indica Foucault (2004), o discurso vai além do seu sentido linguístico. É no seu sentido mais amplo, como construção de saberes, práticas, instituições, ações e reações, que utilizaremos o conceito no decorrer deste trabalho.

5 As questões sobre as noções de patrimônio, suas dimensões materiais e intangíveis no âmbito do centro antigo de São Luís foram amplamente discutidas e aprofundadas em: NORONHA, Raquel. No coração da Praia Grande: representações sobre a noção de patrimônio na Feira da Praia Grande, São Luís, Maranhão. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais. Orientação: Prof. Dra. Maristela de Paula Andrade. UFMA, 2007.

6 Ver mais sobre a materialidade das dimensões imateriais do patrimônio em GONÇALVES, José Reginaldo S. O patrimônio como categoria de pensamento. In: Abreu, R. e CHAGAS, M. (orgs). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.