ENTREVISTA
ESPEDITO SELEIRO
Publicado por A CASA em 30 de Abril de 2013
Por
Daniel Douek

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“Aprendi com meu pai toda a ciência do couro”
Espedito Seleiro é artesão, Mestre da Cultura do Ceará.
Como você começou a trabalhar com o artesanato em couro?
Na época em que eu nasci, meu pai era seleiro e vaqueiro. Ele fazia a sela para ele próprio e para o pessoal da região, para os outros vaqueiros. Meu pai faleceu em 1971, com 56 anos. Eu aprendi com ele toda a ciência do couro.
Quais as diferenças entre as peças que vocês faziam naquela época e as peças que fazem hoje em dia?
Na época em que eu trabalhava com meu pai, na região onde vivíamos, havia uma grande criação de gado. Como o pessoal andava muito dentro da mata, tinha que ser encourado, com roupa de couro, porque se fossem com uma roupa igual a essa que nós usamos, quando saíssem de lá, não sobraria um palmo inteiro da pele. Meu pai fazia roupa para vaqueiro, para cigano, para tropeiro, para cangaceiro. Isso quando tinha tempo, quando não estava no mato cuidando do gado. Eu fiquei fazendo o mesmo: roupas de vaqueiro, sela, gibão, tudo o que o vaqueiro, o cigano e o cangaceiro usavam. Chegou uma época em que acabou o vaqueiro, acabou o cigano, acabou o tropeiro e acabou o cangaceiro – felizmente que se acabou o cangaceiro, era pra se acabar mesmo esse negócio. Mas, aí, acabaram também as vendas dos produtos que eles usavam. Quando meu pai faleceu, ele deixou oito pivetes pequenos, e eu que tinha que cuidar deles. Peguei meus irmãos, trouxe pra casa, botei dentro da oficina, ensinei todos a fazerem as peças e ficamos trabalhando. Aí, quando ia vender uma sela, eu chegava na loja e a pessoa dizia “não quero, já tenho uma sela parecida com a sua, estou cheio de selas”. Então, eu fazia um sapato, e a pessoa dizia: “já tenho sapato”. Fazia uma sandália, e era a mesma coisa: “já tenho sandália”. Foi quando pensei que teria de parar. Mas como eu ia criar esse tanto de menino? Papai tinha deixado oito e os meus já eram cinco. Um dia, eu disse para minha esposa: “Olhe, vou fazer um estilo que ninguém tem, um estilo meu; se vender, eu continuo, se ficar nessa moleza de ninguém comprar, vou ter de parar e procurar outro ramo”. Parei de fazer aquelas peças que eu vinha fazendo e fiz uma sandália bem colorida chamada “Sandália Lampião”. Lá em Nova Olinda tenho um vizinho que disse: “Espedito, queria que você me fizesse uma sandália igual a dos cangaceiros, porque eu adoro aquela sandália”. Fiz no capricho, costuradinha, bem colorida, ficou bonita pra caramba. Tanto que, onde ele chegava, o povo admirava, porque nunca tinham visto aquele estilo de sandália. Aí, foi começando a aparecer mais serviço. Fui encostando a sela para um lado, o gibão para outro, e comecei a fazer as bolsas, sandálias e outras coisas. Hoje, acabaram-se os problemas, não tenho mais dificuldade em vender as peças.
Em 2006, você recebeu o convite para ajudar na criação de peças para a da Cavalera, que depois integraram o desfile da marca na São Paulo Fashion Week. Como foi essa experiência?
Esse pessoal chegou lá em casa, eram umas 4h da tarde. Pararam o carro debaixo de um pé de pau que hoje não existe mais e olharam. Eu estava trabalhando no balcão e vi quando um abaixou a cabeça e disse: “Esse é o homem que nós andávamos procurando”. Eram seis estilistas da Cavalera. Tenho uma lojinha e as peças estavam expostas. Nesse dia, eu dei sorte, porque tinha feito umas peças bem bonitas mesmo, bem coloridas, no capricho. Eles olharam, se admiraram e disseram: “pois nós vamos ficar é aqui mesmo”. Então, fizeram uma encomenda para eu entregar em trinta dias. Falei que não daria certo, porque trinta dias era pouco tempo para a quantidade de peças que eles estavam pedindo. Depois, eles começaram a fazer desenhos e iam me entregando. Eu perguntei o que era aquilo e eles responderam que era para eu fazer aquelas peças. Eu disse: “rapaz, os outros desenhando, eu não sei fazer; acho bom fazer aquilo que eu sei, mas fazer as coisas que os outros sabem, eu deixo para os outros mesmo”. Eles ficaram dando risada e falaram: “pois faça aí”. Foi assim que começou.
Você é Mestre da Cultura do Ceará. E uma das tarefas do Mestre é repassar o saber a outras pessoas. Como você tem feito isso?
Comecei a passar para os meus irmãos e depois para os meus filhos. Ensinei também alguns vizinhos que, hoje, já são profissionais. Tem pessoas trabalhando em oficinas localizadas em cidades próximas a Nova Olinda que fui eu que ensinei. Adoro ensinar. O que não gosto é quando sou copiado, quando pegam o molde de uma sandália das minhas e dizem foram eles que fizeram. Acho bom ensinar e a pessoa reconhecer: “isso aqui, foi Mestre Espedito que ensinou”. E acho bom você aprender o que eu lhe ensino.
Tem muita cópia?
Tem. Mas graças a Deus que tem muita cópia, porque, se fosse ruim, eles não copiavam.
Em que momento o artesanato deve começar a ser ensinado?
Tenho um exemplo para dar ao Brasil. Lá em casa, tenho seis filhos, três homens e três mulheres. Eu era novinho quando meu pai me ensinou a trabalhar com o couro. Se você deixar para ensinar depois dos 20 anos, ninguém conseguirá aprender uma profissão igual ao artesanato – ou qualquer outra profissão. Se alguém tem 10 anos de idade, vai lá para casa e diz: “seu Espedito, quero aprender a sua profissão, quero aprender trabalhar em couro”, eu pergunto: “você tem vontade?”; “tenho”; “você está estudando?”; “estou estudando”; “pois, então, você vai estudar e trabalhar”. Uma coisa que eu sinto muito é não ter estudado. Meu pai não tinha condições de me educar. Hoje, só sei escrever meu o nome e fazer uma continha. Mas me serve, porque eu vendo dez, vinte, trinta mil reais de mercadoria e ninguém me enrola, de jeito nenhum. Mas eu não tinha esse tempo de me formar. Então, eu aconselho o pessoal: “de manhã até meio-dia, você estuda, à tarde, você vem trabalhar”. O serviço não é pesado: você pega um lápis e vai riscando uma pecinha dessa aqui. Hoje, eu vou botar você só para riscar. E amanhã e depois. Quando você abusar de riscar, vou botar você para cortar, em cima daquele risquinho que você fez. E amanhã e depois. Em seguida, vou colocar você só para colorir. Até a pessoa ir desenvolvendo. Mas se você quiser começar com 20 anos, nem vou querer lhe ensinar, porque sei que você não aprende. Porque seu olho está aqui na profissão e está na rua olhando. Passou uma moça bonita, você já olha para ela. E se passa um carro de som, você já fica dançando. Aquele pequenininho, de 8, 9 ou 10 anos está com o sentido só ali. Quando ele estiver com 20 anos, será um profissional para ir pra todo lugar do mundo. Eu adoro fazer isso, mas do jeito que estou falando. É uma pena que a gente não pode ensinar os menores de idade. Temos que fazer como a lei manda, então vamos fazer assim mesmo. Só que os meus filhos eu ensinei de novinho. Esses meus aí se criaram dentro da oficina, do jeito que eu me criei, na oficina do meu pai. E, hoje, eles não são ricos porque não nasceram para ser rico, mas também, não vão precisar pedir serviço a ninguém. Porque tem o que fazer em casa.