ENTREVISTA
RENATA PIAZZALUNGA
Publicado por A CASA em 26 de Junho de 2012
Por
Daniel Douek

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"Uma cultura não tem que ficar restrita aos seus limites"
Renata Piazzalunga é arquiteta, doutorada em Ciências da Comunicação e
cofundadora do Instituto de Pesquisas em Tecnologia e Inovação (IPTI),
onde atua como coordenadora responsável pela linha de projetos
relacionados à Economia Criativa.
O que é o instituto de Pesquisas em Tecnologia e Inovação (IPTI)?
O IPTI foi fundado em 2003 por um grupo de doze pesquisadores das mais variadas áreas – eu sou arquiteta, havia neurocientista, advogado, engenheiro –, todos vindos da universidade. Tínhamos perfil acadêmico: fazíamos pesquisa científica e éramos professores universitários. Além disso, todos já haviam trabalhado em projetos relacionados à tecnologia e inovação. Nosso objetivo era fazer da pesquisa científica uma prestação de serviço como outra qualquer. Não queríamos ficar restritos à universidade, à publicação de teses, artigos, mas fazer daquilo que a gente sabia fazer um negócio e chegar o mais próximo possível das comunidades e das populações. Achávamos que a pesquisa dentro da universidade era algo muito hermético, e que havia um grande distanciamento dos polos onde a vida estava acontecendo, da dinâmica natural, do processo evolutivo das coisas. Qual a missão do IPTI? Produzir pesquisa científica voltada para tecnologias sociais. Trata-se de atuar diretamente em desenvolvimento sustentável nas três áreas de desenvolvimento: educação, saúde e economia criativa.
O que significa Economia Criativa?
São todas as formas de potencializar e dinamizar os elementos relacionados à cultura e à identidade de uma comunidade de forma a obter resultados para sua economia. Por exemplo, em nosso primeiro projeto de economia criativa, em Santa Luzia do Itanhy (SE), onde está localizada a sede do IPTI, a economia local era baseada, principalmente, na agricultura de subsistência, na pesca e no artesanato. Pesca e agricultura de subsistência, bem ou mal, são atividades que andam por si só. Então, identificamos o artesanato como o grande potencial para começar a trabalhar na economia criativa. O IPTI desenvolveu toda uma metodologia para atuar e se posicionar dentro desse conceito. A primeira coisa é fazer um levantamento iconográfico. Passamos de seis a oito meses fazendo esse levantamento e um diagnóstico para identificar o capital social e socioeconômico da região. A partir daí, criamos uma base de conhecimento sobre aquela comunidade. Nosso primeiro preceito é nunca chegar com uma metodologia estruturada e com um planejamento pronto, acabado, sempre propor um trabalho participativo. Mas o mais importante é conhecer a fundo aquela comunidade na qual vamos atuar. Isso faz com que, nos projetos do IPTI, se gaste muito tempo com isso. É até uma dificuldade com os financiadores, pois nem todos entendem essa importância, as pessoas querem resultados imediatos. Como temos cabeça de cientistas, jamais conseguiríamos fazer diferente. Construímos toda uma base de dados e é partir daí que elaboramos as metodologias, as ações e vamos para a prática.
O que é e como surgiu o The Human Project, um dos principais projetos do IPTI?
O The Human Project foi concebido por mim como uma ferramenta de inovação para micro e pequenas empresas. Acho que a única forma de viabilizar isso é atuar a partir da integração entre arte, ciência, tecnologia, gerando negócios, num ciclo que se retroalimenta. Concebi essa ideia quando estávamos na incubadora de tecnologia da USP em função das críticas que eu tinha em relação aos processos de gestão administrativa. Eu via que aquilo nunca iria potencializar nenhuma inovação porque os processos são muito longos e burocráticos, faltava incentivo de crédito, enfim, uma série de coisas. Em 2006, já com essa estrutura conceitual, a ideia era fazer um centro de arte, ciência e tecnologia na cracolândia, em São Paulo. Porém, quando começamos a trabalhar e estabelecer relações, descobrimos que já havia uma proposta bem definida para a região e que essa ideia do IPTI não se enquadraria. Como um dos pesquisadores fundadores do IPTI, o Saulo Barreto, é de Sergipe, ele propôs: “Por que não fazer um grande centro internacional de arte, ciência e tecnologia, potencializador de negócios, em Sergipe?”. Então, nós fomos a Sergipe e começamos a identificar lugares por lá. Paralelamente, trouxemos um grupo de colaboradores de vários países, entre os quais o consultor do governo inglês de economia criativa, Tom Fleming, o editor-chefe da revista Leonardo, Roger Malina, a ex-diretora do Arts Council, Bronac Ferran, além de dois artistas ingleses, um pesquisador americano e alguns amigos. Todos nos reunimos para formular o The Human Project. A reunião começou em Mangue Seco (BA), durante um fim de semana, e terminou em Aracaju (SE), nos dias seguintes. Na ocasião, definimos, quais seriam os valores de The Human Project, que eram valores atrelados à visão do IPTI.
Um das coisas que mais me chamou atenção no site do IPTI foi justamente a listagem dos valores da instituição: “raízes locais para uma articulação global”; “compromisso com o risco”; “poética da diferença”; “dinâmica visível e invisível”; “empatia”; “modelos de propriedade”. Você poderia falar brevemente a respeito deles?
Todos esses conceitos têm a ver com essa ideia de um núcleo gerador, onde existe uma identidade própria, mas que nunca fique restrito a um determinado espaço. “Raízes locais para uma articulação global”, por exemplo, é exatamente isso, e constitui a base do The Human Project: de repente, juntamos pessoas do mundo inteiro em Santa Luzia do Itanhy e começamos a fazer uma articulação global – o The Human Project tem esse nome em inglês exatamente por isso. Além disso, defendemos a ideia de que uma determinada cultura não tem que ficar restrita aos seus limites. É preciso sempre enaltecer e trabalhar aquela cultura de forma mais magnânima possível para que ela alcance uma escala maior. Embora os artesãos circulem por distâncias muito pequenas, suas ideias e sua cultura podem transcendê-las – e eu acho que uma cultura tem, sim, que almejar uma escala global. É esse o trabalho da economia criativa. Isso fica muito claro até no que se refere aos produtos que geramos. A ideia do IPTI nunca foi gerar produtos de artesanato, sempre achamos que os produtos teriam que ser de design brasileiro contemporâneo, a partir de técnicas de inserção de artesanato, o que é bem diferente. Aí, sim, você consegue trazer esses elementos para uma escala global.
A “poética da diferença” também tem a ver com isso. Quando começamos a trabalhar nos projetos, uma das nossas maiores preocupações era jamais criar impactos negativos numa cultura. Não que não houvesse transformação, porque isso é inevitável, mas impactos que fizessem com que eles perdessem seus elementos essenciais, aquilo que os diferenciava. Então, desde o começo, o trabalho do IPTI adota a ideia de “poética da diferença”, ou seja, jamais neutralizar a diferença, muito pelo contrário. Não queremos, nunca, que eles fiquem iguais a nós e nem que nós fiquemos iguais a eles. Isso é sempre mantido, com cada um se posicionando da forma mais democrática possível.
Os “modelos de propriedade” surgiram numa época em que estávamos muito envolvidos com Creative Commons e procurando alguns modelos alternativos para a Propriedade Intelectual. Uma das premissas do IPTI era que em nossos projetos isso fosse sempre um elemento da pauta de discussão. No Cultura em Foco, por exemplo, isso pautou todo o processo. Os produtos não são meus, eles não são dos designers, eles não são de ninguém, mas de uma coletividade baseada no tripé IPTI, Associação dos Artesãos de Santa Luzia do Itanhy e Fellicia, que é uma empresa comercial que vende os produtos e, além de remunerar os artesãos pelo trabalho, reverte uma porcentagem de seu lucro tanto para o IPTI quanto para a Associação, para gerar inovação. Uma das questões principais, até contratuais, quando se contrata consultores do IPTI, é essa discussão da propriedade das coisas, dos bens, das ideias, ela tem que estar na pauta de discussão em que todos participam.
Como arte, ciência e tecnologia, atuando juntas, podem constituir um modelo viável de promoção de desenvolvimento sustentável?
Eu sou arquiteta, fiz mestrado, doutorado e pós-doutorado, e nunca vi tecnologia e pesquisa científica como áreas isoladas em relação a processos criativos ou a arte. Para mim, a arte estava sempre tangenciando tudo. Não acredito na inovação e na tecnologia que não tenha esse fundamento. Quando propusemos a constituição de um Instituto de Pesquisa em Tecnologia e Inovação, até pela vertente de como ele foi criado, por essa multidisciplinaridade e transdisciplinaridade, sempre provocávamos a interação entre ciência, arte e tecnologia. Isso é uma característica do IPTI. Mesmo em projetos como o do “hemoglobinômetro”, que foi desenvolvido na área de saúde, não é uma coisa que fica restrita aos pesquisadores dessa área de conhecimento. Em determinado momento, por exemplo, é preciso criar um logotipo para aquele projeto, elaborar a comunicação visual que iremos utilizar para apresentá-lo aos financiadores, às lideranças locais, à comunidade, pensar na divulgação na mídia. Então, a arte é sempre um elemento potencializador de qualquer processo científico e tecnológico. Essa ideia passou a ser uma vertente de toda pesquisa, de tudo o que é desenvolvido no IPTI. Isso vem desde o momento de discussão da construção de um projeto, de sua proposição, até o resultado final, como isso é mostrado, divulgado.
O que é o projeto Cultura em Foco?
O Cultura em Foco é um projeto que foi concebido por mim e submetido ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) através de um edital. Depois, integramos mais alguns parceiros, como o BANESE Card, de Sergipe, o Sebrae-SE e a prefeitura de Santa Luzia do Itanhy. O projeto começou a ser executado em julho de 2009 e seu objetivo era trabalhar com o que seria o artesanato local. Costumo dizer que foi um projeto de escritório, de laboratório, desenvolvido por mim em São Paulo, a partir de dados que eu recebia da Secretaria de Assistência Social do município, dizendo o que havia de artesanato ali. Fiz o projeto, submeti, e foi aprovado. Quando fui a Santa Luzia do Itanhy, na exposição de artesanato local organizada pela primeira-dama na Secretaria de Assistência Social, para me receber, tive vontade de desistir. Eu olhei para o Saulo Barreto, pesquisador do IPTI que estava comigo, e falei: “Vou devolver esse recurso para o BID”. Não tinha condições. Eles não tinham nenhum artesanato de tradição, nenhum artesanato de fato. O que tinham eram manualidades – a bonequinha de biscuit, o pano de prato, aquelas coisas bem comuns. Eu me perguntava: “Mas como?”. Os boletins e os relatórios que recebia eram bem diferentes. Mas pensei: “Tudo bem, vamos começar a trabalhar e, com otimismo, vamos ver se chegamos a algum lugar”. Foi surpreendente. Os resultados foram, realmente, surpreendentes.
Como lhe falei, a primeira coisa que fizemos foi o levantamento iconográfico e o diagnóstico. Os dados eram muito ruins, sempre, só que através desses instrumentos metodológicos, conseguimos chegar a três tipologias passíveis de serem desenvolvidas: a primeira delas, pela abundância de matéria-prima, foram as fibras vegetais; a segunda foi a de tecidos, porque toda mulher sabia fazer crochê, pintar, mas nada relevante, nenhum bordado de tradição; a terceira foram as miniaturas de raiz de araticum, aquela árvore que dá no mangue e tem raiz aérea. Tínhamos recursos do BID para alavancar só uma dessas tipologias. A maioria das pessoas que se diziam artesãos não eram, eram pescadores, que é a atividade preponderante na comunidade. Então, tínhamos que fazer o processo formativo, depois discutir qual o tipo de organização coletiva iríamos estruturar, depois trabalhar a comercialização, enfim... O projeto tinha que passar por todas as etapas e provar que aquela metodologia dava resultado. Estava estruturando e consolidando uma metodologia que já tinha sido desenvolvida em 2006 e 2007, num projeto chamado Empreende Cultura, que foi realizado em seis estados do Brasil. Meu anseio era pegar aquele projeto que havia sido desenvolvido numa escala macro, e focalizar num lugar, em um município, para que conseguíssemos ter domínio de todas as variáveis metodológicas do processo. E foi isso o que fizemos em Santa Luzia do Itanhy. No fim, conseguimos trabalhar com todas as tipologias. Para a tipologia de fibras vegetais, contratei o Kelley Brain White, um designer de São Paulo que já trabalhava com uma linha de persianas. Compramos os teares e, a princípio, ele havia ido para ensinar aquela técnica. Isso acabou sendo expandido e, hoje, já temos até uma linha de luminárias usando fibras vegetais. Para a tipologia de tecidos, não tínhamos recursos para contratar novos designers. Mas consegui mobilizar o André Bastos e o Guilherme Leite Riberio, do Estúdio Nada se Leva, em relação à causa do projeto. Eles revisitaram os fuxicos, nos cederam uma padronagem e criamos uma linha de tecidos artesanais de fuxico com mantas e almofadas. Já para trabalhar com a raiz do araticum, havia apenas um artesão que produzia as miniaturas. Eu achava muito interessante. Essa raiz parece uma madeira balsa, é muito leve, e para não perder a tradição dessa técnica, que apenas um artesão era detentor, o IPTI investiu recursos próprios. Formamos quarenta meninos, jovens da comunidade, que aprenderam a fazer aquilo e até hoje fazem.
De certa forma, conseguimos desenvolver todas as tipologias. Comercialmente, obtivemos resultados nos tecidos e nas fibras vegetais, que foram as tipologias onde trabalhamos toda a cadeia. O projeto tinha como um de seus objetivos gerar produtos que pudessem ser direcionados às classes A e B. Isso porque identificávamos que já havia muito artesanato voltado às classes C, D e E. Então, os produtos tinham que ter alto valor agregado, voltado às classes mais altas, onde percebíamos que havia um nicho a ser explorado. Hoje, os produtos estão em lojas como a Conceito: FirmaCasa, lojas desse porte no Brasil inteiro.
Além da requalificação do artesanato, o projeto Cultura em Foco atuou também na promoção do cooperativismo entre os artesãos de Santa Rita do Itanhy. Sobre o relacionamento interpessoal naquela comunidade, o que foi identificado no diagnóstico e como se deu a atuação diante do quadro verificado?
Pelo diagnóstico, percebemos que o capital social naquela comunidade era baixíssimo, as relações de confiança eram muito frágeis. Por exemplo, uma das perguntas do questionário aplicado à comunidade era: “Você tem amigos? Quantos amigos você tem?”. E as respostas foram muito recorrentes: “Eu não tenho nenhum amigo”, “Ninguém é amigo de ninguém”. Isso nos chamou a atenção, porque Santa Luzia do Itanhy é um município de 13,9 mil habitantes, sendo que apenas 3,5 mil ficam na sede, e o restante, distribuído pelos povoados. Imaginávamos que as relações de convivência eram muito boas. Diferentemente de São Paulo, achávamos que lá era um ambiente amigável, onde as pessoas tinham confiança umas nas outras. Mas não tinham, não trabalhavam colaborativamente e não estavam acostumadas a trabalhar em grupo. Primeiro, pelo fato de que a maioria das pessoas de lá nunca teve uma relação de trabalho formal; sempre que se submetiam a alguma espécie de trabalho, ainda era aquela coisa da submissão ao outro. Quando nós os chamávamos para a discussão, quando começavam a perceber que podiam opinar sobre as coisas, que as relações ali estabelecidas se voltavam totalmente para eles, não sabiam como lidar e recuavam. Então, nós fomos trabalhando isso com eles, inserindo algumas técnicas dentro das oficinas. Contratei uma pessoa para discutir questões relacionadas ao mercado e essa relação do grupo. Ela ia toda semana, fazia dinâmicas e, com base no diagnóstico, lidava com as questões que achávamos prioritárias. Senão, como você vai trabalhar processos de economia criativa, em que a confiança é o primeiro item que deve ser estabelecido no grupo para que se possa trabalhar colaborativamente, coletivamente, estimulando-se a criatividade? Era uma realidade que não se adequava à proposta inicial do projeto. Quando começou a entrar dinheiro, a situação se complicou bastante. Entre eles, a relação era muito agressiva, de desconfiança, beirando a agressividade.
Enfim, a realidade de uma comunidade é extremamente delicada, complexa e multidimensional. Acho que o sucesso dos projetos do IPTI se dá porque sempre trabalhamos de forma multidimensional e com uma inserção muito cuidadosa, despretensiosa, muito mais ouvindo e aprendendo do que entrando com um conhecimento pré-estabelecido. Partimos sempre do princípio de que não conhecemos nada. De fato, você não conhece nada quando está começando a trabalhar com as comunidades. Cada pessoa traz uma delicadeza que tem que ser ouvida, percebida e, para isso, não existe uma metodologia pronta. A metodologia que se estabelece é essa, perceber que cada grupo funciona de uma maneira específica. É preciso olhar para isso, entender e, a partir daí, começar algumas pequenas atuações e inserções. Hoje, a situação se reverteu bastante em Santa Luzia do Itanhy.
É interessante falar também que Santa Luzia do Itanhy fica a 1h15 de Aracajú, e a maioria dos artesãos do projeto nunca tinha ido para a capital. Em 2010, eles foram para a Feira do Empreendedor, do Sebrae, onde montamos um estande, e, este ano, eles foram para um evento em Brasília. Sempre vão dois ou três e são eles que têm de falar com o público, apresentar o projeto, vender. Então, começam também a se olhar de forma diferente: “Ele é meu parceiro, estamos construindo algo em conjunto”. Eles veem os resultados. De qualquer forma, é um processo muito longo, muito delicado e é preciso paciência.
Mesmo com produtos de qualidade, muitos projetos realizados em diversas regiões do Brasil encontram dificuldades para inserir-se no mercado. O modelo de negócio proposto no projeto Cultura em Foco está estruturado no tripé pesquisa/inovação, produção e comercialização dos produtos, onde cada função é desempenhada por uma instituição especializada (respectivamente, IPTI, Associação dos Artesãos de Santa Luzia do Itanhy e Fellicia). Esse modelo de negócio é uma alternativa viável à comercialização?
O grande problema é que a maioria dos projetos termina no objeto, e não na venda. Nitidamente, os próprios órgãos financiadores propõem que se chegue a um resultado, que é o produto. Chegou ao produto, mostrou que fez as oficinas, está pronto o projeto. É uma falha que existe desde os editais. Eu nunca encarei isso como verdade. Uma das cosias que sempre falo do projeto Cultura em Foco é que ele não acabou. O recurso dos financiadores acabou em novembro de 2011, os relatórios técnicos foram todos apresentados, mas, para mim, se o projeto tivesse acabado, seria um fracasso. Instauramos uma nova dinâmica naquela comunidade, não é uma coisa com começo, meio e fim. Enquanto for uma metodologia viável, tem que permanecer vivo. Tanto é que eu continuo indo lá todos os meses, estamos com uma linha de produção em funcionamento.
No projeto Cultura em Foco, fundamos e estruturamos a Associação Cultura em Foco de Santa Luzia do Itanhy e criamos a Fellicia, uma empresa comercial para a venda dos produtos. Geramos um modelo de negócio específico que funciona como um ciclo no qual a Felícia, além de remunerar os artesãos pelo trabalho, tem uma porcentagem de seu lucro revertida tanto para o IPTI quanto para a Associação, para gerar inovação. O IPTI atua como agente idealizador de novos conceitos, sempre identificando editais e potencialidades de trazer inovação para a Associação, e a Associação é produtora. Esse modelo do tripé tem dado certo. Ele ainda é bastante novo, nós começamos a colocar os produtos no mercado apenas em meados de 2011 – abrimos a Fellicia em agosto de 2011. Até então, vendíamos para amigos, de forma bastante informal. Com a criação da Fellicia, não paramos mais a produção, e os produtos chegaram rapidamente onde queríamos.
Sou em quem faço a gestão dessa empresa e nunca tive que negociar preço com os compradores, condições de pagamento. Isso foi outra coisa que eu aprendi. Não entendo nada da parte comercial, não sou da área, mas comecei a me colocar nisso forçada por uma tentativa de viabilizar o projeto. Percebi que o comércio tem uma dinâmica muito própria. Em geral, as coisas funcionam da seguinte forma: os lojistas vêm à feira, fazem os pedidos, e apenas trinta ou sessenta dias após a entrega é que eles vão pagar. Nesse projeto, jamais poderíamos trabalhar dessa maneira. Trata-se de uma ação de consumo consciente, de desenvolvimento sustentável. Não posso fazer com que meu artesão produza, por exemplo, mantas de fuxico, que demoram dois meses para ficarem prontas, e receba só depois de mais trinta ou sessenta dias. Não dá, é uma dinâmica que mataria o negócio. Então, trabalhamos assim: no momento em que o pedido é feito, 50% tem que estar garantido, e os outros 50% são pagos na entrega. Tem funcionado muito bem, mas isso requer a conscientização de que é uma cadeia diferenciada. Cada vez que faço uma venda, vendo não só o produto, mas uma palestra. Procuro mostrar ao lojista que ele não está simplesmente comprando um produto qualquer, que ele não sabe quem produziu, que tanto faz se veio da China, Nova Iorque ou São Paulo. Ele passa a ter um comprometimento com aquele grupo, com aquela comunidade. Eu mostro como ele está inserido naquela rede de produção. Tudo isso faz com que as coisas tenham outra cara.
Há quem afirme que já se foi o tempo do artesanato. Como você avalia essa questão?
Eu não concordo. A exacerbação de processos tecnológicos na sociedade contemporânea tem provocado uma certa exaustão e motivado um movimento de retorno e busca a processos mais “humanizados”. Desta forma, se a carga simbólica atrelada aos produtos artesanais for enaltecida e se os estes fizerem sentido em relação aos padrões estéticos desta sociedade, passam a ter um grande potencial de mercado, pois nos remete diretamente ao sentido daquilo que é humano. Quando falo sobre a carga simbólica do produto artesanal falo de aspectos como, por exemplo: o objeto como ícone de uma identidade e de uma cultura específica; a relação indireta estabelecida, através do objeto, entre seu produtor e quem o adquiriu; o desencadeamento de lembranças e/ou valores de uma experiência vivida atrelados ao objeto.
Na verdade, estamos vivendo um momento de renascimento. Na década de 1990, houve um boom dessa relação entre designers e artesãos, e o artesanato foi redescoberto. Até então, quando se viajava, por exemplo, ao Nordeste, que é um dos principais polos de produção artesanal no Brasil, só havia produtos naquelas feirinhas locais, coisas muito malfeitas, interessantes, mas sem requinte. Na década de 1990, essa realidade começou a mudar. Muitas instituições se voltaram a isso, embora nem sempre da melhor maneira possível. Ao longo do tempo, aprendemos bastante. Para começar, se você vai fazer um projeto de inserção de design em uma comunidade de artesãos, o primeiro passo não é a contratação do designer. Antes de tudo, é preciso conhecer aquela realidade, saber qual é o seu potencial. A partir daí, definem-se os pressupostos que irão orientar na escolha do perfil mais adequado de profissional para o trabalho. Isso é muito complexo, não é simplesmente a parte técnica. De repente, a pessoa pode ser um excelente técnico daquilo que ele faz, mas não tem nenhuma afinidade com a comunidade. Então, o projeto estaria fadado ao fracasso.
Como se deu a interação entre designers e artesãos no processo de criação dos objetos no projeto Cultura em Foco?
Desde que o IPTI foi para Sergipe, uma das coisas que tem nos incomodado e provocado uma reflexão é a questão de como enaltecer e potencializar a criatividade local. Obviamente, essa criatividade já existe, não há ser humano que não seja criativo. O problema é que, por conta do próprio processo civilizatório local – que, infelizmente, é uma realidade verificada em muitos outros lugares do Brasil – temos uma cultura que não enaltece as pessoas, mas os poderes e seus interesses. A população de Santa Luzia do Itanhy tem baixíssima escolaridade. Aqueles que frequentam as aulas se deparam com uma escola de péssima qualidade, que não apresenta novos horizontes. Assim, seria muito pueril de nossa parte achar que, hoje, eles poderiam ser protagonistas dos processos criativos.
Para o desenvolvimento de produtos, chegamos com uma proposta e algumas ideias, mas nenhum deles tem o desenho pronto, pré-estabelecido. As luminárias, por exemplo. Inicialmente, existia uma ideia de como fazer as luminárias, mas várias questões técnicas, da costura, da maleabilidade da palha, do tratamento da palha, nem eu nem os designers sabíamos. Então, na solução técnica da peça, os artesãos entravam com seu conhecimento e várias formas resultaram disso. Percebemos que esse é um canal em que a criatividade deles entra.
O IPTI acredita que, a partir do momento em que os processos criativos são dinamizados, são necessários quinze anos para que aquilo se instaure como uma vertente. Promovemos muitas oficinas e projetos para começar a motivar isso. Temos um curso de arte naturalista voltado aos jovens da comunidade para o qual levamos um professor que ministra aulas de ilustração científica sobre mangue. Há também outro projeto sendo desenvolvido chamado Arte e Consciência, onde alunos de várias escolas em vários municípios criam dispositivos para virarem objetos nas exposições de arte, ciência e tecnologia. Ou seja, tudo isso é foco da nossa preocupação, mas não dá para dizer que, atualmente, eles irão conseguir produzir por si só uma linha de produtos que obtenha sucesso no mercado, pois aquela população nunca foi estimulada a pensar de forma criativa. Então, acho que esse papel acelerador não só do designer, mas de todo o processo periférico relacionado ao desenvolvimento do papel criativo promovido pelo IPTI é necessário para que eles possam se tornar protagonistas num período de quinze anos.
Aquilo que é feito há muitas gerações não constitui um elemento que deve ser perpetuado e valorizado?
Eu acho que você pode fazer adaptações. Qual o objetivo disso tudo? Fazer com que as pessoas vivam de seu saber fazer. Você pode manter um artesanato de tradição, mas o fato de inserir técnicas e proposições formais novas é uma forma de manter as pessoas vivas a partir de seu saber fazer. Essa é, para mim, a causa principal, muito mais importante do que a manutenção da técnica, deixando todo mundo morrendo de fome, sem conseguir viver daquilo.
Se já existe um valor estético naquilo que é produzido, tudo bem. O que você pode fazer é inserir novos produtos, mas não mudar a técnica, não tem motivo. Cada caso é um caso, por isso é preciso ver do que e de quem se está falando, saber quem está por trás disso, que conhecimento é esse que está instaurado na comunidade.
Quais os resultados já obtidos pelo projeto? Já se verificam transformações sociais e econômicas na comunidade?
Sim, em várias escalas. Para mim, o mais significativo são as relações de capital social. A confiança, a colaboração e a participação melhoraram muito. Hoje, eles sabem que podem querer, eles opinam. Antes, não sabiam que podiam querer, escolher, não tinham desejos.
Há também uma melhora na questão da autoestima. O projeto resultou em várias publicações e em um documentário da TV Aperipê, de Sergipe. Quando viram seu trabalho chegando aonde chegou, pessoas que acreditavam não terem valor nenhum – isso foi incutido na cabeça deles – sofreram um enorme impacto em sua autoestima.
Além disso, o projeto transformou a relação das pessoas com o trabalho. O que aparece como possibilidade de trabalho para aquela comunidade é muito desestimulante. Geralmente, é um trabalho exploratório, em que não há protagonismo do indivíduo, em que sua identidade não interessa. Então, o projeto gerou um impacto muito importante.
Também poderia citar a credibilidade da comunidade em relação ao IPTI. Hoje, qualquer projeto que o instituto apresente tem uma adesão enorme. Quando começamos nossas atividades, nas primeiras reuniões com a comunidade, eles diziam: “Muitos já passaram por aqui, prometeram essas cosias e foram embora, nós ficamos aqui cheios de esperança e não aconteceu nada”. Eles viram que a história do IPTI com eles tem sido muito diferente.
No projeto Cultura em Foco, a associação de artesãos foi constituída por catorze artesãos fundadores, mas, atualmente, beneficiamos sessenta pessoas diretamente ligadas ao projeto. Em relação à questão financeira, de agosto de 2011, quando iniciamos o processo de comercialização, até agora, os catorze artesãos fundadores já tem uma renda média de R$ 1 mil por mês. Para mim, está ótimo. Espero que os sessenta consigam atingir esse patamar.
Também acho importante destacar como resultado que os artesãos aprenderam os processos de gestão, isto é, estão conseguindo gerir sua produção. Eu vou uma vez por mês, o Kelley tem ido também, mas quando ligamos e fazemos um pedido, eles dão conta de produzir. Eles sabem o que estamos pedindo e temos a garantia da produção com qualidade. Isso é um ganho enorme.
Finalmente, houve mudanças na forma como eles se veem. Ouvi declarações muito interessantes dos artesãos. Vários deles falaram: “Nossa, botávamos fogo nesse mato que tínhamos no quintal, não sabíamos que poderia virar uma coisa bonita assim”. Na última vez que eu fui, uma artesã estava produzindo uma cúpula enorme e disse: “Isso que estamos produzindo só pode ser pra casa de gente rica, porque na casa de gente pobre não tem nem altura para colocar”. Eu respondi: “É verdade”. E ela continuou: “Nunca poderíamos imaginar que iríamos produzir coisas para pessoas ricas, que os nossos objetos seriam valorizados”. Acho que tudo isso é muito legal, essa configuração da rede humana de valores, na qual você tem na sua casa uma peça que é feita por uma comunidade que não tem nem saneamento básico, mas é capaz de produzir algo esteticamente primoroso.
Ao estimularem a produção de objetos que fazem pouco sentido aos artesãos, como, por exemplo, os jogos americanos, vocês não se deparam com questionamentos por parte da comunidade?
Constantemente. É a tal da poética da diferença. Temos uma linha de jogos americanos, mas não comercializamos, deixamos para eles venderem localmente. Eles não chamam de jogo americano. Tem uma senhorinha que faz, utilizando uma trama bem tradicional, que chama de “tapete de mesa”. Então, com eles falamos que são os “tapetes de mesa” – é assim que ele eles se identificam com a peça. Mas, de fato, não têm o hábito de usar em suas casas.
Mesmo que eles não tenham as luminárias em casa, conseguem se identificar com aquela peça. Com o jogo americano, eles se identificaram através da ideia de “tapete de mesa”. As persianas, para eles, são como as esteiras, que tem a ver com a tradição.
Recentemente, descobri que Sergipe foi um grande polo de tecelagem até depois da Segunda Guerra – exportava para os Estados Unidos, inclusive. Havia um parque industrial consolidado basicamente em cima da indústria têxtil. Depois, com a introdução de novos fios, quando a guerra acabou e o mercado ficou aberto, foram a bancarrota. Hoje, há alguns galpões fechados que eram de tecelagem. Ou seja, introduzimos o tear e, sem querer, resgatamos esse traço cultural. Quando descobri isso, vários artesãos falaram: “Ah, meu pai trabalhava em indústria têxtil”. Percebia-se que era uma coisa que fazia parte daquela cultura. Isso foi por acaso, mas acho que não tem nada que se choque com a cultura local. Talvez as mantas, porque tem uma padronagem europeia – pied-de-poule, pied-de-coq, tartan –, cores neutras – branco e bege, bege e preto, branco e preto –, que não fazem parte da cartela de cores exuberante deles. Mas em nenhum momento encontramos restrições.
Essa é uma forma de trazer a eles elementos de uma poética diversa. Assim, eles começam a ter contato com outras referências e têm a opção de escolher o que e como fazer. Mas é muito curioso que, muitas vezes, os vizinhos querem comprar as peças. Então, acho que eles se identificam. Eles não estavam habituados, mas a partir do momento em que você mostra, tem esse apreço, eles se veem ali. Às vezes, é dado para eles só aquela exuberância de cores, aquela mistura, sem um direcionamento, aquela música alta de letra e ritmo discutível, mas quando você apresenta outras coisas, eles também gostam. Esses dias foi curioso, pois eu cheguei na oficina e eles estavam ouvindo música clássica. Eu perguntei: “O que é isso aqui?”. Eles responderam: “Estamos adorando essa música que nós descobrimos”. Eu acho ótimo. Não estamos descaracterizando nada, apenas ampliando o leque de conhecimento dessas pessoas.