ARTIGO
LUGARES COMUNS: A MARCA TERRITORIAL DO DESTERRO, IDENTIDADE E ETNOGRAFIA
Publicado por A CASA em 10 de Outubro de 2012
Por Raquel Noronha
, Hamilton de Oliveira Filho
e Carlos Delano Rodrigues

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Noronha, Raquel Gomes; Msc; Universidade Federal do Maranhão
noronharaquel@ig.com.br
Oliveira Filho, Hamilton de; Mestrando; Universidade Federal do Maranhão hamiltonmail@gmail.com
Rodrigues, Carlos Delano; Msc; Centro Federal de Educação Tecnológica do Maranhão
delano@cefet-ma.br
Resumo
Este artigo tem por objetivo refletir sobre a utilização da Etnografia como metodologia aplicada ao Design para a construção e mapeamento de um imaginário no desenvolvimento de marcas visuais. A partir do estudo de caso da marca territorial do bairro do Desterro (São Luís, Maranhão, Brasil) encontramos um terreno fértil para o mapeamento de uma teia de significados, aspectos simbólicos relativos à noção de territorialidade que corroboram para construir a imagem de um lugar, considerando os fatores emocionais envolvidos no projeto de Design.
Palavras Chave: Etnometodologia; Design; Marcas territoriais
Introdução
Este artigo tem por objetivo refletir sobre a utilização da Etnografia como metodologia aplicada ao Design para a construção e mapeamento de imaginários na elaboração de marcas visuais. Quando nos deparamos com situações de construção de marcas territoriais – marcas de lugares, sem relação com a gestão político-administrativa local – encontramos um terreno fértil para o mapeamento de teias de significados e aspectos simbólicos relativos à noção de territorialidade, que corroboram para a construção da imagem de um lugar. Compreendemos o homem como ser cultural, imerso em teias de significados construídas por ele mesmo.
Ao representar visualmente um país, uma cidade ou um bairro, estamos lidando com as características de uma região específica do espaço, um lugar. Segundo Claude Raffestin (1993), lugar é a forma como as pessoas vivenciam o espaço. Apreender a síntese das diversas representações sobre um lugar e transformá-la em uma marca visual é o desafio ao qual nos propusemos quando aceitamos uma demanda do SEBRAE-MA: a construção da identidade de marca do bairro do Desterro, localizado no coração do centro antigo da cidade de São Luís, estado do Maranhão, Brasil.
O desenvolvimento do projeto partiu da elaboração de um briefing (detalhado no próximo item) que buscou entender a forma como os grupos sociais envolvidos com a dinâmica do Desterro – moradores ou trabalhadores cooperados – se relacionavam com o bairro e entre si. Entender o que consideravam como características essenciais do bairro para eles mesmos e o que reconheciam, a partir do seu ponto de vista, como elementos relevantes para os turistas que visitam o Desterro.
Ao longo do texto, percorreremos algumas categorias antropológicas essenciais para estruturar esta proposta metodológica: lugar, identidade, representações, territorialidade, entre outras. O objetivo é reforçar a compreensão sobre as novas necessidades do mercado descritas por Iida (2006), pautadas na percepção e compreensão, por parte dos designers, dos fatores emocionais dos consumidores, durante o desenvolvimento do projeto.
A coleta e análise dos dados e a posterior classificação sob a luz da Antropologia fornecem bases subjetivas necessárias a uma nova postura do designer frente às necessidades de mercado de criar individualidades (DESMET, 2002). Pretendemos ainda esboçar como a categoria patrimônio[1] ajudou-nos a construir o sistema sêmico para o bairro do Desterro, considerando-a como um símbolo de identidade coletiva e local.
O bairro do Desterro
Localizado no centro da cidade de São Luís, o bairro do Desterro faz parte do núcleo inicial da cidade, formado pelo conjunto urbano formado pelos bairros Praia Grande e Desterro, onde o primeiro foi o grande centro comercial de São Luís, o segundo seu suporte residencial e portuário. A fartura de peixe e a boa comida vendida pelas moradoras eram uma característica do bairro, assim como as lanternas feitas de papel-de-seda vermelho, sinalizando que nas casas havia comida para vender (SÃO LUÍS, 2005). Ainda hoje essa comunidade é atuante e contribui para a economia do lugar, movimentando a cadeia produtiva local junto com o turismo, as gráficas e a prostituição, segundo o diagnóstico realizado pela Fundação Municipal de Patrimônio Histórico.
Becos, ladeiras, sobrados, solares e azulejaria portuguesa constituem a visualidade do bairro que já foi o palco da boemia da cidade de São Luís entre 1950 e 1970, “o lugar do meretrício, da noite nos quais os jovens eram iniciados e os governantes discutiam política nas casas de tolerância” (SÃO LUÍS, 2005, p.33).
Essa atividade noturna, junto à atividade pesqueira, possibilitou um destino diferente para o bairro do Desterro. Diferentemente do resto do centro histórico, que se esvaziou com a mudança do eixo comercial da cidade para além das margens do Rio Anil, o bairro do Desterro mantém a sua vocação residencial. Ainda hoje, 54% do uso de seus imóveis é residencial, contra os 6% de uso residencial em todo o centro histórico de São Luís. (SÃO LUÍS, 2005).
O panorama atual do bairro reflete um paradoxo entre o que se diz e o que se faz em termos de gestão patrimonial para o centro de São Luís. Se por um lado temos nessa manutenção de usos dos prédios e das antigas práticas sociais do lugar as condições favoráveis para a preservação do bairro do Desterro, por outro temos a dificuldade de conciliar os diversos interesses dos agentes sociais que atuam neste espaço. Na fala [2] do Coordenador do Núcleo Gestor do Centro Histórico de São Luís, observamos como essa presença humana é fundamental para o processo de preservação do patrimônio:
“A FUMPH acha que deve ser preservada a possibilidade do cidadão morar com a qualidade de vida que o centro oferece. É isso que a gente acha que deve ser preservado... A presença humana é indispensável... a presença humana é a preservação... é preciso que as pessoas habitem o centro, gostem de morar no centro, que as pessoas se relacionem de uma forma saudável e interessante com esse espaço para que ele faça algum sentido.” (VIANA, 2007 apud NORONHA, 2007).
A preservação e a possibilidade de se ter o bairro como um produto turístico, e o patrimônio como um traço diacrítico do lugar, gerando trabalho e renda que, segundo os gestores, só se concretiza com o uso residencial e comercial dos centros antigos, não vinha sendo possível no Desterro. O atual estado de preservação do acervo arquitetônico é precário, antigos casarões foram transformados em cortiços insalubres, a prostituição e a boemia – traços históricos do lugar – fomentam o trânsito noturno no bairro, hoje tomado pelo tráfico. A violência urbana também é uma característica percebida no antigo bairro.
São desenvolvidas diversas ações sociais no bairro por ONGs, pela Associação de Moradores, pelo Núcleo Gestor do Centro Histórico [3], pela UFMA, mas sempre têm como margens da sua intervenção limites impostos pelo tráfico de drogas e a violência.
O lugar outrora fora o palco da vida religiosa da cidade e posteriormente o palco da Boemia. Guarda exemplares da arquitetura mais antiga de São Luís como o Convento das Mercês e, em um de seus recantos, a igreja mais antiga da cidade, a Igreja do Desterro, fundada pelos holandeses com sua fachada inspirada na arquitetura mourisca. Esse mesmo lugar, hoje, recebe um fraco fluxo turístico por ser estigmatizado como um lugar perigoso.
O artesanato em fibras naturais, a pintura de azulejos, a cerâmica e a gastronomia constituem atrativos importantes para o Desterro. Há outros potenciais atrativos, porém, que apenas vivenciando o lugar é possível apreender: as senhoras costurando em cadeiras de balanço nas calçadas; o pôr-do-sol em uma sacada de seus solares; o futebol dos meninos na frente da igreja do Desterro; a serenata nos seus becos em noite de lua cheia; o peixe-frito com o arroz de cuxá; a cachaçaria; a boa conversa com os moradores; a escola de samba Flor do Samba; o reggae que ecoa na rua vindo do interior dos cortiços; o tambor de crioula; o bumba-meu-boi no São João.
Estamos diante de um espaço repleto de apreensões e representações diversas sobre o próprio bairro, suas qualidades e seus problemas. A visão de moradores, a visão de turistas e a visão dos gestores. A multiplicidade de imagens sobre o mesmo espaço. Nossa atuação buscou identificar quais articulações de imagens poderia representar essa grande diversidade encontrada no Desterro.
A marca visual e a Etnometodologia
Nesse contexto, fomos procurados pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – SEBRAE, para desenvolver o projeto da marca visual do bairro do Desterro, que seria mais um lugar sob intervenção do Instituto Brasileiro de Hospitalidade, por meio da implantação do Projeto Sustentar.
O trabalho da consultoria em design pressupunha o desenvolvimento de uma marca visual e uma sinalização dos locais que seriam incorporados ao Projeto Sustentar. Resumidamente, este projeto consiste em valorizar aspectos da cultura local e disponibilizá-los aos turistas na sua forma mais original. Dar a possibilidade ao visitante de fruir no cotidiano do bairro, vivenciar os saberes e práticas locais de uma forma simples, sem “maquiagens”, mas com toda qualidade e segurança. Assim, os projetos que já vinham sendo fomentados pelo SEBRAE, pelas ONGs e pelas instituições de gestão e preservação patrimonial foram selecionados por critérios como organização, sustentabilidade e higiene. A cooperativa de gastronomia, a de produção de cerâmica, a de pintura de azulejos, os grupos culturais e os antigos moradores que atuam como contadores de história se organizaram em torno do Projeto Sustentar e, assim, articulados e disponíveis para receber o turista, mostrar o que tinham a oferecer, sua cultura local, receber encomendas, vender pequenos souvenires, realizar apresentações culturais etc. Mais do que gerar renda, o projeto pretende promover a auto-estima dos moradores do bairro por meio da valorização da sua identidade cultural.
A idéia de projetar uma marca para um lugar como o Desterro pareceu-nos desafiadora. Não era a marca de um governo de um lugar, mas sim a marca de grupos sociais inseridos em um espaço, na verdade a marca de vários “lugares” simbólicos resumidos na categoria política de “bairro”. Que visão privilegiaríamos? A dos gestores? A dos artesãos? Dos comerciantes?
Tínhamos esse desafio e a estratégia adotada foi por meio de uma etnografia identificar os nós dessa teia de significados que é o bairro do Desterro.
Partimos para observar as referências, os discursos ditos e os não ditos, o cotidiano do bairro, realizar reuniões de briefing com todos os participantes do projeto, num processo construído pela inserção do designer no lugar da pesquisa, com um distanciamento epistemológico, e a perspectiva de que marca não é apenas uma representação visual mas uma síntese de vivências e experiências memoráveis sobre determinado produto, empresa, pessoa ou um lugar (RODRIGUES, 2007).
Ao aliar Antropologia e Design, buscamos atender às novas necessidades que Iida descreve:
“O pensamento racional rejeita as soluções advindas da intuição e emoção, considerando-as como elaborações de segunda ordem. Contudo, desenvolvimentos recentes em design colocam o prazer e a emoção como foco de uma nova metodologia, tirando-os da marginalidade à qual estavam relegados” (IIDA, 2006, s/p)
Para mapearmos as representações dos moradores, comerciantes, cooperados sobre a identidade do bairro e compreender os aspectos emocionais, os diversos fazeres, as diversas aspirações e as ideologias que compõe a sua relação com o lugar, nos foi valiosa a abordagem etnográfica. Nas palavras de Geertz:
“A etnografia tornou-se um meio de falar sobre teoria, filosofia e epistemologia simultaneamente no cumprimento de sua tarefa tradicional de interpretar diferentes modos de vida.” (GEERTZ apud OLIVEIRA, 2000, p.31)
O que a etnografia nos propõe é que estranhemos as práticas que nos parecem comuns e corriqueiras, que evitemos as naturalizações e generalizações. Assim, o olhar e o ouvir constituem-se na nossa percepção da realidade focalizada na pesquisa empírica e o antropólogo usa como recurso de obtenção de dados esses sentidos. O ver e o ouvir conduzem a um tipo de conhecimento que é orientado por um objetivo. No caso do design, a percepção do designer através dos seus sentidos é de fundamental importância ao desenvolvimento de seu trabalho de pesquisa. Na verdade, busca-se a “compreensão do ponto de vista do outro, sua relação com a vida, bem como a sua visão do mundo”. (MALINOWSKY, 1922, p. 25)
Em uma abordagem já adotada em muitos projetos de Branding em todo o mundo, buscamos na etnometodologia o subsídio para projetar uma marca que seria aprovada não por gestores do SEBRAE, instituição que havia contratado o projeto, mas em uma sessão pública na qual estariam presentes todos os agentes sociais envolvidos com as iniciativas de cooperação local e de organização comunitária no bairro.
O disciplinamento do olhar é uma das características que mais aproximam o designer do antropólogo. Pela perspectiva criada através das teorias antropológicas foi possível, durante a elaboração e execução do projeto, realizar uma aproximação à realidade engendrada no bairro e construir uma marca com sentido para aquelas pessoas, individualmente e em grupo. Estávamos transitando pelo terreno híbrido das diferenças e das identidades – que segundo Hall são formadas “na interação entre o eu e a sociedade” (HALL, 2001, p.11).
Para uma apropriação inovadora da categoria identidade no processo de construção de identidade de marcas, buscamos uma aproximação com a abordagem desta categoria conforme aparece na tradição de construção do conhecimento antropológico. Dentre os diversos autores que tratam do assunto, Barth nos aponta a dicotomia dentro/fora e a presença de uma fronteira que separa sinais de identificação. Weber nos traz a noção de comunidade étnica baseada na crença subjetiva da origem comum, um ponto de partida que todos se reconhecem como pertencentes. A potencialidade gráfica destas definições antropológicas para a categoria analítica de identidade possibilita-nos elaborar algumas sínteses conceituais comuns ao Design e à Antropologia: identidade é algo que nos confere conforto e aquilo que nos tranqüiliza, aquilo que é comum a um grupo, a uma comunidade, a uma sociedade. A busca dessa identidade tem a função simbólica de consolidar o pensamento sobre determinado assunto, fato ou artefato, estabelecendo limiares, fronteiras. A identidade é uma repetição, que gera representações, discursos. A categoria de identidade se materializa nas marcas que produz. A identidade é uma característica de superfície.
Assim, a descrição do lugar, das práticas sociais estabelecidas, ajudam a construir a teia das imagens e significados relevantes e essenciais às pessoas que constroem e vivenciam o lugar. O cruzamento entre o Design e a Antropologia está aqui: o antropólogo vê, escuta e escreve; o designer vê, escuta e projeta. (SANTOS, 2007)
RESULTADOS
De modo geral a Igreja foi citada como principal referência ao bairro e também como o local mais visitado por turistas. De acordo com a pesquisa, os moradores do bairro são festeiros, alegres, hospitaleiros e religiosos. É reconhecido também um grande laço de fraternidade entre os moradores do bairro. Os resultados da pesquisa apontaram que 89% dos moradores mantêm uma relação de proximidade. Palavras como alegria e amor foram freqüentemente citadas no decorrer da pesquisa.
Ao nos aproximarmos dos moradores e escutar suas histórias de vida, começamos a observar que os nascimentos, as vidas, as mortes, as festas, os momentos religiosos, tudo enfim, gira em torno da Igreja do Desterro. Foi possível compreender rapidamente os modos de vivenciar e empoderar-se praticados pela comunidade para com a Igreja. Um exemplo, a chave da Igreja não fica sob a guarda do pároco ou de outro representante religioso, mas com a própria Associação de Moradores do Bairro do Desterro. As pessoas freqüentam a Igreja não apenas para rezar, mas lá é o lugar comum, independente da religião ou de práticas estritamente religiosas.
Em uma etapa quantitativa da pesquisa, foram aplicados questionários semi-estruturados, a partir dos resultados pudemos construir algumas representações sobre essa Igreja. Quando perguntamos o que os moradores não mudariam no seu bairro, “Igreja” foi a resposta mais freqüente. Nesta pergunta não havia itens para escolha, a resposta era livre. Em segundo lugar, foram apontadas a “Religiosidade”, empatada com “Moradores”, “Confraternizações” e “Festas”.
Em outra questão perguntamos o que os turistas buscavam no bairro, a Igreja foi apontada por 45% dos moradores como o principal foco de interesse dos visitantes. Quando perguntamos que imagem era a “cara” do bairro, o mesmo percentual se repetiu.
Questionamos ainda sobre a freqüência de cada um na Igreja, 45% disseram que freqüentam regularmante a Igreja, 41% que ferquentam eventualmente a Igreja, e apenas 14% disseram não freqüentar a Igreja.
Além dos dados quantitativos, os qualitativos foram preponderantes para a escolha da imagem da Igreja como o símbolo da marca visual do bairro. Identificamos uma enorme gama de representações sobre a Igreja do Desterro. Se considerarmos o contato de uma pessoa com um produto, conforme Iida, e neste caso podemos considerar a marca visual o produto, buscamos orientação em sua proposição sobre a importância do primeiro contato emocional, em que, para o autor, caso a pessoa decida que não gostou do produto, “dificilmente essa opinião será modificada posteriormente, durante o uso, pelos benefícios funcionais.” (IIDA, 2006, s/p).
A possibilidade de haver uma rejeição à imagem da Igreja como representação coletiva era remota, haja vista a relação emocional já desenvolvida. Para descrever este mecanismo de interação social responsável pela elaboração de um signo comum, Durkheim (1970) remete a momentos de intensificação dos elos entre indivíduos que geram periodicamente novas representações coletivas, imediatamente encarnadas em um símbolo. O substrato da vida social são as relações mantidas entre os indivíduos associados. As representações coletivas surgem destas relações entre os indivíduos assim combinados ou entre grupos secundários que se intercalam entre o indivíduo e a sociedade.
Porém, quando nos referimos à identidade coletiva, falamos em uma perspectiva mais abrangente da dimensão simbólica. Acreditamos, na mesma perspectiva de Eric Wolf, que as identidades coletivas não são caracterizadas pela homogeneidade e compartilhamento de crenças, mas sim pela pluralidade de formas de representações de um símbolo identitário.
“(...) tentei deslindar os diferentes elementos e níveis de motivação e interesse que foram reunidos historicamente numa poderosa representação coletiva. Trata-se de uma tentativa de analisar um símbolo nacional, não como uma projeção unificada de uma cultura nacional supostamente homogênea, mas como um conjunto de referentes heterogêneos, tirados de várias tradições de etnicidade, classe e religião, combinados numa unidade multifuncional por meio de signos que se cruzam.” (WOLF, 2003, p.219)
Durante as reuniões com as cooperativas do bairro, as características formais da igreja foram mapeadas (Fig. 01). A tipografia do logotipo foi desenhada a partir de inscrições nas lápides e portas da Igreja (Fig. 02). O desenho do símbolo partiu da fachada da Igreja, com seus arabescos (Fig. 03). Evitamos a utilização da cruz, para tentar esvaziar as referências religiosas, já que a Igreja é um lugar utilizado pelos moradores não apenas como um templo, mas é lá que ocorrem as reuniões das associações de bairro, peças de teatro, apresentação de projetos pelos gestores, etc. É um lugar aberto, que recebe a todos.
O desdobramento do projeto da marca visual era a sinalização das casas de moradores participantes do Projeto Sustentar. A forma do símbolo foi replicada em um móbile, que reproduz a fachada da Igreja, utilizando a técnica da serralheria presente nas sacadas dos casarões (Fig. 04). Isso também facilitaria a produção, já que no bairro há diversos artesãos que dominam a técnica. A integração com a visualidade do lugar também estaria garantida e isso era uma prerrogativa já que o bairro do Desterro tem grande parte dos seus imóveis tombados. Em cada casa, cada ateliê, cada oficina, um móbile com fitas coloridas, como aquelas vendidas em lugares de turismo religioso (como a do Senhor do Bonfim, Nossa Senhora da Aparecida, etc.) indica que ali há uma pessoa da comunidade disposta a dividir um pouco da experiência de viver no bairro do Desterro. As cores das fitas representam um campo do saber local, que de acordo com o Projeto Sustentar são os seguintes: Laranja – Temperos desta terra; Roxo – Histórias desta terra; Vermelho – Artistas desta terra; Azul – Fazeres desta terra; Amarelo – Produtos desta terra; Verde – Saberes desta terra (Fig. 05)
Considerações finais
Quando buscamos sinais identitários que se constituam em signos ditos de representações coletivas, estamos buscando interseções das consciências individuais sobre assuntos coletivos. Uma marca territorial deve considerar aspectos simbólicos que confiram segurança às pessoas que vão receber esta marca. O binômio identidade/imagem deve ser baseado nas relações de territorialidade envolvendo agentes, suas representações e práticas sobre um espaço/tempo, e a conseqüente interação entre esses agentes, formando tessituras – conjuntos de relações de poder, simétricas ou assimétricas. Nomear e criar uma marca são ações que atentam a hierarquias de poder. Portanto, quando mergulhamos na realidade do bairro, estivemos sempre conscientes da função da marca visual. Para o que e para quem estávamos projetando.
O campo etnográfico nos permitiu identificar as dimensões das múltiplas tessituras construídas por sobre o bairro do Desterro, que extrapolam sua fisicalidade, seus limites geográficos e se estendem por diversos níveis das políticas locais de preservação patrimonial.
O resultado final – um lugar comum – como muitos podem considerar, pela obviedade do sinal escolhido para o símbolo, uma imagem presente no cotidiano do bairro, já muito utilizada para comunicar visualmente as atividades culturais do local, guarda a força que a categoria patrimônio lhe confere. A imagem do patrimônio conota estabilidade, uma noção de continuidade, de uma referência que acalma e aplaca as inseguranças provocadas pela violência e abandono. As glórias do passado são materializadas na escala monumental da arquitetura. Esse projeto nos permitiu avançar mais um passo na tese de que a categoria e as noções de patrimônio têm sido construídas como unificadoras de uma rede de significados simbólicos e vêm sendo sintetizadas, em São Luís, em uma idéia de identidade ludovicense [4].
Assim, esta abordagem vai de encontro a outras pesquisas que estamos realizando no âmbito acadêmico e no mercado da cidade de São Luís, construindo uma metodologia de projeto que aproxime os métodos de pesquisa tradicionais do Design às estratégias da pesquisa etnográfica da Antropologia – a percepção das subjetividades, a alteridade, as formas de classificar e hierarquizar a informação – como uma forma de contribuir para a ampliação do campo epistemológico do Design.
Referências
DESMET, Peter. Designing Emotions. Delft: Universidade Tecnológica de Delft, 2002.
DURKHEIM, Émile. Sociologia e Filosofia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1970.
HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
IIDA, Itiro; MÜHLENBERG, Poema. O bom e o bonito em Design. In: Anais do 7º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design. Disponível em: http://www.design.ufpr.br/ped2006/errata.pdf em 18.06.08.
MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril, 1976.
NORONHA, Raquel. No coração da Praia Grande: representações sobre a noção de patrimônio na Feira da Praia Grande, São Luís, Maranhão. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais. Orientação: Prof. Dra. Maristela de Paula Andrade. UFMA, 2007.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Identidades, etnia e estrutura social. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1976.
RODRIGUES, Carlos Delano. A cedae e a logomarca. In: www.designbrasil.org.br, 2007.
(http://designbrasil.org.br/portal/artigos/exibir.jhtml?idArtigo=1017)
SANTOS, Camila Andrade dos. Design etnográfico: Contribuição para o desenvolvimento de uma nova proposta metodológica. Monografia de graduação. Bacharelado em Desenho Industrial. Orientação Prof. Raquel Noronha. 61 p. UFMA, 2007.
SÃO LUÍS. Prefeitura Municipal. Desterro: um bairro além dos mapas. Prefeitura Municipal. São Luís: QG Qualidade Gráfica e Editora, 2005.
RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. SP: Ática, 1993.
WOLF, Eric. Antropologia e poder. Orgs: Bela Feldman-Bianco e Gustavo Lins Ribeiro. Brasília: Ed. Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Ed. Unicamp, 2003.
Notas:
1 As representações sobre a noção de patrimônio no centro antigo de São Luís foi o objeto da dissertação de mestrado da autora, pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Sociais da UFMA.
2 Entrevista concedida para a dissertação de mestrado da autora.
NORONHA, Raquel Gomes. No coração da Praia Grande: representações sobre a noção de patrimônio na Feira da Praia Grande, São Luís, Maranhão. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais. Orientação: Prof. Dra. Maristela de Paula Andrade. UFMA, 2007.
3 Instituição formada por órgãos do governo federal, estadual e municipal, instituições privadas e representantes da sociedade civil. Fundado em 2005, é exemplar na atuação conjunta dos órgãos na gestão compartilhada do Centro Histórico de São Luís.
4 Termo utilizado para a pessoa que nasce na cidade de São Luís do Maranhão.