A foto que ilustra a coluna de hoje é emblemática. Mostra uma holandesa vestida com a roupa de couro tradicionalmente feita pelos artesãos da comunidade de vaqueiros de Serrita, no sertão de Pernambuco. A roupa não é mero acaso. A jovem estava ali justamente para conhecer a tradição do
artesanato local e desenvolver novos projetos utilizando os materiais e as técnicas de domínio dos artesãos.
Ela integra um grupo de 21 alunos da Academia de Design de Eindhoven, da Holanda, que esteve no Brasil durante o mês de novembro. Parte deles foi para Serrita; parte se dirigiu à favela Monte Azul, na periferia sul de São Paulo, onde já existe uma marcenaria que faz brinquedos e objetos. O
resultado desse mês de oficinas juntando parceiros tão improváveis pode ser visto no Museu de Arte Moderna Higienópolis, em São Paulo.
A exposição está uma beleza. A tradição das roupas e artefatos de couro dos artesãos de Serrita, reunidos na Fundação Padre João Câncio, é muito rica e estimulante. O trabalho deles - confeccionado até hoje para uso próprio, não para venda a turistas - é de uma impressionante sofisticação, e lembra muito os artefatos dos cangaceiros exibidos na Mostra do Redescobrimento. Do workshop com os estudantes saíram objetos diferentes daqueles a que estão
acostumados, tanto na função quando no caminho estético, sem tanta ornamentação. A peça de que mais gostei foi uma sandália feita com uma única tira de couro, muito engenhosa. Novas soluções técnicas também chamam a atenção nos objetos de madeira. Os holandeses mostraram para os brasileiros a técnica da madeira laminada vergada. Juntos eles construíram uma prensa, um modelo bem rudimentar, mas suficiente para fazer, por exemplo, um conjunto de pratos notável por sua simplicidade e adequação formal.
Fico torcendo, agora, para a continuidade do projeto, sem a qual a sua dimensão ficará muito reduzida. Explico-me: o intercâmbio de idéias, a troca de experiências são sempre bem-vindos. Além do mais, eu própria venho insistindo nisso, design e artesanato têm muito a ganhar com uma aproximação recíproca. No entanto, sem um plano conseqüente de continuidade, o que poderia ser uma troca efetiva e fértil pode vir a se resumir em ótimas férias de alunos europeus ricos que vieram beber do vigor de uma expressão autêntica de arte popular no país distante.
Walt Disney
Aparentemente não tem nada a ver. A propósito do centenário de nascimento de Walt Disney, na semana passada a "Folha" entrevistou Armand Mattelart,
co-autor do famoso "Para ler o Pato Donald". O escritor reconhece que esse foi um "livro de circunstância", "um panfleto", mas opina que o capítulo que fala sobre subdesenvolvidos e o bom selvagem permanece atual. "Ele mostra como os patos saem da metrópole e chegam em países que se chamam, por exemplo, Axtecland. São lugares que se pode identificar [no caso, o México], mesmo se se trata de ficção. E, nesses países, os personagens estabelecem sempre uma relação de dominação. Justifica-se o roubo das riquezas porque o bom selvagem não sabe o valor das coisas. A relação de dominação no mundo,
entre centro e periferia, tal como a examinamos no livro, permanece válida."
Há uma diferença abissal entre os moradores de Patópolis e os estudantes holandeses no que se refere ao interesse e respeito pela diversidade cultural. As entidades que patrocinaram o projeto são, por si só, um aval para a sua seriedade e suas boas intenções. A começar pela A Casa, que costurou todo o projeto. No entanto, é preciso ficar muito atento para a relação que se estabelece com as comunidades de artesãos. E isso não só quando se trata de estrangeiros e brasileiros, mas também de paulistas e
nordestinos, ou de qualquer outra relação entre centro e periferia. Um exemplo: até que ponto é legítimo copiar um padrão de pintura corporal de uma tribo indígena e transplantá-la para um padrão de tecidos ou de azulejos
produzidos numa fábrica, por exemplo, sem remunerar a comunidade pelo uso daquela imagem? É uma questão que precisamos discutir, ainda mais agora que a globalização impulsiona o desenvolvimento de produtos étnicos e em que
inúmeras iniciativas buscam valorizar e incentivar os trabalhos comunitários artesanais.
Em tempo: A Casa merece uma reportagem à parte por suas boas realizações. Hoje, fica apenas um aperitivo. Seu subtítulo - Museu de Artes e Artefatos Brasileiros - explica o objetivo da instituição: a coleta e o armazenamento
de informações a respeito da produção de artefatos em nosso país. Ela funciona numa casa nos Jardins, em São Paulo, que sua proprietária, Renata Mellão, generosamente dispôs para esse uso. Enquanto não sai a aprovação de
funcionamento, numa zona estritamente residencial, o museu é virtual. Mas suas realizações são bem palpáveis, como dá para conferir numa visita ao MAM Higienópolis.
Texto originalmente publicado no caderno Fim de Semana do jornal Gazeta Mercantil em dezembro de 2001.
Texto: Adélia Borges