A cabaça deixa de ser representada junto ao homem e a sociedade e passa a ser suporte artístico na criação de artistas contemporâneos. Esses foram cuidadosamente selecionados, pela forma de relação do fruto por meio do sagrado, do som, do movimento, da luz e imagem, da instalação e da arte da rua – o grafite.Antes o artista era visto como supremo e único criador de imagens, já não é mais. Nunca visualizamos tanto, nem estivemos tão submersos em visões criadas por tantos indivíduos não especializados sendo que cada imagem tem a sua razão de ser: nada é verdade, nada é mentira, tudo é de acordo com o cristal que se vê. [62]
Deoscoredes Maximiliano dos Santos, conhecido como Mestre Didi, nasceu em mil novecentos e dezessete na cidade de Salvador, na Bahia. Na Ilha de Itaparica, aos oito anos é iniciado no culto aos ancestrais. Após nove anos de dedicação foi confirmado sacerdote.Ele (o Rei de Ketu) muito espantado com meu nagô ioruba, mandou que eu desse prova do que tinha dito. E assim foi que cantei algumas cantigas enaltecendo a terra, o Rei e a riqueza de seu povo.
Mestre Didi Asipá [63]
A relação entre a arte e o expectador é estabelecida da mesma forma que ocorre entre o encontro de diferentes e tão diversas culturas. A necessidade e sede de saber mais para aliviar a ansiedade causada pelo mistério instalado – o destrinchar dos porquês. As relações se unem entre o artista terreno e a sabedoria sagrada, o presente e o passado, o tradicional e o contemporâneo, o interior e a transcendência que flui quando ele conecta tudo ao cosmos, a outro mundo, outro espaço, provavelmente ao que Juana Elbein dos Santos[66] denomina de: vertente mitológica das artes, ao projetar uma energia poética de caráter universal. Ainda segundo a autora Juana,A originalidade que caracteriza o trabalho de Mestre Didi advém fundamentalmente de sua fidelidade, convicção e fé em sua tradição, que constrói seu fundamento intelectual e estético.[65]
O artista cria uma mão dupla tanto entre o homem e seus ancestrais, quanto o homem e a natureza.Didi contribui para reconduzir e recriar todo o sistema cognitivo emocional comunitário, em relação tanto ao cosmos quanto à realidade humana.[67]
Anton Walter Smetak nasceu em Zurique, Suíça, em mil novecentos e treze. Estudou música em Zurique, Salzburg e Viena, na Áustria. No início, seus estudos eram voltados aos instrumentos musicais piano e violoncelo, mas também se dedicou à teoria geral da música, harmonia, morfologia e orquestração.A cabaça, fruto da cabaceira, vem de algum desejo de uma natureza incógnita. Criar uma cabeça dentro do reino vegetal com centenas de sementes colocadas no miolo. Fator idêntico acontece com o cérebro humano - são os pensamentos e idéias que dão impulso à vida energética ou à vida consciência. São várias as maneiras de usar cabeças e cabaças para cuias e instrumentos. Diálogos com Smetak[70]
Como era um desconstrutor do som, acreditava na infinidade e motivava seus seguidores a criarem seus próprios instrumentos. Por meio de seu trabalho transmite as seguintes mensagens às próximas gerações:São de materiais pobres e precários, mas que geram uma riqueza ilimitada de formas e sons, que reverberam por todo o espaço, por meio de ruídos inventados por descomposições ou pelo silêncio contemplativo, meditativo, transmutador e transformador dos estados de ser[79].
O músico Smetak trabalhou incessantemente na face misteriosa dos sons, em instrumentos que possam ativar a percepção mental, transmitindo a paz para a consciência. A forma, o movimento, o gesto, o silêncio rompido pela sonoridade compassada, que flui e dialoga entre si no espaço interno e externo dessa grande mostra, faz com que o espectador participe de um campo inimaginável, capaz de tocar a alma com sons esquecidos, compassos guardados na memória e outros que não são comuns aos ouvidos, causando certo estranhamento.Criem suas próprias formas de exprimir a alma em possibilidades infinitas de sons e formas. Inventem uma música orgânica vinda de qualquer fonte da matéria, não lhe impondo uma forma, mas sendo um com ela. Não se anulem em meio à barbárie da cena contemporânea, embotando a mente frente aos produtos da indústria cultural, onde mais importa o produtor cultural do que o criador, o artista[80].
Catin Nardi é argentino, nasceu em Santa Fé e vive no Brasil desde o início de mil novecentos e noventa. Como ator, sempre se dedicou a trabalhos teatrais e de palco. Ao chegar ao nosso país, no Espírito Santo, sentiu a necessidade de seguir interpretando e participando em peças teatrais.Arte em cabaças - Catin Nardi transpassa a casca suave da cabaça, mergulhando na poética do vazio em seu interior. É o elo entre oriente e ocidente, encontrado neste fruto mestiço e primitivo, criando personagens expressivos e articulados. Ao explorar as diversas formas da cabaça na produção destes bonecos, o artista transmite aos espectadores seus valores, preocupações, questionamentos e compartilha seus conhecimentos com toda a comunidade. É um artista contemporâneo que faz uso da fonte popular.
Moira Anne Bush Bastos, 2008[84].
A artista Celeghini é mineira, nasceu em Belo Horizonte onde estudou dança - balé clássico, música - teoria musical e canto. Quando morava no Espírito Santo, estudou artes plásticas na Universidade Federal do Espírito Santo.Para quem possui como eu, uma natureza nômade, a cabaça é um bem precioso para uma jornada, por poder portar água, coisas ou música. As minhas portam as cores, as formas e os fluxos que capto com meus sentidos, todas as possibilidades entre o ser e o vir a ser dos instantes. Depois, deixo flutuar.
Gina Celeghini[88]
O artista Miguel Chikaoka nasceu na cidade de Registro, em São Paulo. Graduou-se em engenharia eletrotécnica e atualmente reside em Belém do Para e é fotógrafo-educador. Idealizou a “FotoAtiva”[95], local onde olhares diversos e fotografia se encontram em constante efervescência. Possui um currículo rico em exposições individuais e coletivas, nacionais e internacionais.Assim sempre que possível, volto às pessoas e aos contextos fotografados, pela simples vontade de experimentar o meu olhar passando de mão em mão sob o prisma de outros olhares. Miguel Chikaoka[94]
Explorar o suposto vazio contido no interior da cabaça permite que o observador preencha-a com a imagem que deseja. A imagem se torna dinâmica ao materializar-se por meio da própria comunicação. Possibilita inúmeras representações de outras realidades singulares a cada ser em particular, principalmente no campo da imaginação e da interpretação.O mundo segue nos seus múltiplos fluxos e energias, mas a humanidade, que é nossa, sustenta-se na imagem de um mundo terceiro, o universo da comunicação[98]...
Marcos Reis Peixoto nasceu em Santo Antônio de Jesus, na Bahia. Estudou artes plásticas e agronomia. Recebeu bolsa para viagem à Europa, em mil novecentos e noventa e um, onde realizou pesquisas na Itália, Alemanha, Suíça e Holanda. Segundo Marepe, foi Duchamp quem lhe deu coragem de assumir a natureza do objeto, porém seu processo vem da cultura popular[104], esse universo dinâmico, diverso, que explora a simplicidade com um olhar para o seu entorno. O artista possui um amplo currículo de participações em exposições individuais e coletivas sendo reconhecido nacionalmente e internacionalmente.“Nécessaire, nécessaire. Nécessaire,
desnécessaire. Desnécessaire,
desnécessaire”.
Marepe[103].
No ano de dois mil e sete, o artista Marepe, realizou uma intervenção na Ponte das Bandeiras, na cidade de São Paulo intitulada “Pérola de Água Doce”[106], em comemoração ao aniversário da cidade, na qual utilizou a cabaça como um dos suportes artísticos para sua performance, com curadoria da crítica de arte, Cacilda Teixeira da Costa. A idéia desse projeto partiu da Escola São Paulo[107] e contou com o apoio da Galeria Strina[108], divulgadora das mostras do artista.O artista possui dois eixos principais: a referência familiar, pois na opinião do artista a família é um vínculo muito forte, que perpetua os valores da sociedade e a influência da cultura popular que se manifesta nas ruas[105]
Saint Clair Cemim nasceu em Cruz Alta, no interior do Rio Grande do Sul. A presença do artista gaúcho Saint Clair Cemin na Quarta Bienal de Artes Visuais do Mercosul foi a primeira oportunidade que o artista teve para mostrar seu trabalho ao público latino-americano. Foi o primeiro artista vivo a ser homenageado.Canivetes, alicates e óculos foram criados pelo esqueleto.
A filosofia é filha do vinho com o espelho rococó.
Saint Clair Cemin, provérbios[114].
Os irmãos artistas, Gustavo e Otávio Pandolfo nasceram em São Paulo na década de setenta. Sob influência da cultura “Hip Hop”, grafitam há mais de vinte anos os muros da cidade de São Paulo. O interesse dos artistas está na arte de rua, que tem relação com a transformação; interferências do clima, da poluição, da natureza, inclusive de transeuntes; o anonimato, pelo menos antes do reconhecimento e da identificação dos personagens; a ultrapassagem de fronteiras impostas por leis urbanas; a aproximação de distintas culturas; o trânsito entre o popular e o erudito, a possibilidade de apresentar o mundo imaginário e de tocar as pessoas que entram em contato com suas obras.Quando estamos criando, nos conectamos com “Tritrez”, que é o nosso universo particular, lúdico, onde só tem coisas boas. É o nosso equilíbrio espiritual.
OSGEMEOS[120]
Rostos grafitados em cabaças transpassam o inconsciente dos irmãos brasileiros, deixam de serem apenas cabeças e passam a fluir em relação com o que faz parte do mundo simbólico, como flutuação e ambigüidade, entre o cheio e o vazio. Os usos tradicionais do fruto, representado como bóias para pescaria, ninhos de pássaros, ex-votos, instrumentos musicais, recipiente e balões.O efeito é conseguido pela pressão suave de um bico com orifício pequeno, por vezes adaptado de outras latas de aerossol. O jato é aplicado a uma curta distância da superfície. Seguem-se duas características: uma linha fina de contorno e uma aspersão de gotículas marginais à linha[123].
A inversão e a ambigüidade são representadas pelos desenhos de cabaças. O ato de submergir ou flutuar em uma situação sofrida por tantas vítimas que enfrentam as enchentes. A casa barco é um ninho e os habitantes são impotentes perante a natureza. Esta situação parece não estar vinculada a raça, ao sexo, a idade, a profissão ou ao conhecimento, mas sim a solidariedade expressa no conjunto dos personagens, ao enfrentar situações adversas ou caóticas.Na poética das pinturas d’OSGEMEOS estão as referências do cotidiano simples, das pescarias com o avô, do amor, das viagens, dos relacionamentos, das fugas e das contradições, na busca por novos caminhos que nos permitam sobreviver[126].