Guacira Waldeck é
antropóloga, pesquisadora do Centro Nacional de Folclore e Cultura
Popular/Iphan.
Você integra a equipe técnica do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular há vários anos, tendo participado de pesquisas etnográficas que resultaram em inúmeras exposições e catálogos, especialmente da Sala do Artista Popular. De onde vem seu interesse pelo artesanato e pela arte popular e como se desenvolveu sua trajetória nessa área? Devo a experiência às possibilidades proporcionadas pelo trabalho no Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, e ao diálogo com o antropólogo José Reginaldo Santos Gonçalves, meu orientador no programa de pós-graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sob a orientação de José Reginaldo Gonçalves, desenvolvi pesquisa sobre a constituição de Mestre Vitalino como marco das artes visuais populares. Foi um trabalho que me trouxe muitas perguntas, suscitou questões mantidas um tanto à sombra, como a presença da antropologia, por meio de um primeiro catálogo, do médico e antropólogo pernambucano René Ribeiro de cunho etnográfico em nosso campo. Interessante também para espanar certas máximas que circulam até hoje reiterando uma certa concepção de Mestre Vitalino como um “sertanejo”. Vejamos: embora o Alto do Moura fosse um arruado de casas modestas, com gente vivendo basicamente da agricultura e da fatura de boa louça utilitária, todo esse fazer, essa produção, tinha um destino num dos maiores centros de comércio do nordeste, a afamada, hoje com o título de Patrimônio Cultural Brasileiro, Feira de Caruaru, na cidade homônima, então a segunda mais importante da região. Uma das peculiaridades das feiras é que não são ambientes como os claustrofóbicos shoppings centers que detêm um assustador controle vigilante sobre qualquer movimento de seus usuários, onde prevalece a ordem consentida e hierárquica do ditame silêncio, olhar vitrines e, claro, de preferência consumo alucinado. Feiras eram então - são ainda em alguma medida - lugares, referências nas vidas das pessoas das áreas vizinhas, locais de encontro. Como lugar de encontro, de circulação, foi essencial para a ressonância de Vitalino. Foi aí que se deu o encontro com o artista plástico pernambucano Augusto Rodrigues, e tantos outros artistas e intelectuais, que com apoio de instituições do governo do estado de Pernambuco, promoveu as exposições no Rio (1947) e, em seguida, no então recente Museu de Arte de São Paulo (1949), sob direção de Pietro Maria Bardi. Conversando com Marliete, Socorro, o próprio Manuel Eudócio – que foram artistas sobre os quais escrevi para o Programa Sala Artista Popular ( lembro que foi o primeiro catálogo individual publicado de Manuel Eudócio e da Família Ze Caboclo) - foi possível ver que, mesmo com precaríssimo sistema de transporte daqueles tempos, ir à feira era um dia especialíssimo, uma pausa na semana para venda do trabalho e para um mergulho em novidades. Há um lastro incrível no tratamento com o barro desde a tenra idade, em centro oleiros em todo país. Mas seriam essas extraordinárias cenas em escala reduzida resultado de uma força interior incoercível, do desejo incontrolável de repassar para o barro temas, assuntos da vida cotidiana, do passado? Se abraçamos essa hipótese, cairemos na armadilha da coisa em si, perdendo assim a perspectiva dos trânsitos dos objetos, das mediações, da presença da indústria, das encomendas. Vitalino se constitui num ambiente e cenário bem urbano, sua arte, e a saudosa Lélia Coelho Frota, sempre arguta, já havia assinalado esta questão, tinha outro destino, o do mercado urbano, o das coleções, o do suvenir. Interessante é que a ressonância de seus trabalhos instala um estilo que se espalha, com acentos singulares, por diversas regiões do país. Vitalino instaura o coloquial, confere uma certa monumentalidade às coisas banais da vida cotidiana e, sobretudo, é como se ele narrasse a vida do povo com a autoridade de um moderno etnógrafo que “estava lá”, aliás, que lá viveu desde sempre. Vitalino também preenche o valor moderno de artista individual – e aqui vale destacar que as assinaturas só surgiram, ao final da década de 1940, a partir da “sugestão de um doutor de Recife”, conforme podemos ler no catálogo de René Ribeiro. No módulo vida, de nossa exposição de longa duração, é possível perceber a força simbólica das cenas em barro, em madeira enfim, em materiais os mais diversos. Uma estratégia seletiva num país como o nosso marcado pela presença afro e das nações indígenas.
O trabalho institucional do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular se desenvolve em torno de quatro linhas estratégicas de atuação: a pesquisa, a documentação, a difusão e o apoio e fomento à produção e a seus diferentes agentes. Como essas linhas de atuação se articulam na prática e realizam a missão do Centro de atender as demandas sociais no campo da cultura popular? As demandas sociais são tantas e nela estão envolvidos instituições locais, organizações não governamentais, e, na atualidade, temos a presença de mediadores de diferentes perfis atuando. Somos uma instituição de abrangência nacional e sempre privilegiamos o diálogo, colaboração, apoio e parceria. Num país de contrastes e dimensões continentais realmente é essencial. Ao longo do tempo, contamos com programas de políticas públicas, privilegiando não o evento, mas, a partir de análise, a atuação no sentido de criar possibilidade para a continuidade de uma série de expressões do amplo espectro das culturas populares, bem como pesquisas cobrindo diferentes temas, festas, como o projeto de romarias brasileiras, pesquisa sobre carnaval, e sobre a constituição dos campos de estudos de folclore no Brasil. Temos a preocupação de promover encontros que possam abrir mais um espaço interlocução em temas específicos, e na medida de nossas possibilidades, o propósito é a edição das comunicações. A Sala do Artista Popular articula essas linhas programáticas, à medida que se realiza por meio da uma rede de negociação, representa um canal direto com coletividades, grupos e indivíduos, abrindo no Rio de Janeiro, um lugar para venda de seus trabalhos. A base das exposições temporárias é a ida ao campo para pesquisa de cunho etnográfico e fotográfico, e assim constituímos um acervo aberto à consulta e que em várias ações retornam para coletividades, associações ou indivíduos. Recentemente assistimos – em geral com recursos públicos – à louvável edição de livros sobre artistas, núcleos de produção, festas, saberes e tal. Contudo, como assinalei em relação a Manuel Eudócio, Marliete, o primeiro catálogo foi no Programa Sala Artista Popular. Isabel Mendes Cunha reconhecida pela Unesco, e que participou da coletiva Teimosia da Imaginação, no Instituto Tomie Ohtake, também teve aqui o seu primeiro catálogo. Ao final dos anos 1990, por intermédio da Associação de Amigos do Museu de Folclore Edison Carneiro, conseguimos manter um ponto permanente de comercialização para coletividades e indivíduos que participam do Programa Sala do Artista Popular. Sobretudo, embora tenhamos acumulado perdas valiosas de nosso exíguo quadro, ao longo do tempo, ainda contamos com um núcleo estável, que acredita ser possível a continuidade, o trabalho com programas de Estado. Não programas congelados, mas que possam acompanhar as transformações. Um exemplo disso é o Concurso Silvio Romero de Monografias, criado em 1959, com a primeira edição em 1960. E outro dia, li de Renato Almeida, uma passagem em que comentava o relativo vazio de interesse num concurso que visava ao estímulo à pesquisa nos campos de estudos das culturas populares. Essa é uma das ações de mais de meio século, que foi mantida. Manteve-se aberta aos desdobramentos teóricos e metodológicos da disciplina. Por meio deste programa estabelecemos o diálogo e colaboração com centros de referência de pesquisa em todo país. Sem contar a possibilidade de leitura de trabalhos, sempre fonte preciosa de consulta para formulação de ações. Em projetos de médio prazo, lidamos com essa, digamos, atividade prática que articula essas linhas de ação. No Programa de Apoio a Comunidades Artesanais, uma ação no âmbito do Programa Artesanato Solidário, por exemplo, a prioridade que estabeleci foi o projeto de adaptação da Casa do Artesão de Apiaí, no Vale do Ribeira, em São Paulo. Do quadro do Centro, o designer de exposições, Luis Carlos Ferreira, foi o responsável pelo projeto museográfico Contamos com colaboração de prefeitura local, com Ursula de Petris, a arquiteta Helena Calazans, especializada em restauro, com Aparecido, à época presidente da Associação. As bases institucionais já estavam ali instaladas: um lugar que articulava um espaço para venda e um outro destinado à guarda, onde havia uma coleção preciosa, coligida desde os anos 1970, uma iniciativa muito rara entre nós. O interessante é que não havia no espaço marcas simbólicas que os demarcassem claramente. Meu propósito foi readaptá-los, pensando sobretudo no uso de nossos acervos de pesquisa e imagens e, vale ressaltar, constituição como arte e etnografia da “cerâmica de Apiaí” confunde-se, em certa medida, com a nossa trajetória institucional. A Comissão Paulista de Folclore, então sob direção de Rossini Tavares, organizou em 1954, a Exposição Interamericana de Artes e Técnicas como uma das atividades do I Congresso Internacional de Folclore, uma iniciativa da Comissão Nacional de Folclore nacional, em comemoração ao Centenário de São Paulo. Lourdes Cedran, em 1979, organizou uma exposição no Paço das Artes, e em 1981 houve uma exposição no MASP. Em 1989, tivemos na Sala do Artista Popular, a exposição Barro é Encante, com pesquisa das antropólogas Elizabeth Travassos e Ana Heye. Há uma série de pesquisas sobre esse centro oleiro de São Paulo, e é interessante perceber nas falas nativas algumas categorias como “luta do barro”, “isso do barro”, “barro é encante”. “Cerâmica de Apiaí” resulta das mediações de folcloristas, artistas, pesquisadores, colecionadores, enfim. As peças então feita para uso doméstico, modificaram-se, sobretudo nos anos 1970, agigantaram-se para espaços de decoração de interiores, conforme vemos, por exemplo, nas urnas de Custódia, Laura Garcez, Trindade. Com o projeto foi possível então regularizar a documentação do imóvel que abriga a Casa do Artesão. Pudemos testemunhar a ressonância do projeto na região, o quanto a coletividade e os que lá permaneceram na gestão assumiram a importância da Casa do Artesão como um lugar, uma referência na cidade. Para a minha surpresa, a Sala das Mestras – que abriga a exposição – foi rebatizada como museu. Foi criado um sítio na internet sobre a Casa. Enfim, este foi um projeto baseado na concepção que privilegia os circuitos de circulação, as bases institucionais- espaços de exposição, catálogos – como constituição de valor. À época, tive a informação de que as vendas tinham aumentado 30%.
O que é a Sala do Artista Popular? A Sala do Artista Popular consiste em atividade de constituição de valores. A exposição de abertura foi de Jota Rodrigues: folhetos, romances, literatura de cordel em maio de 1983. São 30 anos. No texto de apresentação: o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (então Instituto Nacional de Folclore e Cultura Popular) “percebe como legítimo os agentes individuais ou comunitários ocuparem um espaço real nesta instituição de forma a que possam veicular expressões culturais próprias, abrangendo aspectos do fazer dos segmentos sociais a que pertencem”, aí está espírito deste Programa, idealizado pela poeta, historiadora da arte, autora de livros de referência e museóloga Lélia Coelho Frota (1938-2010). Ao ler este trecho de apresentação de Lélia, não deixei de pensar numa certa sintonia com esses tempos de “occupy”, e também no termo tão recorrente na atualidade de fazer e saber. Objetos condensam múltiplos significados, e só existem pelo trabalho humano investido, por conhecimentos que atravessam gerações. Em alguma, medida somos por eles constituídos simbólica e socialmente, ou nos termos de Marshal Sahlins: “os homens reciprocamente definem os objetos em termos de si mesmos, e definem-se em termos dos objetos”. O Programa portanto se revela nessa mostra de objetos numa metrópole, mas o propósito é partir das coisas para revelar um pouco as diferentes maneiras de conhecer, concepções outras de conferir alguma ordem a vida, ao trabalho. Recebemos todos os artistas e representantes de associações e aqui eles se veem e ao que fazem de uma outra maneira, com tratamento de textos, fotos, museografia. Há um elemento que pertence à classe das matérias intangíveis, digno de nota: o entusiasmo e acolhimento para receber os representantes ou artistas no dia da inauguração. Não está escrito, não é uma orientação explicita. Todos, sem exceção, do segurança aos técnicos, do quadro os serviços terceirizados. Faz, parte, digamos, da cultura institucional. Mantemos um calendário anual de cerca de oito exposições, que, de fato é a ponta mais visível desta ação. Digo uma ponta, pensando que não se trata de uma sucessão de eventos, como pode sugerir a menção a um calendário de oito exposições temporárias, sediadas numa metrópole como o Rio de Janeiro. Há a ressonância na localidade onde vivem os participantes, além disso, desde 1998 nossa Associação de Amigos do Museu de Folclore Edison Carneiro mantém um ponto de comercialização permanente. Isso foi realmente um passo importante, uma meta presente, factível por meio da Associação. Extraordinário pensar que, tão logo instalado o Programa Sala do Artista Popular, Lélia promove um evento voltado para o diálogo, a reflexão: Encontro Produção de Artesanato Popular e identidade cultural, que resultou em edição. Um dos resultados foi o Projeto Piloto de Apoio ao Artesão, de 1984 a 1986, em parceria com instituições locais e participação de artesãos, em Juazeiro do Norte, no Ceará, e de Paraty, no Rio de Janeiro. Em resumo, nessas iniciativas não temos um receituário, um plano de metas inflexíveis gestadas no Rio de Janeiro. As ações aí empreendidas resultaram do laborioso diálogo e no centro estavam os diretamente envolvidos, os artistas, os artesãos. Foi esta experiência a base para a formulação nos anos 1990, do Projeto de Apoio a Comunidades Artesanais (PACA), que, devido a proverbial carências de recursos, permaneceu na gaveta. Veio à luz, quando fomos procurados pela antropóloga Ruth Cardoso para parceria no Programa de Artesanato para Geração de Renda, uma das linhas de ação do Conselho da Comunidade Solidária. Foi o PACA que subsidiou a metodologia do Programa. Incluímos então o PACA na iniciativa, de 1998 a 2003, coordenada pelo antropólogo Ricardo Gomes Lima, com vasta experiência nesse campo. Com recursos da Petrobras, atuamos em 26 localidades, abrigamos diversas exposições. Ricardo irá assumir de 2009 a 2011, o Programa de Promoção do Artesanato de Tradição Cultural, uma iniciativa realizada por meio da Associação Cultural, no âmbito do Programa Mais Cultura do Ministério da Cultura. Neste caso trabalhamos com colaboradores, pois eram 65 pólos, em diferentes regiões do país. A museóloga Elizabeth Epougy, responsável pelo Núcleo de Museologia, ampliou o escopo do programa, incluindo entrevista filmada à reserva técnica. Uma outra iniciativa digna de registro foi o Encontro de Artesãos formulada por Ricardo Lima – com o seu proverbial entusiasmo apaixonado, ele foi responsável pelo Programa Sala do Artista Popular, de 1987 até a aposentaria em 2011. O encontro funciona como um fórum, uma arena que reúne participantes e representantes, no início do ano seguinte à participação no Programa. No período de cinco dias, de segunda a sexta, há trocas de experiências entre os participantes de regiões as mais diversas do país, que compartilham suas vivências. Mas a intenção não é trazê-los aqui para permanecerem numa sala apenas dialogando sobre o trabalho. Há um roteiro criado para explorar centros de arte e cultura, com visita ao Museu de Arte Popular Casa do Pontal, visita ao Museu Nacional de Belas Artes; fazem parte do roteiro pontos de efervescência cultural, de diversão, e vendas como o Saara a Feira de São Cristóvão. Em resumo, temos um programa que permite um sopro de ar fresco, abrindo as portas de uma instituição pública a grupos e indivíduos que são a sua razão de existir. Orçamento é curto, driblado pelo trabalho coletivo da equipe. Não foi um Programa que nasceu com orçamento generoso.
Como se dá o processo de seleção de artistas que participam de exposições na sala do artista popular? Há uma comissão de seleção, integrada por um técnico do núcleo de pesquisa, um técnico do núcleo de museologia e um representante da direção do Centro. Algumas vezes, a sugestão vem da equipe, mas a maior parte são solicitações recebidas de artesãos, associações, instituições interessadas. Também articulamos o programa a ações como a política de patrimônio do Iphan. Além disso, como o programa estabelece uma articulação estreita com outros projetos desenvolvidos pela casa, temos, em determinados períodos, um calendário de exposições por eles pautado em alguma medida. Foi assim com o Projeto Artesanato Brasileiro, com Programa de Apoio às Comunidades Artesanais (PACA), desenvolvido no Programa Artesanato e Geração de Renda do Conselho da Comunidade Solidária; o Projeto Celebrações e Saberes e o Programa de Promoção ao Artesanato de Tradição Cultural (PROMOART). Portanto, há uma certa plasticidade. Precisamos também levar em conta a abrangência nacional, bem como apresentar a diversidade de tecnologias, matérias-primas. A atividade artesanal considerada em “risco” é, sem dúvida, uma das prioridades, tendo em vista que interfere muitas vezes nas condições de sobrevivência de famílias e indivíduos. Também levamos em conta lacunas de documentação, selecionando mestres de referência cultural, cuja vida e obra ainda não tiveram espaço em edições e exposições, bem como artistas cujo trabalho ainda carece de pesquisa. Sobretudo precisamos lidar com limites de disponibilidade orçamentária, de parcerias para que possamos contornar tantas vezes as dificuldades de acesso aos locais de produção, um obstáculo para o trabalho de campo e para o transporte das peças para a exposição no Rio de Janeiro.
Qual a importância da pesquisa etnográfica como metodologia para a compreensão e promoção do artesanato e da arte popular? Em linhas sucintas, o método etnográfico supõe estada mais prolongada do pesquisador em campo. Uma das contribuições fundamentais é um certo estado de alerta e suspeita quanto à centralidade de nossos valores como medida inflexível para uma tradução ou leitura do mundo do outro. A meu ver, uma das contribuições importantes é não aderir as concepções de arte popular ou artesanato como categorias estáveis, com conteúdo definido, mas observá-las como uma entre tantas outras classificações possíveis. Quando se fala em atividade artesanal a ênfase recai na aquisição de habilidades, na repetição, na atividade coletiva. Arte popular, uma categoria erudita, em geral, está impregnada do moderno valor da novidade, do “gênio criador. De certa forma, a atividade de etnografia, ao longo do tempo, constitui esses objetos como valores culturais e artísticos, à medida que permite a travessia de seus contextos de origem, imersos na vida social em múltiplos significados, para centros culturais, museus etnográficos, museus de arte. O que a etnografia permite é a aproximação de seus significados em seus contextos de origem. O que dizer de certos objetos sagrados classificados como arte fora de seus contextos de origem, como temos, por exemplo, com os ex-votos esculpidos em madeira? Eles condensam o diálogo com os deuses, com os santos, há neles a uma voz de gratidão pessoal, intransferível. O veludo negro de couro meticulosamente bordado para as performances do bumba-meu- boi seduz pela visualidade, pode ter lugar em exposição de arte, contudo em muitos contextos é mais um objeto mediador, de afirmação de devoção. Nestor Canclini ressalta que o essencial é não se enredar no objeto em si mesmo, como um resultado acabado, definido, pois se constituem inseridos em relações sociais e, cabe portanto, compreender o artesanato como um processo que envolve pessoas, em seus contextos de vida. Este é um campo de vários atores em cena. Desde o final dos anos 1990, é crescente a presença de designers, mas o que tenho notado ultimamente são alguns projetos que partem sobretudo do reconhecimento dos saberes locais, o que defendia Aloísio Magalhães. Mulheres que dominam técnicas tradicionais de trançado em fibra de buriti, na localidade de Barreirinhas, situado no paradisíaco Lençóis Maranhenses é um exemplo que me parece bem sucedido. As mulheres incorporaram a categoria coleção para designar os acessórios diversos desenvolvidos, com a colaboração de designer, houve um trabalho interessante de adotar a flora local para pigmentos, sem falar do domínio de variedade de tramas. . Quando estive com Espedito Seleiro, em Nova Olinda, na região do Cariri, ele descreveu o contato com uma grife famosa de São Paulo, que lá chegou para uma encomenda para a nova coleção e desfile. Deu tudo certo, ele esteve presente no evento, destaca como uma experiência importante, mas, conta, estabeleceu limites: “não sei trabalhar assim, com o desenho dos outros não”, “botam o estilo, eu vou ver se faço”. Espedito foi um dos que adaptaram o saber de fazer roupa de vaqueiro, herdado dos avós, para uma nova linha de peças de vestuário, entre outras. O filho Maninho estudou, fez curso de desenho, administra os negócios da família. Em Nova Olinda, as portas para o mundo urbano, para outros segmentos, foram, como ele não deixa de destacar, Alemberg Quindins que criou, em 1992, na cidade um dos projetos mais instigantes do país – a Fundação Casa Grande Memorial do Homem do Cariri –, e Violeta Arraes (1926 -2008), que foi reitora da Universidade Regional do Cariri. O “pessoal da cultura”, segundo as palavras de Espedito. O que foi feito em Nova Olinda, um lugar muito visitado por turistas brasileiros e estrangeiros? Espedito e a Fundação Casa Grande são referências locais, entre outras, mas se distinguem. Há placas, um projeto de hospedagem bem inventivo, pois não há rede hoteleira – o que de certa forma foi muito bacana para os moradores, que adaptaram suas casas para receber visitantes, turistas. A população se envolve, recebe algum retorno. Em geral, o saber-fazer artesanal é compartilhado por uma série de pessoas de determinada comunidade. Como se define a autoria de uma peça artesanal? Trata-se de um saber coletivo? A autoria deve ser atribuída à comunidade em que o trabalho foi feito? Ela, sem dúvida, é reconhecida localmente, e, nesse sentido, numa coletividade, de um modo geral, todos reconhecem seus mestres, a criatividade de determinados indivíduos com quem compartilharam conhecimentos transmitidos oralmente, as habilidades adquiridas. E, mesmo se considerarmos a confecção de rendas, ou de panelas, em Goiabeiras, em Vitória, Espírito Santo, certamente um estranho ao grupo consegue apreender um conjunto indistinguível de objetos, mas, cada artesã, reconhece em detalhes imperceptíveis a “sua panela”. Uma peça pode ser de um grupo que se identifica como as rendeiras em Canãa, no Ceará, por exemplo, mas, em nossas exposições e acervo, identificamos cada uma, nomeando quem as confeccionou, no lugar de referência. Há um debate acalorado mais recente que se refere à apropriação de conhecimentos tradicionais compartilhados sem que haja algum retorno para as coletividades. Mas as balizas jurídicas, historicamente constituídas, baseiam-se na moderna concepção de autoria individual, não se estende assim aos direitos coletivos. A concepção moderna de autor, como vários autores ressaltaram, não reside na ordem natural das coisas, nem é universal. Há uma passagem saborosíssima de Ernestina, do Alto do Moura, em Caruaru, Pernambuco, publicada, em 1975, do livro de referência O reinado da Lua. Aqui temos uma versão da concepção local da ideia de autor, dos valores locais atribuídos à concepção de criatividade. . Reconhece-se o mestre, mas prevalece uma certa visão de que o sol nasceu para todos, que abala o valor da figura talismã do criador individual. Mora tudinho nessa ruinha. O que um faz todo mundo faz. Por exemplo, eu faço hoje uma peça, invento uma peça de minha cabeça. Se aquele ali vê, já na mesma semana faz a mesma, e assim os outros. Eu não me incomodo. O que um fizer, outros vendo e aprendendo, querendo fazer, fazem. Não tem diferença de um para outro. O Mestre – o primeiro que foi compadre Vitalino não tem firma registrada, o que dirá os outros. Em sua visão, quais as maiores dificuldades enfrentadas pelas comunidades de artesãos e pelos artistas populares hoje? A maior dificuldade é aquela que afeta diretamente o bem-estar de famílias, grupos e indivíduos, em alguns contextos, que se dedicam à atividade artesanal como uma das principais fontes de seu sustento. Acesso aos direitos básicos universais: saneamento, saúde, uma aposentadoria com alguma dignidade, poder educar os filhos, condições dignas de transporte, de ganho, de segurança, de moradia. No que concerne à atividade propriamente dita, temo fazer um elenco abstrato, indicando “as maiores”, considerando que as realidades são tão diversas. Mas, nossa experiência direta com os artesãos permite, por exemplo, indicar, em certas situações, a dificuldade das condições de acesso à matéria prima, que deve ser estudada, com soluções negociadas. Isso também se estende ao manejo ambiental, à preservação e reprodução da matéria-prima. Em certas regiões, as redes de transporte são tão difíceis, um deslocamento dos produtores numa localidade aos pontos de comercialização na sede do município pode ser uma árdua façanha de muitas horas, ou simplesmente nem dá para pensar em atravessar um atalho em tempos de chuva. Logo, as condições de transporte podem ser essenciais. Políticas públicas, em nível local, estadual e federal, que tenham como princípio estudos e consulta aos artesãos e artistas e que possam assim formular ações que correspondam às especificidades locais.