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A CASA E O MUNDO
Marcelo Rosenbaum. Foto: André Brandão.

ENTREVISTA

MARCELO ROSENBAUM

Publicado por A CASA em 5 de Fevereiro de 2013
Por Daniel Douek

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“Valor imaterial é valor material”

Marcelo Rosenbaum é designer.




Em sua visão, o que significa “brasilidade”? De que forma você utiliza esse conceito em seus trabalhos?
Antes de qualquer coisa, eu me considero brasileiro. O fato de me considerar brasileiro já revela o que é o nosso país, pois meus pais foram os primeiros integrantes de minha família a nascerem aqui, todos os meus avós vieram de fora. Por parte de pai, meu avô é alemão, judeu; minha avó é russa, judia. Por parte de mãe, minha avó é italiana, católica, beata; Meu avô, português. Apesar disso, em casa, eu nunca, em nenhum momento de minha vida, ouvi dizer que não éramos brasileiros. Meu avô nunca falou que era alemão; meu outro avô nunca falou que era português; minha avó nunca falou que era italiana. Todo mundo tinha sotaque em casa, mas eles se consideravam brasileiros. E um lado da família era católico; o outro, judeu. Essas diferenças criavam atritos, inclusive. Na minha casa, eu era judeu, pois minha mãe havia se convertido ao judaísmo. Fui estudar em colégio judaico, mas ninguém me considerava judeu. Na rua do meu bairro, eu era “o judeu”. Tudo isso contribui para a formação de um personagem. Quando comecei a trabalhar, percebi essa riqueza. Hoje, vejo-me como um brasileiro gringo e, por ser gringo, tenho esse olhar de fora.
Nosso trabalho dialoga muito com a contemporaneidade. Falamos de comportamento e do ser humano – esse sempre foi o nosso foco. A brasilidade consiste em resgatar coisas perdidas por aí que têm muito valor e muita beleza. Coisas que fazem parte da gente, mas que são, muitas vezes, esquecidas. Trata-se de ver essa beleza nas coisas e dar uma roupagem ligada a esse comportamento contemporâneo, humano.
Veja o maracatu, por exemplo: o manto, a beleza dos homens que bordam, o ritual sagrado, em que o caboclo de lança faz um jejum para bordar, um ofício passado de pai para filho – não é qualquer um que pode fazer. Suponhamos que a gente tenha que fazer uma coleção de pratos. Podemos pegar um fragmento daquele manto, estampar nos pratos e, então, contar essa história do maracatu. Esse prato estará numa casa contemporânea de uma forma jovem, com cores mais atuais, mas vamos contar essa história, resgatar isso.
Houve uma época em que fazíamos muitas lojas: VR, Zapping, Zoomp, Levi’s, Capodarte, Aramis, Triton, Cavalera, Sommer, Fause Haten. E eu sempre colocava uma subversão, sempre tinha um humor. Na loja da VR, por exemplo, tinha que ser aquela coisa masculina, do homem sofisticado, mas colocávamos uma samambaia de plástico e fórmica de jacarandá – o que, na época, era muito cafona. Gosto da brincadeira de criar essa ponte, trazendo para cá e levando para lá. Naquele momento, eu não trabalhava tanto com popular, era só um desejo, mas já havia a ideia de atravessar pontes: levar para a elite coisas do popular e, para o popular, coisas da elite, como o conforto e o bem estar. É uma forma séria de brincar, de fazer trocas e de se aprofundar nessa brasilidade que somos nós.

O que é “design útil”?
Voltemos ao exemplo do prato do Maracatu. Ele se tornou “design útil”. Quando estampamos o manto no prato, podemos explicar o que é o próprio maracatu. Poderia ser apenas um prato com uma estampa qualquer, mas a partir do momento em que coloco o manto do maracatu, e, na embalagem, ou em nosso site, há um cartãozinho com a explicação sobre o que é o manto, quem é o caboclo de lança, qual o significado disso tudo, de onde vem essa tradição, o produto se torna “útil”.
Ao fazer uma toalha de mesa de plástico, posso colocar a flor do pau-brasil, árvore que deu origem ao nosso país, e contar o que ela significa para o Brasil. E fizemos isso. É um produto popular, que atinge o país inteiro numa dimensão gigante. Já vendeu o equivalente à distância entre São Paulo e Manaus se esticarmos o tecido. Se pelo menos dez pessoas pararem para ler o que está escrito, o produto já terá uma utilidade, além de ser não só bonito, mas divertido, colorido, brasileiro. Chamamos essa coleção de Pindorama, primeiro nome do Brasil, e, assim, vamos dando utilidade para o desenho.
Hoje, nosso entendimento de design se ampliou. Design, para mim, não é mais objeto – “o copo”, “a cadeira”. Design é a possibilidade de estabelecer relações, aglutinar pessoas e, através do produto, contar outra história. Mas o design está acima disso, na articulação e no planejamento de um novo futuro.

O design pode servir como ferramenta de educação? Tem potencial para transformar o mundo?
A beleza transforma as pessoas, e o design trabalha com beleza. Design é educação, sim. Um produto é apenas uma desculpa para todo o resto de coisas que a gente pensa e para as quais queremos chamar a atenção. Não é uma pessoa que muda o mundo, não é um projeto, é um conjunto, um despertar coletivo. E vários personagens fazem parte disso: a imprensa, o formador de opinião, a loja, quem vai produzir, quem vai comprar.
Aqui no Brasil, as pessoas falam muito o seguinte: “ah, ele está ajudando, que bonito, eu também quero ajudar alguém”. Não acredito em ajuda e não faço nada para ajudar. Quando vamos para algum lugar, é para trocar. As soluções estão todas lá, cada um tem a sua solução no seu canto. O que falta são as oportunidades, as formas de essas soluções serem vistas. Levamos esse entendimento de que o que eles têm lá vale muito. Essa tal economia criativa de que se fala tanto é o saber do índio, o saber daqueles caboclos, o saber das comunidades que estão perdidas, esquecidas. Esse valor imaterial é valor material.
A bandeira que levantamos não é a de guerrilheiro, é a de “belezura”: queremos fazer coisas bonitas. É muito simples e não tem muito mais estudo do que isso. Vou fazendo, experimentando.
Não me formei na faculdade. Saí no último ano do curso de Arquitetura e fui trabalhar na Alemanha. Não terminei a faculdade porque não consegui parar para ficar estudando muito, eu precisava fazer. E acontece a mesma coisa hoje em dia: a gente sai fazendo. O projeto A Gente Transforma em Várzea Queimada, por exemplo, é uma prova disso. Se eu fosse estudar muito antes de fazer isso, teria que ficar cinco anos pensando, articulando. E a gente foi, fez e mostrou: “olha, é possível”. Agora, estou correndo atrás do prejuízo, que é grande. Há uma dívida moral e financeira. Quando você realiza uma ação dessas, cria um vínculo com a comunidade, uma responsabilidade que não dá para largar. E o sucesso é a própria continuidade do projeto.

O que é o projeto A Gente Transforma?
O projeto A Gente Transforma é um movimento que usa o design para identificar valores culturais de comunidades tradicionais nesse Brasil profundo, esquecido. Queremos mostrar isso através de um objeto, inseri-lo no mercado e gerar renda para as pessoas que vivem nesses locais. A ideia é trazer parceiros e tornar o projeto um grande guarda-chuva que possa receber também outras ações – de gastronomia, de educação –, sempre buscando a valorização dessa identidade.
Nosso papel é estimular e mostrar. O que acontece? Nós somos gringos. Quando chego a uma comunidade e vejo a casa das pessoas, enxergo beleza em todas aquelas construções: o piso de cimento queimado, a parede branca caiada, linda, a rede vermelha, bem colocada. Mas se eu digo que aquela casa é bonita, eles não acreditam: “você está louco”, “meu sonho é ganhar dinheiro e colocar cerâmica nesse piso, com estampas e brilho”, “quero uma janela de alumínio no lugar desta de madeira”. Você olha e fala: “mas isso é lindo!”. Para eles, é mentira. Precisamos conscientizá-los, de uma forma muito honesta e horizontal, que aquilo é valor, é o dinheiro deles, porque valor imaterial é valor material, identidade é dinheiro. E isso pode ser feito com design.
Em Várzea Queimada, os avós e bisavós das pessoas que moram lá já trabalhavam com a palha de carnaúba. Eles faziam bogoiós gigantes para guardar alimentos do trabalho na roça. Quando chegaram aqueles baldes de plástico coloridos, vistos como muito mais bacanas e custando R$ 1,99, eles deixaram de fazer o bogoió, que se tornou referência de pobreza, de passado, de vida dura. Quando vamos lá e nos encantamos com aquele bogoió antigo, que eles iam jogar fora, e isso vira uma coleção de sucesso que vai à Milão, à Paris, e é vendida em quinze lojas, esse pertencimento retorna a eles. Isso porque não estamos inventando nada, não estamos sugerindo que as pessoas daquela comunidade se tornem produtores de capinhas de palha para celular ou de brindes. Não vejo esse artesanato como brinde. Esse artesanato é design, é valor agregado, é identidade brasileira, é tradição cultural. É muita coisa que não brinde. Não é para ser baratinho. É produto bom, produto feito à mão, marca Brasil, marca Várzea Queimada, fala de uma comunidade, fala de uma tradição. Eles estão recuperando suas próprias ancestralidades e percebendo que aquilo é valor.

Em que consiste o trabalho do designer num projeto como esse? Há algum tipo de interferência nos produtos?

O que levamos a eles é uma sistematização de processo de produção, de modo que possam sobreviver economicamente disso. Podemos mexer, por exemplo, nas proporções, mas é o bogoió, nós damos o nome de bogoió, e isso vai criando uma conexão. Nós vamos trabalhar com eles, estimular, relembrar, pôr uma lente de aumento, criar um produto e colocar no mercado. Isso eu sei fazer. Tenho potencial de chegar aqui e gritar. Gritamos para a mídia, participamos de premiações, ligamos para as lojas, fazemos essa conexão.

Há alguma metodologia específica utilizada em projetos dessa natureza?
Não há metodologia. Quando você chega numa comunidade pensando que está vindo com uma coisa pronta, você leva um tabefe. Acho muito arriscado dizer: “tenho uma metodologia para trabalhar”. Se ficar muito em cima de uma metodologia, no final, ela torna-se um dogma. Falo essas coisas por intuição, não tenho nenhum estudo aprofundado a respeito, não sou acadêmico, sou disléxico e não consigo ler muito. Posso estar enganadíssimo, porque tem gente que se baseia em metodologia e dá muito certo, mas não acredito na metodologia. Acredito na forma de fazer, que é a troca, o olhar. Nosso sonho é levar o A Gente Transforma para muitas comunidades, multiplicando essa experiência. Para tanto, precisaremos estabelecer uma determinada linha de atuação, mas aí são os próximos passos que ainda estão para chegar.

Qual a origem da comunidade de Várzea Queimada? De que forma é possível promover o resgate de tradições ancestrais?
Duas famílias deram origem à comunidade de Várzea Queimada: Carvalho e Barbosa – um negro e um índio. Eram dois capangas que brigaram com os donos de uma fazenda no Maranhão, fugiram, e se esconderam numa caverna onde hoje fica a comunidade. Em Várzea Queimada, as pessoas têm cara de índio. Eles são índios. Ao mesmo tempo, são muito católicos e rezam a missa em latim, uma coisa impressionante. Mas quando perguntávamos de que etnia indígena eles eram, parecia que os havíamos chamando de “vagabundo”, de “ladrão”. Eles respondiam: “nós não somos índios!”. Essa era a realidade em Várzea Queimada, com índios se negando a serem índios, e negros que não tinham a menor ideia de onde vieram.
Levamos conosco o Kaká Werá, que é índio, para estimular a conexão do grupo e a vibração do coletivo. Ele é um empreendedor social, fundador do Instituto Arapoty e desenvolve um trabalho de resgate da ancestralidade. Em Várzea Queimada, passou a ter o papel de elefante do circo solto na cidade, porque era como se fossemos um grande circo que desembarcou ali – imagine, éramos uma equipe de quarenta e três pessoas. Aos poucos, os moradores da comunidade começaram a se reconhecer no índio. No começo, rezávamos o Pai Nosso; no final, já pediam para que os cantos indígenas retornassem e fossem entoados com mais força. Saímos de lá com todos eles se considerando índios Tapuias. Isso porque contamos as histórias desses índios, que eram os mais bravos do Brasil. Quando os portugueses viram que os Tapuias não se entregavam passivamente, começaram a decepar as cabeças daqueles que eram capturados e as penduravam num varal como forma de dar um recado aos outros. O maior massacre da história do Brasil contra índios foi exatamente nessa região, com os índios Tapuias.
Curiosamente, viajaram conosco dois designers portugueses do Estúdio Pedrita, que convidei para auxiliar na criação dos produtos. Esses dois portugueses não sabiam nem o Pai Nosso, pois rejeitavam a Igreja Católica, e acabaram aprendendo a rezar no Brasil com os índios brasileiros, que não se consideravam índios. Por outro lado, um índio Tupi-Guarani de São Paulo, de uma forma muito delicada e muito simples, trouxe de volta a eles a vontade de ser índio.

Atualmente, você participa do programa Caldeirão do Huck, da TV Globo, apresentando o Lar Doce Lar, quadro que tem por objetivo redecorar e/ou reformar casas populares. Você sofre algum tipo de preconceito por parte da crítica especializada em design ou mesmo por parte de clientes de alto poder aquisitivo por conta disso?

Há sete anos, quando comecei a fazer o Lar Doce Lar, muitos amigos e clientes falavam: “você está louco, vai ficar popular e ninguém mais vai querer saber do seu trabalho”. Talvez as pessoas não soubessem que o meu sonho sempre foi justamente fazer móveis para a casa popular. Eu via no Lar Doce Lar a grande possibilidade da minha vida: “agora sim, vou fazer os móveis populares”. Mentira, não consegui fazer até hoje. Mas, ao mesmo tempo, não perdi nenhum cliente. Pelo contrário, quanto mais eu falo que quero trabalhar com os pobres, mais ricos me procuram.

Quais as principais diferenças na produção de mobiliário voltada às classes A e B em relação à produção voltada às classes C e D?
Existe adequação. Hoje, o popular compra móveis que não cabem em sua casa. Veja o programa Minha Casa, Minha Vida, por exemplo. O tamanho da casa é reduzido e, portanto, não é qualquer móvel que cabe. Além disso, existe um comportamento específico dessa nova classe: as formas de usar a casa, o modo como a família se reúne, o acesso aos equipamentos eletrônicos. O gosto popular também tem as suas particularidades. Acho equivocado fazer o móvel do rico para o pobre de uma forma simples. Existe uma estética própria, um gosto próprio. O povo brasileiro é colorido, exuberante. Vemos isso pelo corpo das mulheres, por suas roupas. As mulheres da nova classe consumidora são rechonchudas, gostosas, elas usam roupas justas. Felizmente ou infelizmente, é a estética. É necessário se adequar a isso. Não é a estética elitista, intelectual, porque aí vira “coisa de pobre”, como já dizia Joãozinho Trinta.