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A CASA E O MUNDO

ENTREVISTA

PATRÍCIA GUIMARÃES

Publicado por A CASA em 24 de Julho de 2012
Por Daniel Douek

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"O artesanato é fundamental para o crescimento econômico do Brasil"

Patrícia Guimarães é coordenadora do programa Talentos do Brasil


O que é o programa Talentos do Brasil?

O programa Talentos do Brasil é um projeto inovador dentro dessa nova dinâmica das políticas públicas. Coordenado pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário, e contando com o apoio do Sebrae, é um projeto que tem uma metodologia própria, estruturada em quatro eixos – organização produtiva, gestão, qualificação do produto artesanal e acesso a mercados diferenciados –, e que possibilita a emancipação das agricultoras familiares tendo o segmento moda sustentável como meio de geração de emprego e renda. O projeto também promove o resgate cultural e fortalece a identidade. A cada ano, definimos um tema único, num trabalho participativo no qual artesãs e estilistas buscam aperfeiçoar o incremento do conceito do Talentos do Brasil nos produtos. 

O projeto teve início em 2005 com apenas dois grupos, em dois estados do país. A ideia era agregar valor aos produtos oriundos da agricultura familiar e, com isso, inserir produtos da moda sustentável no mercado. Após uma primeira ação, em 2005, percebemos que uma oficina de qualificação de produto não era suficiente para que conseguíssemos emancipar um grupo produtivo. Foi daí que surgiu a necessidade de criarmos essa metodologia voltada para os quatro eixos. Hoje, temos condições de emancipar de fato as mulheres no meio rural por meio do produto da moda artesanal. 

 

Como funciona a metodologia de trabalho do programa?

No que se refere à organização produtiva, identificamos a necessidade de formalizar os grupos por meio da criação de dezoito cooperativas singulares e uma cooperativa única central. Para estruturar essa cooperativa central, há todo um trabalho que conta com o apoio de uma equipe multidisciplinar composta por contadores, economistas, administradores, justamente para viabilizar os fluxos comerciais e logísticos, a formação de preço e a gestão dos empreendimentos como um todo. Hoje, temos materiais didáticos com um passo a passo da contabilidade, do estudo tributário, da questão fiscal, da logística. Há ainda uma rede de técnicos de nível médio que prestam assistência local às mulheres artesãs, possibilitando sua profissionalização. Parte do trabalho consiste na definição dos papéis das mulheres em cada grupo: quem cuida da comercialização, quem cuida da produção, quem cuida da gestão. Isso é muito importante para identificar quem tem o perfil para cada atividade. Além disso, construímos uma ferramenta de formação de preços, considerando custo fixo, logística, tributos, mão de obra. Assim, as artesãs conseguem dizer ao cliente se podem ou não dar um desconto em determinado produto. Além de levar informação, há todo um trabalho de conscientização do valor da mão de obra, de quanto custa a matéria-prima local etc. E tem também a ficha técnica. Hoje, cada produto tem uma ficha técnica com foto, código de barras e informações sobre onde a matéria-prima foi comprada, quanto tempo foi gasto para que o produto pudesse ter sido desenvolvido, o detalhamento do produto. Finalmente, organizamos também toda a conciliação bancária das vendas, o cadastro de fornecedores e o de clientes. Com isso, conseguimos avançar bastante na questão da gestão, que é um problema típico das organizações brasileiras. Periodicamente, realizamos reuniões e encontros nacionais e oficinas in loco para aprimorar e discutir as lições aprendidas. Reaplicamos a ferramenta, acompanhamos e discutimos cada abordagem.

No que se refere a qualificação do produto artesanal, são contratados de doze a quinze estilistas e designers do Brasil todo que participam de uma oficina nacional para discutir com as artesãs o tema da coleção e a realidade local de cada estado. Em 2010, por exemplo, desenvolvemos a coleção Passarada. Foi discutido, então, qual o pássaro de cada região, a identidade e a cultura local. Então, é um produto que tem um conceito por trás. Há também uma preocupação com a utilização de matérias-primas sustentáveis. Recentemente, elaboramos um manual de sustentabilidade, para o qual fizemos um diagnóstico em cada grupo para identificar qual a origem da matéria-prima, de que forma acontece o plano de manejo, o processo produtivo do produto, o tingimento natural. Portanto, existe todo um trabalho de educação ambiental e de agregação de valor no produto a partir do uso de matérias-primas sustentáveis. A realização de um trabalho de conscientização com um profissional de moda que tem acesso a essas informações é muito importante. Na verdade, é uma soma de talentos. As artesãs também têm muito a acrescentar, devido ao seu conhecimento tradicional. Há ainda todo um trabalho de qualificação para a melhoria do produto: acabamento, corte e costura, modelagem.

Finalmente, no que se refere às estratégias de mercado, temos ações voltadas para o mercado nacional e ações voltadas ao mercado internacional. Dentro das estratégias para o mercado nacional, temos uma equipe multidisciplinar responsável pela negociação com grandes redes, como Pão de Açúcar, Dutty Free, entre outros. Chegamos até o cliente, apresentamos os produtos, e discutimos preço, prazo, entrega. É um processo muito dinâmico no qual a cooperativa central possibilita o acesso do cliente a produtos de doze estados brasileiros. Desenvolvemos essa dinâmica porque sabemos que o artesanato brasileiro passa por uma crise devido à falta de formalização na ponta, à falta de um fluxo de logística de entrega da nota fiscal. Nesse sentido, a equipe multidisciplinar busca amparar os artesãos – na verdade, essa equipe é funcionária das artesãs. E também temos o e-commerce, no site www.talentosdobrasil.com.br, além de parcerias com empresas e lojas multimarcas que vendem produtos do Talentos do Brasil. Atualmente, são mais de 150 clientes que fazem contato direto, pedem catálogos e recebem os produtos na sua loja. Frequentemente, participamos de feiras e eventos. Aproveitamos as feiras institucionais, voltadas para o varejo, para testar nossos produtos. É um laboratório para saber qual a aceitação do produto junto ao consumidor final. Agora mesmo, durante a Rio+20, comercializamos quase 70 mil reais em poucos dias. Isso é um prova de que o consumidor quer comprar o produto, que o produto tem valor, tem importância para o mercado. Já para as feiras internacionais, contamos com o apoio da Abit. Participamos da Biofach, na Alemanha, da Mode City, em Paris, e vamos para Las Vegas no mês de agosto para testar o mercado norte-americano. Agora, queremos promover um intercâmbio com estilistas internacionais, trazendo esses profissionais para elaborar e desenvolver essas coleções junto com os estilistas do Brasil.

Considero esse projeto um modelo de política pública que deverá ser reaplicado em outros segmentos. Essa metodologia é fonte de empoderamento para as mulheres. Sem que os quatro eixos sejam estruturados, nós não conseguimos trabalhar de fato a qualificação das mulheres, sua emancipação e sua inserção no mercado para uma concorrência comercial e empresarial. Nós temos que ser profissionais.

 

Em termos de políticas públicas, o que ainda pode ser feito para a promoção do artesanato no Brasil?

Estou há nove anos no governo e considero que houve um avanço para a categoria da agricultura familiar. Temos como ampliar esse projeto, principalmente para as regiões do semiárido e do Norte do Brasil, dentro da prioridade da presidenta da República, Dilma Rousseff, no programa Brasil sem Miséria. Acho que falta, justamente, ampliar, porque o programa já está testado e é o único caminho que nós temos para conseguir, de fato, gerar emprego e renda de verdade – não se trata de uma política assistencialista.

Na minha visão técnica, acho que falta um estreitamento entre os ministérios e as instituições para uma discussão única sobre o segmento artesanal, que representa quase nove milhões de pessoas no Brasil. Tem que haver uma prioridade em todas as esferas de governo. E este é um momento em que o Brasil não pode perder tempo, porque, atualmente, o país é uma grande vitrine econômica para o mundo. Já estamos expandindo essa metodologia, levando o projeto a países da América Central, mas acho que precisamos unificar.

De qualquer forma, o mais difícil já foi feito, que era, justamente, construir a referência e validar esse caminho. Em termos de política pública, agora é o momento de rediscutir, junto com outras instituições que apoiam o segmento, a questão tributária do artesanato no Brasil, a questão da logística, que é um problema sério. Hoje, um quilo custa quase R$ 7 para despachar para o cliente. É preciso rediscutir a política pública. Em outros países, o artesanato tem prioridade, é o carro-chefe do turismo. O Brasil passa por essa fase da Copa do Mundo, da discussão sobre sustentabilidade, da moda sustentável. Precisamos aproveitar. Trata-se de um produto diferenciado com o qual a China não vai conseguir concorrer. Acho que é um momento mesmo de promoção de um debate e de um encontro para a discussão específica da política do artesanato no Brasil.

 

O programa Talentos do Brasil é ligado à Secretaria de Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Qual é a importância de um projeto de artesanato para um ministério como esse?

Sou de Salinas, Minas Gerais, uma região do semiárido brasileiro, e comecei a trabalhar no MDA em 2004. Vim da extensão rural da Emater, fui Secretária de Municipal de Agricultura, Indústria e Comércio e trabalhei muito com geração de emprego e renda. Percebi a dificuldade das mulheres de estruturarem o seu negócio para o mercado, ao mesmo tempo em que tinham grande domínio das técnicas artesanais. Além disso, havia uma infinidade de fibras e materiais que não eram aproveitados. Levei a ideia do projeto ao MDA para valorizar a mulher rural dentro de um trabalho de resgate de suas técnicas, transmitidas de geração em geração, e para que a riqueza da sociobiodiversidade pudesse ser aproveitada.

Nessa somatória de atributos que já existiam, faltava a criação de uma marca própria, uma valorização, uma parceria com profissionais da moda.

Esse foi o propósito da criação do projeto Talentos do Brasil: criar uma marca forte, valorizando técnicas que passam de geração em geração, valorizando matérias-primas locais, e, com isso, inserir o produto num mercado diferenciado.

 

O artesanato complementa a renda da população rural de forma significativa?

Sim, é um complemento importante. Se você fizer um diagnóstico no Nordeste brasileiro, verá que a renda é complementada com artesanato. Então, essa atividade merece toda a atenção das esferas de governo. Como falei, são quase nove milhões de artesãos no Brasil. É preciso criar uma política adequada de crédito para o capital de giro, para o investimento na estruturação do maquinário, na infraestrutura. O artesanato é fundamental para o crescimento econômico do Brasil.

 

O programa Talentos do Brasil promove o encontro entre estilistas e comunidades de artesãos para o desenvolvimento de produtos em conjunto. Quais os benefícios dessa parceria?

É uma troca de saberes. Quando o estilista é selecionando para trabalhar com determinada comunidade, a ideia é que haja uma integração de conhecimentos. A artesã leva uma amostra de seus produtos, apresenta as matérias-primas que existem na comunidade, e o estilista, com sua experiência da metrópole e do mercado, começa a discutir a criação de uma nova coleção. Antes, o estilista recebe uma orientação de acordo com a estratégia comercial: “Você vai desenvolver quinze peças; duas delas podem ser conceituais, treze devem ter um preço de até R$ 300, seis devem ter o preço de R$ 80 a R$ 100 e as outras devem ser mais baratas”. Nós temos um segmento turístico, um segmento para as grandes marcas, brindes institucionais.

 

De que forma os produtos são concebidos? Os artesãos também participam desse processo criativo?

Primeiro acontece uma reunião nacional, encontro do qual participam todos os estilistas, as lideranças das comunidades e os técnicos. Em seguida, os estilistas têm um prazo para desenvolver os produtos de acordo com a troca de saberes com o artesão, que é constante. Depois, há uma oficina in loco. Nessa oficina, durante o processo criativo, o estilista e as artesãs da comunidade interagem. Assim, o artesão participa de forma direta no processo criativo. O artesão tem uma experiência importante, porque é ele quem vai para a feira e, com isso, recebe o feedback do cliente. Às vezes, o estilista quer criar uma bolsa grande de alça de couro, e a artesã já ouviu qual é opinião do cliente sobre aquele tipo de produto.

 

Um dos diferenciais do programa Talentos do Brasil é organizar as dezoito cooperativas com as quais trabalha em uma central, a Cooperativa Nacional Marca Única (Cooperunica). Por que a Cooperunica foi criada? 

A Cooperunica surgiu devido a uma demanda dos clientes. Na época, trabalhávamos com quinze grupos e íamos para uma feira única, onde cada grupo tinha seu espaço. Para comprar esses produtos, a cliente teria que dar quinze cheques ou pagar quinze boletos bancários. Com essa dificuldade da comercialização, surgiu a ideia de criar um CNPJ único, o que facilitaria o poder de barganha de compra e de venda da cooperativa central, beneficiando as artesãs, que são as donas da cooperativa. Atualmente, a Cooperunica envolve dezoito grupos em doze estados do país. 

 

Quais as vantagens do trabalho cooperativo?

Acho que, hoje, as políticas públicas favorecem esse tipo de organização, porque, enquanto governo, nós não podemos apoiar uma pessoa, temos que apoiar o coletivo. Além disso, é muito difícil aos pequenos produtores conquistar o mercado, enfrentar todas as barreiras e dificuldades se não estiverem organizados por meio de uma cooperativa, de uma rede.

 

Os produtos do programa Talentos do Brasil são confeccionados na área rural e vendidos principalmente nas cidades e grandes metrópoles. Como é feito escoamento da produção?

A partir do momento em que o cliente de São Paulo faz um pedido de produtos de comunidades de cinco estados do país, cada comunidade manda seu produto com a nota de remessa e a Cooperunica envia a nota eletrônica para o cliente. O escoamento da produção varia de acordo com o cliente. Para o Pão de Açúcar, por exemplo, tem que ser com uma empresa de logística que agenda a entrega. Já os produtos vendidos por meio do e-commerce são enviados pelos Correios, que coletam a entrega e acertam todo final do mês com a Cooperúnica. Em alguns casos, enviamos os produtos pela Rapidão Cometa, que tem pontos de coleta no Brasil todo. Esta empresa tem condição de coletar os produtos na comunidade, armazená-los num local único e organizar a entrega. Enfim, são várias modalidades e o cliente é quem dita as regras.

 

Atualmente, o consumidor está mais atento às questões ambientais e sociais na hora de realizar uma compra?

O consumo consciente cresceu bastante, mas acho que ele ainda precisa ser muito trabalhado. Temos que ter muito cuidado com questões relacionadas ao preço: não é porque é um produto é sustentável que tem de ser caro. Do outro lado, temos o cliente, cujo perfil varia muito: há aquele que é consciente, que valoriza e quer saber o que ele está levando para dentro de sua casa, o que ele está usando, e há aquele que é desinformado. Acho que com a Copa do Mundo o Brasil tem uma grande oportunidade para fazer uma campanha em prol do consumo consciente. A Copa vai ser uma vitrine para o mercado internacional ver o que o Brasil tem a oferecer: um produto diferenciado, que enche os olhos do consumidor. Então, acho que esse programa tem condições de se expandir, de criar um portfólio de matérias-primas do Norte e do Nordeste do Brasil que ainda precisam ser valorizadas de forma que o mercado queira comprar. 

 

Os produtos do programa Talentos do Brasil são confeccionados principalmente por mulheres. Outros membros da família são também envolvidos no processo de produção de alguma forma?

Sim. Como a renda do artesanato é um incremento importante para a família, o projeto acaba envolvendo o marido na coleta da fibra, os filhos na gestão – porque há todo um trabalho informatizado. Hoje, os filhos são monitores, viajam, participam de eventos. Então, há um leque de oportunidades para toda a família. Mas é a mulher que participa diretamente, que leva informação para dentro de sua casa. É todo um processo não só de geração de renda, mas de educação da família.

 

Na área rural, existem famílias ainda muito machistas. O programa contribui para a melhoria da situação familiar da mulher?

A mulher é empresária do negócio e, com isso, vai quebrando essas barreiras. Na medida em que o tempo passa, com o aumento da renda familiar, o marido começa também a reconhecer o trabalho dela. A questão de gênero é muito importante nesse contexto. Nós sabemos que não é fácil conciliar todas as tarefas – a mulher é dona de casa, lava a roupa, faz comida, cuida da roça e da fazenda, cuida do marido, faz o produto artesanal –, mas elas conseguem organizar o seu tempo. É tudo muito dinâmico e percebemos o quanto elas crescem como pessoa, como os horizontes se abrem. É um projeto que muda significativamente a vida da mulher.

 

A coleção “Passarada – em cada canto, um canto” foi descrita da seguinte forma: “Os pássaros têm compromisso com seu lugar de origem, fazem saídas estratégicas sem perder vínculos, vivem em plena integração com o meio ambiente e guardam intimidade com a natureza e suas mudanças. Assim também são as pessoas que fazem parte do programa Talentos do Brasil. Por isso, suas origens e cultura local são tão importantes – elas são sua identidade”. Levando isso em consideração, qual a importância do resgate das referências locais para a elaboração de produtos contemporâneos com apelo em mercados mais universais?

Esse trabalho de resgate das referências culturais locais é também um trabalho de resgate da alma dessas mulheres. Não é só uma questão de iconografia para o desenvolvimento de uma coleção, mas da alma delas, da história delas. A partir do momento em que elas começam a pesquisar, a identificar e a valorizar o que elas têm localmente, elas começam a perceber que são muito importantes no processo, que a avó, o avô, os pais, o ambiente em que elas vivem e suas histórias têm um valor. Um produto elaborado a partir da valorização cultural e da identidade faz com que elas comecem a sentir que são importantes no contexto, que são as atrizes principais, que sem o seu saber, não há história. A valorização do seu lugar, da sua história, de sua família é um resgate da humanização.