"Inventar
que artesanato pode ser brinde é uma loucura"
Lizete Prata é
socióloga, consultora e diretora executiva da Associação Mundaréu.
Você é fundadora e diretora executiva da Associação Mundaréu, umas das primeiras instituições a utilizar o comércio justo para a promoção do artesanato no Brasil. Como sua trajetória nessa área se desenvolveu? Sou socióloga de formação, com pós-graduação em Antropologia. Nos anos 80, trabalhava como consultora do Ministério do Desenvolvimento, em projeto do Banco Mundial no Nordeste, e acho que foi ali que essa história começou. Eu cuidava de uma área chamada "Geração de trabalho e renda”, que lidava basicamente com atividades do setor informal. Conheci experiências em Salvador, Recife, Fortaleza e tive um contato muito forte com o artesanato nordestino. Quando voltei a São Paulo, trabalhei em alguns órgãos do governo e, há doze anos, a necessidade de fazer alguma coisa que juntasse meu lado estético e minha formação de socióloga resultou na Associação Mundaréu. Reunimos um grupo de sete mulheres e fundamos a instituição com uma qualificação bem diversificada: tinha gente da área de negócios, da área de design, da área social. Foi uma das experiências mais importantes da minha vida.
Desde o final de 2010, a Associação Mundaréu vem passando por mudanças intensas, tendo, inclusive, fechado seu ponto de venda. Em que consistem essas mudanças e quais os motivos para estarem acontecendo nesse momento? Há vários aspectos a considerar. Em primeiro lugar, a Mundaréu surgiu num contexto em que a expectativa que se tinha em torno das iniciativas do terceiro setor era a de que se ampliassem, crescessem. A ideia era ter várias filiais da loja e havia pessoas solicitando que abríssemos em outros estados como Recife e Rio de Janeiro. Porém, por conta de várias transformações contextuais, constatamos a inviabilidade de realizar a comercialização de produtos de comunidades sem que houvesse subsídios. A comercialização dessa cadeia produtiva tem sobrevivido apenas nos casos em que existe apoio financeiro externo. Entre outras coisas, isso fez com que, em vez de crescer, mudássemos de rota. Vimo-nos diante de uma nova conjuntura, onde há necessidade e obrigação de ter estruturas mais enxutas com um custo fixo baixo. Um ponto de venda de varejo que fosse atraente às pessoas representava um custo significativo, além da remuneração dos responsáveis pelas vendas. Tudo isso junto representa maior dificuldade na comercialização. Decidimos, então, não comercializar os produtos, e não havia motivos para termos um showroom. Sem dúvida, foi uma perda para o trabalho da Mundaréu, mas foi uma opção bastante pensada. É mais importante continuarmos fazendo nosso trabalho como uma organização mais enxuta, num modelo adequado ao momento atual. Poderemos abordar depois a questão das dificuldades da comercialização.
Em que consiste o trabalho da Mundaréu atualmente? Não abandonamos nada do que fazíamos antes, exceto a comercialização. Na verdade, deixamos de fazer a comercialização direta, mas continuamos identificando oportunidades comerciais, indicando para os grupos e, na medida do possível, promovendo articulações para que ela aconteça. Continuamos elaborando e desenvolvendo projetos que têm por objetivo incluir as mulheres do ponto de vista socioeconômico e cultural, o que chamamos de qualificação de empreendedores, e estamos investindo bastante no trabalho de consultoria, pois, ao longo de todo esse tempo, acumulamos um conhecimento importante. Acrescentamos como atividade nova o trabalho de “advocacy”, pois acreditamos que o governo tem de ter um papel mais atuante nesse segmento de geração de trabalho e renda. Quando falamos de políticas públicas para a população de baixa ou nenhuma renda, com baixa escolaridade e baixa qualificação profissional, só temos o Bolsa Família e algumas intervenções difusas que beneficiam pequenos produtores urbanos.
Em termos de políticas públicas, o que poderia ser feito para a promoção de melhorias nesse setor? Esse trabalho que, hoje, é promovido por várias ONGs tem muita qualidade e deveria permanecer. Contudo, o governo também deveria assumir essa função como uma tarefa sua, não só em termos de propiciar qualificação profissional, mas de criar mecanismos mais efetivos de comercialização. O governo poderia apoiar a comercialização do mesmo jeito que apoia, por exemplo, pequenos empreendimentos agrícolas: há uma política federal que estabelece que um percentual da merenda escolar tenha de ser comprada dos pequenos produtores. É possível pensar em ações semelhantes que garantam a comercialização de produtos gerados por esses empreendimentos. E não estou falando só de artesanato. Existem muitos empreendimentos de costura, por exemplo, que tem uma produtividade maior e poderiam até fazer parte da cadeia de valor de uma empresa. Algumas empresas muito sérias têm pensado nisso e percebido que é possível incluir pequenos empreendimentos como fornecedores. Como se coloca na cadeia de valor um empreendimento diferente dos fornecedores habituais? É preciso desenvolver a mentalidade de que isto gerará renda autônoma para as pessoas. Elas vão crescer, se desenvolver e poderão ter empreendimentos mais rentáveis, que possibilitem uma forma de inserção mais efetiva e formalizada. Com isso, não vão mais depender de doações. Essa ideia poderia ser desenvolvida com apoio governamental.
Deve-se estimular a comercialização de produtos artesanais no atacado? O artesanato tem um perfil de venda no varejo. Inventar que artesanato pode ser brinde é uma loucura. Uma coisa que é feita uma a uma não tem economia de escala, não adianta. Se fizer mil é mais barato? Não, não é mais barato. Às vezes, os grupos fazem concessões para poder vender. E, às vezes, pegam uma encomenda grande e fica difícil entregar. Existe certa incompatibilidade entre artesanato e mercado em termos da lógica. Portanto, uma produção para varejo é mais viável. São Paulo poderia ter um ponto de venda em uma área nobre da cidade que valorizasse o artesanato. Uma coisa que percebi ao longo desses anos, é que “artesanato” tem uma conotação pejorativa para parte da população. Acho que nos anos 60, Lina Bo Bardi escreveu um artigo interessante (Tempos de grossura: o design do impasse) falando entre outras coisas sobre a origem do artesanato brasileiro. Ela dizia que, diferentemente do artesanato da Europa, que surgiu a partir das corporações de ofício, no Brasil, artesanato é fruto da pobreza - ela mostra produtos como, por exemplo, uma lamparina feita a partir de uma lâmpada quebrada. Na Europa, artesãos tradicionais deram origem à maioria das grandes casas de moda. No Brasil, a maior parte do artesanato são jarras, potes, cestas, coisas que foram feitas para uso próprio. Por conta desse nascimento “plebeu”, o artesanato brasileiro nunca foi muito valorizado, apesar de sua qualidade e originalidade. Então, as pessoas acham que artesanato tem de ser mais barato. Essa ideia é reforçada pela profusão de trabalhos manuais. Hoje, há lojas que vendem uma série de traquitanas para a pessoa pintar ou fazer a modelagem. Tudo isso tem o mesmo nome – “artesanato” – quando, na verdade, são coisas diferentes com histórias e contextos distintos. A forma como os trabalhos manuais são divulgados nos programas de televisão e em revistas vendidas em bancas de jornal – “olha, é um jeito de ganhar dinheiro” – também contribui para a banalização do artesanato e para uma grande mistura entre essas coisas que são muito díspares.
Quais os motivos do trabalho da Associação Mundaréu ter sido focado nas mulheres? Focamos o trabalho nas mulheres pois são elas que se dedicam, têm a disponibilidade e o interesse nesse tipo de produção. Além disso, a inclusão da mulher é muito importante para o próprio desenvolvimento da sociedade brasileira. Do ponto de vista qualitativo, esse trabalho é extremamente emancipatório: mais do que a possibilidade de renda, as mulheres passam a ter o direito à palavra, começam a se manifestar, percebem que são capazes e vão atrás de uma melhor qualificação escolar e profissional. Tudo isso é feito sem que nossa atuação tenha um viés feminista. Sem deixar de reconhecer a relevância das lutas feministas para a promoção da igualdade de direitos e o combate à violência contra a mulher, às vezes sinto que alguns continuam olhando a mulher como uma “vítima”. Esse olhar não me agrada. Fragilidades, todos têm. Acredito que a superação dessa imagem de “penalizada e impotente” passa, obrigatoriamente, pela valorização do lado forte da mulher, que é capaz de se virar, de conseguir o que quer. No caminho do empreendedorismo, estamos estimulando essa cidadania. Como empreendedora, a mulher pode ser uma cidadã plena de seus direitos, de sua beleza e de sua capacidade de criação.
Você citou dificuldades na comercialização. A comercialização de produtos artesanais sem subsídios é viável? Não. Em primeiro lugar, há um custo de produção elevado, pois são pequenas estruturas com baixa produtividade. Isso faz com que as matérias-primas sejam adquiridas em pequenas quantidades, o que significa pagar um preço mais alto. Além disso, para todas as organizações envolvidas com o comércio justo, existe um cuidado de que o produtor receba uma remuneração adequada pelo seu trabalho. Isso também gera um custo de mão de obra mais elevado do que aquilo que se paga para quem está numa fabriqueta e ganha centavos pelo que faz. Finalmente, se houver uma estrutura para a comercialização, qualquer que seja ela, haverá também um custo. Porém, mesmo considerando tudo o que estava por trás dos produtos, quem compra não acha que os preços podem ser mais altos. Ao contrário, muita gente diz que tem de ser mais barato. Estamos no mesmo mercado de quem explora mão de obra e de grandes empreendimentos que tem muito capital de giro para investir. Nosso produto deveria ser percebido como aquele que tem valor agregado; porém, na lei do mercado, produto mais caro, dança. A construção de mercado do comércio justo pressupõe uma abertura, uma disposição dos envolvidos na cadeia produtiva de incorporar um “fee” menor, para que, ao final, os produtos continuem a ter um preço razoável. Acho essa discussão muito complicada no Brasil porque os impostos são muito elevados e essa mentalidade de superávit menor está ainda embrionária.
Quais dificuldades o próprio produtor encontra para comercializar o seu produto? Ele vai vender onde? Pode vender para os vizinhos, em seu bairro, mas há certos produtos que não serão acessíveis ou que não irão despertar o interesse das comunidades locais. E como essa pessoa chega sozinha a grandes empresas? Já vi experiências trágicas. Uma vez, fizemos uma reunião no salão de uma empresa localizada na Avenida Brigadeiro Faria Lima. Quando os produtores chegaram à porta, sofreram restrições para entrar no prédio, pois eram pessoas de aparência mais simples. Outra vez, levamos um grupo de jovens da periferia num Shopping Center e um vigia veio ao lado acompanhando. As meninas falaram: “nunca mais voltaremos aqui”. É uma coisa silenciosa que, à primeira vista, pode parecer um exagero, mas não é. Então, acho que é muito difícil para as pessoas realizarem essa comercialização.
Em relação à metodologia de trabalho da Associação Mundaréu, quais são os passos de um projeto? Pode-se trabalhar com um grupo que já existe ou formar um novo grupo. A formação de um novo grupo é muito mais complexo, mas essa tem sido uma demanda das empresas. Quando este é o caso, fazemos um trabalho de mobilização e divulgação sobre o que é um projeto e, ao mesmo tempo, tentamos identificar os conhecimentos e características presentes naquele bairro ou região em que o grupo está inserido. Para realizar qualquer tipo de oficina, é preciso ter uma ideia sobre o que as pessoas já sabem fazer. Então, chega o momento em que temos mais ou menos uma noção do que poderá ser o empreendimento e um conjunto de pessoas interessadas em participar. Em seguida, passa-se para a etapa de formação de grupo e as pessoas recebem qualificação técnica. Em alguns casos, aproveitamos as pessoas que já possuem essa qualificação como coordenadores e multiplicadores de técnica. Juntamente com esse processo, identificamos possibilidades comerciais e demandas de mercados para, então, elaborar os produtos. O desenvolvimento de produtos tem de ser compatível com os mercados possíveis. Há a necessidade de se trabalhar, também, a questão da gestão financeira básica do grupo – conta bancária, fluxo de caixa, formação de preço, contatos comerciais –, assim como a questão do marketing e da comunicação. Ou seja, é como uma empresa normal. A única dificuldade é que as pessoas nem sempre têm interesse e conhecimento para se apropriar disso tudo. Às vezes, há pessoas dentro do grupo que fazem a produção e outras que preferem se ocupar das outras áreas. O cara que produz pode não ter interesse em ser gestor, cuidar do fluxo de caixa, da conta bancária, dos depósitos, dos pagamentos, das compras, do controle de qualidade. Além disso, trabalhamos também a questão de formalização. É preciso informar as pessoas sobre as possibilidades do que aquele empreendimento pode ser. Agora, com essa nova legislação que está entrando em vigor, não será mais necessário ter vinte pessoas para formar-se uma cooperativa, e, então, a cooperativa pode passar a ser uma alternativa viável para a formalização. Anteriormente, não era. Todo mundo falava de cooperativismo, mas a cooperativa tinha que ter vinte pessoas, além de ter tributos específicos. Existe ainda um outro trabalho que é feito junto com estruturação do coletivo. Trata-se da oferta de informações e da formação de redes de apoio. Ao mesmo tempo em que o grupo de mulheres precisa, por exemplo, estruturar regras de funcionamento, definir quem cuida do local, para poder trabalhar em grupo, existem várias necessidades que são muito maiores do que o projeto pode oferecer. Para isso, oferecemos informações sobre seus direitos, como a questão da contracepção, as leis de proteção. Além disso, há, por exemplo, a mulher que precisa de óculos. Onde ela consegue óculos de graça? Há necessidade de articular apoios, como doação de matérias-primas, de máquinas e outras atividades voluntárias que são fundamentais para a sobrevivência do grupo no longo prazo. Às vezes, há alguma empresa que pode prestar consultoria ou oferecer algum tipo de apoio.
Transformar pessoas de baixa escolaridade em empreendedores capazes não apenas de produzir objetos artesanalmente, mas também de comercializá-los e fazer a gestão do empreendimento é uma tarefa bastante difícil. Como vocês lidam com isso? Uma das hipóteses básicas que tínhamos de que pessoas com baixa escolaridade e pouca qualificação profissional, diante de uma oportunidade de geração de renda, iriam se agarrar a ela com unhas e dentes, não se mostrou verdadeira. Ao lidar com pessoas de baixa escolaridade, há certas limitações em termos de aprendizado. Então, tivemos que desenvolver uma metodologia específica para poder lidar com as pessoas, tocá-las e nos comunicarmos com elas. É preciso olhar para elas como iguais. Iguais em que sentido? No sentido de que elas detêm um conhecimento que você não tem, que há coisas na história delas que você não tem, e vice-versa. Essa é uma trajetória de troca, e você tem de valorizar aquilo que o outro sabe. Mesmo que a pessoa seja pouco qualificada profissionalmente e de baixa escolaridade, ela tem uma história e uma cultura própria, e isso tem valor. É preciso desenvolver formas de atuação para viabilizar um caminho em que essa pessoa possa ser dono de um empreendimento. Às vezes, é necessário fazer um reforço escolar, porque a baixa escolaridade dificulta o aprendizado, especialmente nos temas referentes à parte administrativa e financeira. Por exemplo, para as pessoas de baixa escolaridade, é muito difícil entender o que é uma regra de três. E essa é uma noção muito importante para que se possa estabelecer o ponto de equilíbrio de um negócio. Enfim, são dificuldades, mas não limitações intransponíveis. Além disso, temos de encontrar pessoas cujo sonho vá ao encontro da proposta de ser um empreendedor, e nem todo mundo tem esse perfil. Tem gente que desenvolve isso; tem gente que não. Se não houver um sonho a ser conquistado, as pessoas acabam não aguentando e não levando à frente esse grande desafio que é criar um empreendimento. A baixa escolaridade é uma condição de exclusão. O desenvolvimento de empreendimentos como porta de saída dessa condição implica uma complexidade muito grande. Não dá para imaginar que isso possa ser feito por uma organização sozinha. Trata-se de um esforço que envolve tanto as pessoas das organizações que estão mobilizadas, que tem metodologia, experiência e conhecimento, como o setor privado, que tem sido o principal apoiador desse segmento, mas que também necessita de apoio governamental. O ausente nessa história é o Estado, e o setor privado pode ser um interlocutor privilegiado, o que as ONGs dificilmente conseguem ser, isoladamente.
Como essas pessoas costumam receber a proposta de tornarem-se empreendedores e passarem a produzir para o mercado? Tem gente que não está disposto e não tem interesse em produzir em grandes quantidades, pois isso não faz parte de seu modo de vida. Muitos artesãos estão envolvidos com uma produção mais tradicional e não querem fazer uma mesma peça diversas vezes. É impossível transformar em empreendedor ou em dono de empreendimento quem não quer ser. Por mais esforço e recursos que se dispenda, tem gente que não quer mesmo. Mas tanto aquele que quer ter um empreendimento como aquele que não quer teriam de ser viáveis dentro do mercado. Para ambos, deveria ser possível sobreviver de sua produção. É necessário pensar em maneiras para a comercialização desses produtos. No caso do artesanato brasileiro, há uma forma de ser e de pensar do artesão que faz com que ele tenha dificuldade em visualizar essa produção como um negócio, pois, originariamente, ela não era um negócio. A produção de artesanato tradicional ocorria apenas no intervalo dos períodos de plantação e colheita, de onde vinha seu sustento, e era voltada para consumo doméstico ou para a venda em sua vizinhança. Claro que outras gerações vieram e as coisas mudaram, mas vemos também certa resistência das novas gerações para aprenderem as técnicas. Com isso, muitas delas estão sujeitas à extinção. Projetos que se preocupam com a manutenção das técnicas, da memória e da cultura são, portanto, muito importantes. Cabe destacar uma experiência exemplar que tivemos ao vender produtos indígenas. Índios fazem seus produtos para os rituais, e não para a venda. Tal produção é norteada por valores de sua própria cultura, e não é o fato de a pessoa estar em uma situação vulnerável ou de carência que fará com que ela mude isso. Por exemplo: para encomendar os produtos, combinávamos de ligar para a pessoa num determinado dia em que ela estivesse na estação que tinha o rádio. Pedíamos uma lista enorme de produtos, ela anotava e, quando chegava, vinha completamente diferente do que havíamos encomendado. Às vezes, nem vinha. Com isso, quero dizer que eles não estão inseridos na economia de mercado. No caso deles, não adianta, apesar de todas as mudanças que a cultura indígena sofreu no Brasil. Hoje, mais do que nunca, a cultura indígena deve ser preservada.
Qual o papel do design nos projetos da Associação Mundaréu? O artesanato tradicional feito um a um para consumo local passou a ter alguma viabilidade comercial na medida em que o design entrou nessa área. O design propiciou a simplificação dos produtos tradicionais e, em alguns casos, a diminuição do custo. Por exemplo, uma grande toalha de renda pode transformar-se em um jogo americano, com menos detalhes e um preço mais acessível. O design contribuiu também com a racionalização dos processos produtivos. E, finalmente, possibilitou que se pensasse em produtos mais utilitários, porque o design tem essa função de facilitar a vida das pessoas. Em nosso caso, o design sempre teve um papel de destaque e o trabalho do designer deixou de ser simplesmente a atuação no produto e passou a ser também uma forma de raciocinar, uma metodologia do aprender fazendo, que se uniu a uma visão social e antropológica para a criação de um projeto diferenciado. A contribuição do design é enorme. Pensar simplesmente no desenvolvimento de produtos é uma simplificação.
Quais são os cuidados que devem ser tomados nesse tipo de interação entre designers e comunidade artesanais? No contato com qualquer comunidade, o respeito é necessário. Não só o respeito, mas também a valorização do conhecimento local. Mesmo que não seja uma comunidade tradicional que detenha uma técnica diferenciada e própria, todas as comunidades, mesmo as de periferias urbanas, tem um conhecimento específico. Aqui, utilizamos uma palavra de ordem: “com licença”. É necessário pedir licença para entrar e as pessoas precisam autorizar. Não se pode entrar em nenhum lugar sem que as pessoas te autorizem. De fato, pode haver um relacionamento predatório. Muitos designers ainda chegam dizendo o que os artesãos devem fazer. Mas, hoje, isso acontece muito menos do que acontecia no passado, com toda a certeza. Creio que, atualmente, estamos todos muito ligados na questão do respeito. Por outro lado, as coisas estão muito amalgamadas. Será que existe alguma comunidade no Brasil que ainda não tenha tido contato com alguém que tentou ajudar ou simplificar seus produtos? Se não tiver, tem que respeitar, e de forma nenhuma contribuir para a dissolução desta técnica e desse conhecimento. Mas tenho dúvidas se existem comunidades que detém conhecimentos que não tenham tido contato com influências externas. De toda forma, a postura do designer diante da comunidade tem de ser sempre a mesma: de respeito.
Projetos com comunidades artesanais costumam gerar grandes expectativas entre os participantes. Muitas vezes, isso é reforçado por uma série de promessas que podem ser realizadas ou não. Como vocês lidam com isso? Sim, isso é muito comum. Mas não sei se existem promessas. Na verdade, é como se fosse uma conversa entre duas pessoas que falam línguas diferentes. Apesar de toda homogeneização cultural que vivemos hoje, uma comunidade de baixa ou nenhuma renda e baixa escolaridade possui signos próprios. Nessa conversa de línguas diferentes, muitas vezes um diz uma coisa e o outro entende outra. Não acho que o lado de cá está fazendo promessas, mas reconheço que a necessidade do outro gera expectativas de que aquilo que ele deseja vá ser alcançado. Nesse sentido, é comum, por exemplo, a pessoa pensar que está arrumando emprego ao ser convidada para participar de um projeto. Quando ela não ganha dinheiro e só vai aprendendo, aprendendo, aprendendo, fala: “não é isso que eu queria”. Outra dificuldade é quando dizemos que a pessoa vai ser dona do negócio. Às vezes, ela não quer ser dona de coisa nenhuma, ela quer ter um salário, carteira assinada. A legislação celetista de Getúlio Vargas data dos anos 40 e surge num período de grandes correntes migratórias a São Paulo. A pessoa vinha para a capital paulista pensando: “Vou para São Paulo buscar os meus direitos”. Quais eram esses direitos? Ter carteira assinada, férias, décimo terceiro, aposentadoria. Era um pacote de benefícios muito recentes que formava a ideia da cidadania. Isso ficou marcado no imaginário e no desejo de muitas gerações. Hoje, ainda encontramos pessoas que gostariam de ter um emprego com carteira assinada sem que tenham clareza da vulnerabilidade dessa situação – há sempre o risco de ser mandado embora, por exemplo. Por outro lado, pessoas de alta escolaridade estão tendo cada vez mais certeza de que o nosso trabalho somos nós que inventamos, por nossa conta e risco. Atualmente, o empreendorismo é uma realidade muito presente para os segmentos de média e alta renda. Porém, isso ainda não impregnou nos segmentos de baixa escolaridade. Eles não têm tradição nisso, não têm uma memória de sucesso. O que faz com que alguém deseje ter um negócio? Saber de pessoas que se deram bem. Se olharmos a realidade da periferia, há muito pouca gente que se dá bem. Além disso, pessoas mais vulneráveis são aquelas que estão menos dispostas a se expor ao risco, ser dono de alguma coisa e ter que arcar com as consequências disso. Portanto, aquilo que a pessoa acha que é o melhor para ela e aquilo que se apresenta como possibilidade nem sempre encaixa. Quando encaixa e quando ela tem um sonho que pode ser alcançado por meio daquele caminho, ela vai com toda a garra em busca disso. Temos casos de mulheres que estão fazendo faculdade de Administração de Empresas para serem donas do negócio. Há muitos casos de sucesso, mas há também muitos casos de insucesso e desistência. Estamos em um momento de construção desse segmento. É uma dificuldade grande, mas sinto que temos um caldo cultural atuando para a transformação disso.
Como as organizações que atuam nesse setor poderiam colaborar entre si? É importante que essa articulação aconteça? Há uma série de questões que deveriam ser pensadas de maneira coletiva. Várias organizações estão passando por situações semelhantes à nossa e poderíamos compartilhar reflexões e ações. Porém, ao contrário do que se pensa, tais organizações são tão competitivas quanto as empresas. Por conta disso, poucas se dispõem a conversar sobre suas dificuldades. Os empreendimentos também devem ser protagonistas nessa conversa. Mesmo informais, é preciso que estes sejam reconhecidos como segmentos produtivos, pois geram recursos e renda significativos. Quando falamos das dificuldades, fica a impressão de que não há solução. Porém, existem muitos empreendimentos que sobrevivem. Às vezes, o número de pessoas é pequeno; às vezes, torna-se um empreendimento individual; mas tem muita gente sobrevivendo a partir dessas iniciativas. Se sentarmos para conversar, compartilhar dificuldades e pensar soluções coletivas, podemos ser muito mais eficazes. Para fazer pressão junto ao governo por políticas públicas, por exemplo, é obvio que se tivermos um número maior de organizações e de pessoas nessa movimentação as coisas ficarão mais visíveis e vão acontecer com mais rapidez. Então, este é um chamamento às organizações. Sei que, na maioria das vezes, as organizações são pequenas, as pessoas trabalham muito e não têm tempo de pensar. Mas, no caso da Associação Mundaréu, resolvemos parar para pensar e, com isso, estamos abrindo todos esses espaços e todas essas possibilidades que eu considero muito ricas.