Cerrado Mineiro, São Gonçalo do Rio das Pedras, 2007.
ARTIGO
ESTRADA, PAISAGEM E CAPIM | FOTOGRAFIAS E RELATOS NO JALAPÃO
Publicado por A CASA em 31 de Julho de 2013
Por Silvia Helena dos Santos Cardoso

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Trecho da tese Estrada, Paisagem e Capim | Fotografias e Relatos no Jalapão apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP para obtenção do título de Doutor em Artes.
Orientadora: Profª. Dra. Luise Weiss.
INTRODUÇÃO
“É certo que a vida não explica a obra, mas é certo também que elas se comunicam”
(MERLEAU-PONTY, 2004, p. 136).
Estrada, Paisagem e Capim – Fotografias e Relatos no Jalapão é uma pesquisa em Poética Visual constituída por viagens – como deslocamento e experiência estética – ao cerrado jalapoeiro, no interior do Estado do Tocantins. A fotografia digital e as anotações se constituem como expressão e desenvolvimento do percurso processual do trabalho realizado.
As referências teóricas e visuais contaram com a Antropologia como essência, metodologia e inserção no campo de pesquisa e a Arte como espaço de reflexão e criação para o caminho poético. Diferentes questionamentos surgiram ao longo do desenvolvimento do fazer artístico e acabaram por delimitar o trabalho.
A pesquisa contou com quatro diferentes viagens: a primeira, a Viagem do Encantamento que marca o contato com o cerrado brasileiro e, especificamente, com o Jalapão. A viagem é compreendida através do conceito ampliado de deslocamento que reconhece a experiência estética como uma real possibilidade em ver, perceber, sentir, pensar e fazer a partir de uma paisagem singular como substância e matéria da poética e que despertou uma sensação de profundo encantamento com o espaço; a segunda, a Viagem do Desenvolvimento é o descobrimento do lugar para além da paisagem: os moradores da Comunidade da Mumbuca e da Cidade de Mateiros do Jalapão como protagonistas das suas próprias histórias. Nesse momento, a estrada aparece como uma metáfora entre o conhecido e o desconhecido, entre o que está na consciência e o que está na memória e no espaço do esquecimento, como um elo entre universos culturais distintos e também como um percurso construído a partir das necessidades e desejos humanos; a terceira, a Viagem do Aprofundamento é o reconhecimento das idiossincrasias dos homens através da convivência entre as noções de vida e morte: a imensidão e a destruição do cerrado, e, consequentemente, da natureza; e a quarta, a Viagem do Refinamento é a lapidação da criação poética, a pontuação de algumas questões visuais anteriormente suspensas, mas que neste deslocamento emergiram para tomar forma e consistência; não só visuais, como também o reconhecimento do eu (autorreferencial) como norte do trabalho processual.
As quatro viagens estruturam a pesquisa poética deste trabalho – o fazer artístico, propriamente, e parecem legitimar o ato de viajar – a viagem enquanto processo – como uma forma de conhecimento.
Considerações Poéticas –, uma reflexão sobre o fazer artístico. O objetivo deste segundo capítulo é compreender as viagens, as referências visuais e teóricas que orientaram o percurso da pesquisa: o contato inicial com o Jalapão e o desdobramento em uma pesquisa poética (2006); a viagem ao Jequitinhonha/MG (2007) como alternativa ao cerrado jalapoeiro; a viagem ao Paraná (1987) como origem da estrada como experiência estética; Jean-Marc Besse, Claude Lévi-Strauss, João Guimarães Rosa, Gilles Deleuze, entre outros teóricos e escritores como norte das reflexões; Mark Rothko, Mira Schendel, Cy Twonbly como referências visuais; os deslocamentos ao Jalapão (2009/2010/2011) como forma de descobrimento e aprofundamento na imensidão humana e na natureza e as próprias descobertas proporcionadas através do trabalho processual, sem mencionar todas as pessoas – os informantes locais – que aparecem desde os cadernos de anotações. Acrescenta-se também, a fotografia enquanto território e expressão imagética do fazer poético.
Considerações Poéticas
“Perder-se também é caminho”,
segundo Clarice Lispector (MOSER, 2009).
Estrada, Paisagem e Capim – Fotografias e Relatos no Jalapão nasceu de uma viagem.
O primeiro deslocamento realizado ao território jalapoeiro no interior do Estado do Tocantins, em Julho de 2006, que posteriormente a identifiquei por Viagem do Encantamento. Por que encantamento? Percorrer e adentrar o interior do cerrado, em contato com as sensações de imensidão e infinito, desencadeou um sentimento tão profundo e revelador que foi capaz de ultrapassar a percepção e qualquer expectativa sobre o lugar. Aliás, nenhuma descrição – escrita ou visual - é suficiente para dar conta da sensação inicial com o cerrado e, especificamente, com o Jalapão. Assim, a primeira viagem está na ordem da percepção, do sutil, do subjetivo que são chaves para reconhecer a forma de conhecimento que não passa apenas pela razão, o pensamento racional e objetivo. Ao contrário, estas sensações pertencem ao universo sensorial, do desconhecido, do inconsciente, da memória, das diferentes fases da vida humana.
Na Viagem do Encantamento, a paisagem despontou como protagonista e o silêncio e a solidão como características do cerrado. O percurso da viagem, marcado pelos vários deslocamentos nas estradas estaduais e locais, foi acompanhado da descoberta das montanhas distantes, das árvores retorcidas, da diversidade da flora, da intensidade do calor, e, essencialmente, por um mergulho interior composto por camadas estruturadas e sobrepostas que também desenham um caminho desde a superfície até o interior do pensamento. Como se a percepção se expandisse para além das sensações humanas, ocupando um espaço maior que o corpo físico.
A viagem enquanto deslocamento – o ir e o vir – e a experiência estética – a cor, a forma, a linha, o som - tomou forma e desenhou o norte da pesquisa poética através das inúmeras fotografias compostas. A contemplação se consagrou como essência do estar e sentir o cerrado através da paisagem e do infinito no traço do horizonte. Portanto, viagem e contemplação no trabalho representam estratégia e necessidade, respectivamente, do conhecimento e do fazer poético.
“O deslocamento no espaço é simultaneamente uma travessia no tempo, em direção ao passado mais distante. Mas as paisagens reencontradas ressoam segundo o que elas evocam e tornam possível na dramaturgia pessoal do viajante. Se há um espírito que se afeiçoa ao lugar, é porque a viagem está nele ao mesmo tempo. A estadia, longe de nos deixar sempre perdidos no oceano das curiosidades inúteis, nos conduz, às vezes, em certos lugares privilegiados, a nós mesmos, nos faz reentrar em nós mesmos” (BESSE, 2006, p. 45).
Foi com esse espírito e desejo em reencontrar os sentimentos da Viagem do Encantamento que escrevi um projeto de pesquisa sobre o cerrado jalapoeiro. Fazia muito tempo que estava procurando algo que realmente fizesse sentido pra mim e, possivelmente, também para outros.
Contudo, o trabalho, por mais que não quisesse, tinha um acento antropológico, ou seja, a partir do capim dourado, a manufatura do objeto e a mulher como transformadora da matéria, seriam inicialmente as peças-chaves da investigação poética.
Contudo, antes do retorno ao Jalapão para uma segunda viagem, resolvi empreender uma excursão ao norte de Minas Gerais, precisamente a região desde a Serra do Cipó até o médio Jequitinhonha em julho de 2007. A distância entre São Paulo e o Tocantins tinha que ser considerada. O Jalapão é distante e o deslocamento é caro. O cerrado mineiro poderia representar uma alternativa à dificuldade do percurso e também ao investimento econômico.
Assim, seguindo certa racionalidade, visitei as cidades e paisagens mineiras localizadas na Serra do Espinhaço: Serra do Cipó, Conceição do Mato Dentro, Serro, Milho Verde, São Gonçalo do Rio das Pedras e Diamantina. Entre estas cidades, encontrei em São Gonçalo do Rio das Pedras uma pequena produção de objetos em capim dourado, pois a Syngonanthus nitens, nome científico, é uma planta endêmica do cerrado, encontrada em outras regiões do bioma, e, portanto, facilitaria a pesquisa poética.
A princípio, não era claro que o encantamento não estava nos objetos de capim dourado, entretanto a haste verde do capim coletado antes do seu amadurecimento e, consequentemente, um objeto esverdeado e não dourado, fez com que o Jalapão não fosse substituído pelo Jequitinhonha e por São Gonçalo do Rio das Pedras, especificamente.
O cerrado mineiro também tem suas belezas: vegetação rasteira, poucos arbustos e muitas pedras. As montanhas são baixas e o horizonte é próximo. Exibe outra conformação natural. A beleza também reside ali, mas a paisagem não promoveu aquele encantamento, aquela viagem profunda tão desejada. E o silêncio tão marcante do cerrado não estava lá. Não encontrei uma paisagem que solicitava uma atitude contemplativa, mas um movimento contínuo. O Jalapão já fazia parte do imaginário e da memória estético- afetiva.
A segunda viagem – a Viagem do Desenvolvimento, como denominei, aconteceu entre os meses de dezembro de 2009 e janeiro de 2010. Entretanto, esta viagem começou com a escrita do projeto de pesquisa, com a definição bibliográfica, com a edição das primeiras fotografias a partir da produção realizada em julho de 2006, entre outras ações importantes para o planejamento e deslocamento.
Nessa segunda viagem, adentrei a estrada sem música a bordo e desta forma pude ouvir e sentir o som do Jalapão, bem como sentir o seu odor, o cheiro do cerrado. Mesmo com o contratempo já relatado, a busca se definiu através da experiência do sublime. Contemplação e sublime parecem estar juntos. A contemplação como atitude e o sublime como sensação, quase um êxtase diante da paisagem natural. Para Jean-Marc Besse (2006), a paisagem está para o sentimento, enquanto a percepção está para a geografia. A paisagem detona uma relação dinâmica entre o homem e a natureza. O elemento paisagem é vivo, portanto natureza e cultura são quase os extremos de uma mesma linha. Se rompido o elo que os une, o horizonte deixa de existir, porque horizonte é a expectativa diante do presente e do futuro, do que é e do que está por vir. Para a geografia, a percepção é quase e somente espacial, o concreto, o que está diante do olho.
Nessa direção, outro elemento tão importante se impôs: a estrada. A estrada é o percurso, é a ligação entre um ponto e outro, entre uma cidade e outra, e é nesta direção que a paisagem aparece e se revela. A estrada também conta com o tempo enquanto essência para ver, perceber, assimilar, elaborar e exibir. Não nesta ordem, porque a poética não tem uma receita, uma organização exata e precisa, ao contrário, o caos enquanto algo desordenado, não linear e
oposto ao método cartesiano faz parte de seu desenvolvimento.
Tristes Trópicos (1981) de Claude Lévi-Strauss (1908/2009) e Grande Sertão: Veredas (1982) de João Guimarães Rosa (1908/67) nunca fizeram tanto sentido: as literaturas apresentaram um caminho possível – a experiência do cerrado no Jalapão. Se Lévi-Strauss narra sua viagem ao interior do Brasil para encontrar algumas etnias indígenas, Guimarães Rosa tece um romance a partir do homem sertanejo; o deslocamento, a viagem em ambos é fundamental para a experiência, para a construção do conhecimento, do encontro do “outro”, de outra cultura. E é através da diferença que o homem se conhece, o oposto desvela a sua própria identidade.
Uma questão se colocou: certo paralelismo entre o caderno de campo de um etnógrafo/ antropólogo e o caderno de artista de um artista/pesquisador, especificamente, fotógrafa. Qual é a função de um caderno de campo na pesquisa em Antropologia? Qual é a função de um caderno de artista no desenvolvimento de uma poética? A Antropologia busca a construção de um conhecimento a partir dos indivíduos inseridos em um contexto cultural; tem a ciência enquanto norte do trabalho, enquanto o artista busca a construção de uma poética conduzida pelos sentidos.
Portanto o conhecimento sensível costura o trabalho. Ambos os cadernos são estratégias e ferramentas para a construção dos conhecimentos científico e sensível, respectivamente. Aqui a Arte toca na Antropologia, especificamente, a Etnografia, e se complementam.
Escolher o Jalapão enquanto lugar de criação poética foi uma decisão com essência antropológica, portanto não posso excluir e eliminar uma formação sedimentada ao longo dos anos. O interesse e a opção pela Arte apontam a presença de um campo do conhecimento humano rico em possibilidades e alternativas para a compreensão e expressão visual. Antropologia e Arte são aqui duas áreas que se somam: a observação está presente nas duas abordagens; o método antropológico de pesquisa – a observação participante e informante – pode contribuir com o processo de criação poética. A Antropologia apresenta a poética da pesquisa e a Arte apresenta a poética visual. O fato é “... nunca me senti tão antropóloga em campo de pesquisa como nesta segunda viagem”; e a Arte “... nunca foi tão necessária ...”[1].
Conhecer in loco as pessoas que moram em Mateiros do Jalapão e na Comunidade da Mumbuca foi extremamente enriquecedor: Ana Cláudia, a informante; Dna. Rosa, a conselheira; Cassiana, a bióloga do Parque Estadual do Jalapão/PEJ; e Dna. Oneide, a amiga de Ponte Alta do Tocantins. Cada uma delas apresentou uma parte daquele universo. E cada uma dessas partes forma um mapa – uma cartografia a partir das conversas - que compõe o Jalapão.
A Viagem do Desenvolvimento, de fato, inseriu-me no campo de pesquisa – a experiência estética se afirmou como direção e a estrada como laboratório poético. Deixei a periferia do trabalho para mergulhar profundamente no interior do cerrado e no meu próprio interior, mesmo que ainda de forma pouco consciente. Metaforicamente, a coluna cervical deste trabalho se construiu, nesta fase, através de três marcos: a viagem/o deslocamento, a essência antropológica (metodologia de conhecimento cultural), e a poética como construção visual através da fotografia digital.
Fotografias digitais, desenhos, tentativas com a gravura, esboços pictóricos, anotações e filmes (registros de imagens em movimentos/pequenos frames) apresentaram caminhos poéticos, contudo acabei por eleger apenas as fotografias digitais e as anotações. Cada um destes fazeres poéticos tem territórios definidos e exigem olhares diferentes. O meu território sempre foi a fotografia, por mais que eu queira estender tentáculos para outros universos artísticos. Nesta pesquisa, a fotografia digital e o relato acabaram por desenhar o trabalho final.
O retorno da Viagem do Desenvolvimento e a organização do material fotográfico produzido e das anotações escritas também recuperaram uma memória da infância e da adolescência sedimentadas por algumas décadas.
Em Gilles Deleuze (1997), a criança constrói um mapa do mundo a partir dos afetos e dos trajetos familiares. Contudo este mapa não é estanque, é dinâmico e tende a aparecer em diferentes fases da vida e, especialmente, em trabalhos autorais. Com este norte, constatei que a escolha pelo Jalapão se revelava como uma tentativa inconsciente de recuperar um complexo imaginário que estivera adormecido, mas que agora tinha espaço para emergir do sono profundo.
Na infância, convivi com inúmeras histórias familiares que rememoravam a saga dos parentes através das viagens entre terras estrangeiras e nacionais. Como neta de imigrantes e migrantes, vivi cada história como se fosse minha. Na ausência das minhas próprias histórias, as dos meus avôs eram imaginadas e reconstruídas por mim. Neste processo de reconstrução participava intensamente de cada detalhe, cada palavra, cada paisagem, cada estrada, citados por eles. A minha imaginação era muito maior do que eles poderiam pensar. Contudo, os meus questionamentos nunca foram compartilhados. As histórias eram contadas como monólogos, portanto não cabiam muitas perguntas: apenas ouvia, observava, pensava e as guardava no arquivo da memória. Neste caminho, tomei gosto pelas viagens, porque sempre representavam ir para outro lugar e preferencialmente lugares desconhecidos. Portanto, estar na estrada, que poderia ser um navio, um barco, um ônibus, um caminhão, a cavalo, um carro, significava: ir, sair, chegar e transformar. A partir daqui, elaborei mentalmente um mapa de localização, não só familiar, mas, essencialmente, do meu lugar no mundo. Crescer tinha um sentido de criar as
próprias histórias e, portanto, estar na estrada tornou-se essencial e fundamental na vida.
“... de um mapa a outro, não se trata da busca de uma origem, mas de uma avaliação dos deslocamentos. Cada mapa é uma redistribuição de impasses e aberturas, de limiares e clausuras, ...” (DELEUZE, 1997, p. 75).
Além de Deleuze, Manoel de Barros (2009), poeta brasileiro, também diz sobre a infância.
Para ele, a infância é um “esticador de horizontes”, como se nesta fase, o homem encontrasse o material bruto de trabalho para toda a sua vida. A infância é como um cofre onde se depositam inúmeras histórias, sensações, encontros, descobertas, pessoas, decepções, que farão parte da trajetória humana.
Portanto, podemos encontrar muito material criativo na infância. Mas acrescento mais uma fase que é tão importante quanto a primeira: a adolescência. A adolescência é a fase mais visceral: se vive tudo intensamente como se esse tudo fosse acabar ontem. Neste contexto, construí alguns sonhos, reconheci uns desejos e determinei outros projetos. A decisão pela fotografia reside na adolescência. A decisão pela antropologia também. Fotografia e Antropologia pareceram uma costura perfeita, uma complementação justa, um encontro preciso.
Portanto, infância e adolescência são tempos construídos e reconstruídos nas diferentes etapas da vida.
E onde está o romantismo? Está no desejo por transformar, mudar, subverter a ordem, encontrar alternativas de vida, tecer outras expectativas, enfim, apostar no crescimento humano para além das conquistas materiais. No Brasil, os anos 60, 70 e 80, quando fui criança e adolescente, foram marcados por desejos latentes de mudanças sociais e políticas, e enquanto estudante fui influenciada por ideias revolucionárias que desenhavam outra sociedade.
O que é ser romântico? É ter uma atitude e uma mentalidade romântica. Neste fio condutor, a arte abre acesso a outras formas de saber. Portanto, a arte também é romântica, pelo menos tem uma forte dose de romantismo. Em Werther (1774) de Goethe (1749/1832), “eu entro em mim e encontro um mundo”[2]. O romantismo traz um sentimento oceânico o que simbolicamente
faz o romântico mergulhar profundamente nas suas próprias histórias.
“O espírito romântico sente toda a força da vida naquilo que ela tem de mais intuitivo e singular. O espírito romântico, como regra geral, não extrai
normas e leis, não elabora argumentos e abstrações. Está vinculado ao que há de mais vivido e inclusive, o que parece um pouco paradoxal à primeira vista, àquilo que está mais afastado do curso normal da vida, da vida rotineira. Nesse aspecto, o espírito romântico é o próprio espírito da aventura. Não há nada mais romântico que a aventura, aquilo que sai da
vida em si e a contradiz ao mesmo tempo em que não poderia ser mais vida do que isso. Em outras palavras, quanto mais toco no nervo exposto da vida, e mais me aprofundo no sentido do que é estar vivo aqui e agora, mais saio da vida corrente. A vida contra a vida: esse o sentido nuclear do espírito romântico” (COELHO, 2010, p. 13).
O romântico tem um espírito aventureiro. O fotógrafo tem um espírito aventureiro. O romântico deseja o distante. O fotógrafo quer ir até lá - o mais longe possível. Portanto, o fotógrafo é um romântico por natureza.
Em 1987, realizei a primeira viagem fotográfica em trabalho profissional. Fui ao Sudoeste do Paraná registrar o crescimento da monocultura em detrimento da dissolução das pequenas propriedades. Foi um trabalho ideal: viajar, fotografar, conhecer e ganhar. A estrada apareceu como protagonista: asfaltada, de mão dupla que cortava a lavoura, as nuvens, a árvore solitária de um lado e uma placa de sinalização de outro, a iluminação perfeita. Fiz o registro porque os elementos apresentavam uma composição harmoniosa. Naquela ocasião, a cor não interessava, fotografava em preto e branco, o contraste enquanto escala de branco, de cinza e de preto era trabalhado.
Não poderia imaginar que aquela fotografia tinha um significado muito maior: não era só uma imagem bonita, era muito mais do isso, era praticamente uma revelação, um elo entre a adolescência e a primeira fase da vida adulta. Certa vez, uma colega jornalista disse: “... você colocou esta foto aí, acima da sua mesa do escritório, porque você está na estrada, na estrada da vida ...”[3]. Nunca mais me esqueci do comentário. Ficou na minha memória. Não estava muito claro, mas fez algum sentido.
A partir da Viagem do Desenvolvimento, passei a organizar os materiais estudados e coletados para a pesquisa poética visual e aquela fotografia apontou o norte do trabalho: mostrou o quanto a estrada se fez presente na minha história, o quanto o percurso de vida de cada um é desenhado segundo uma lembrança que está escondida e que de vez em quando se apresenta. Às vezes, temos consciência e muitas outras vezes não, mas em algum momento fará algum sentido.
A Viagem do Desenvolvimento marcou a mudança do objeto de pesquisa: não mais o capim dourado, a manufatura do objeto e a mulher como transformadora da matéria, mas a estrada, a paisagem e o capim – a estrada como percurso, a paisagem como detonadora da contemplação e da sensação do sublime, e o capim como elemento constitutivo da paisagem. Desta forma, Estrada, Paisagem e Capim nasceu na segunda viagem e desvendou o que estava sedimentado na memória.
A terceira viagem – a Viagem do Aprofundamento – ocorreu no mês de outubro de 2010.
Este deslocamento foi o menor de todos: apenas uma semana. O objetivo era fotografar os campos de capim dourado. Contudo, no segundo semestre daquele ano, o Jalapão viveu um dos maiores incêndios dos últimos tempos. O verão que se estende de abril a setembro experimentou uma das maiores secas. O cerrado estava praticamente queimado. Ao contrário do que se pensa, apesar da seca natural, os incêndios não foram causados naturalmente: mais de noventa por cento foram oriundos da ação do homem através dos procedimentos do manejo do solo.
Esta viagem foi cercada por dúvidas. Até o último instante, o embarque no aeroporto, não tinha certeza se deveria ir ou não. Os contatos já estavam realizados, mas não sabia se conseguiria chegar a Mateiros do Jalapão, uma vez que a cidade estava literalmente incomunicável. Além disso, empreender uma viagem até lá para apenas uma semana, não fazia muito sentido.
A população local começa a coletar o capim dourado nos campos úmidos e nas veredas antes da primeira chuva que acontece por volta da terceira semana de setembro. Entretanto, por circunstância do calendário universitário e participação em um congresso internacional, não poderia estar nesta data. Não saberia se em outubro ainda encontraria o capim dourado nos campos. E ainda não sabia se chegaria até Mateiros do Jalapão, uma vez que a TO-255 estava intransitável por conta da seca. A rodovia estadual estava tomada pela areia fina, buracos, fendas no solo, enfim a estrada impedia qualquer movimentação.
Apesar das circunstâncias, pensei na possibilidade de fotografar algum campo úmido próximo a Ponte Alta do Tocantins, a cidade considerada o portal do Jalapão. Com esta ideia, planejei a viagem, contatei o Parque Estadual do Jalapão/PEJ e a Pousada do Coelho para a minha permanência tanto naquela cidade quanto na sede do PEJ.
A hesitação em viajar naquela data foi consolada com a ideia de que a Arte é também o espaço da dúvida. O lugar de menor solução e maior incerteza, portanto, existia, tanto quanto a possibilidade de conseguir realizar o trabalho fotográfico plenamente, ou não, e nesta circunstância poderia encontrar um tempo para refletir sobre a pesquisa em campo de trabalho até ali realizada.
A impossibilidade em fotografar também poderia tornar-se material para a pesquisa poética.
Nesta ocasião, lembrei-me dos viajantes, naturalistas e aventureiros que desde sempre deixaram suas terras para embarcarem em viagens pouco seguras. Eles não tinham nenhum comprovante de segurança e tampouco de sucesso quando empreenderam as viagens que marcaram o período entre os séculos XV e XIX no mundo ocidental, sem mencionar os trajetos realizados anteriormente. O inesperado, aquilo que estava mais para o acaso, a surpresa, era o elemento principal e detonador da criatividade naqueles tempos.
O filósofo brasileiro Sérgio Cardoso escreveu que “... homens inquietos – curiosos ou insatisfeitos – aos quais o ponto cego do horizonte obseda, constantemente fustiga e desafia. Desdenham o homogêneo e o contínuo, e mostram-se extremamente sensíveis às diferenças e atentos aos limites. A cada ponto divisam algo adiante, em cada plano outro lado; e por toda parte medem distâncias, pois tudo duplicam em cá e lá. Sua compleição e disposição de geógrafos – seduzidos que são pelos elementos da topologia – quase sempre os impelem para o espaço aberto, e os levam a afrontar montanhas e areias, obstáculos e vazios.
Assim, dificilmente param em casa (se chegam a ter uma); e sua atração pelas fronteiras parece torná-los, quase inevitavelmente viajantes”
(CARDOSO, 1988, p. 352).
Naquele instante, a figura do viajante me confortou e me fez refletir sobre a relação intrínseca entre a estrada, a viagem e os próprios viajantes. Portanto, estrada, viagem e viajante estão unidos e interligados por um só desejo: a experimentação; e neste trabalho a experiência estética no cerrado jalapoeiro.
Cada viagem é tão singular para a própria ação da viagem – o viajar, como para o viajante.
A estrada, desta forma, é o espaço de trânsito, de deslocamento, para a viagem e de imaginação para o viajante. A estrada é o espaço de um filme imaginário de caráter externo e interno: o primeiro, porque toda estrada oferece um tipo de paisagem, às vezes natural, outras vezes urbana, ou ainda insólita; nesta pesquisa poética visual é a natureza quem comanda a nossa imaginação e sensações próprias ao Jalapão; e interna, porque enquanto singular cada estrada proporciona um deslocamento na memória de cada viajante, funciona como uma espécie de estímulo às histórias sedimentadas nas estruturas do inconsciente. Portanto, toda viagem é uma experiência solitária.
Existem determinadas estradas que permitem mais intensamente uma sensação de solidão. Não uma solidão sofrida, mas uma viagem interna e consentida pelo sujeito da ação, pelo viajante. O cerrado jalapoeiro é uma destas paisagens que impõe uma viagem solitária.
Tal paisagem além da solidão demandada, o sublime – a magnitude da paisagem, enquanto sensação da visualidade - também está presente e requer uma atitude contemplativa.
De longe, o Jalapão é um lugar inóspito. É um desses rincões que parecem não dar lugar para a vida humana. A descoberta é lenta e processual. Aos poucos revela certa humanidade, se faz familiar e acolhe, tudo é devagar, o tempo é marcado por outro ritmo - o da natureza.
Nesse sentido, a estrada também revela outro caráter: o humano. A estrada é o percurso de movimento de uma dinâmica dos homens. Por ela, os viajantes caminham e encontram pessoas que há muito tempo resolveram se estabelecer por lá, por exemplo, no Jalapão. Passar e não cumprimentá-las é negar o caráter humano. O ato de cumprimentar – um simples gesto de mão, mesmo que distante – é fundamental, pois a saudação confere o “status” de homem, a categoria de humanidade.
Portanto, a Viagem do Aprofundamento marcou o encontro com a estrada, como metáfora da memória e também como um campo de trabalho, quase um ateliê a céu aberto, como percurso para o exercício poético.
Nesta terceira viagem, encontrei apenas um campo de capim dourado na periferia da cidade de Ponte Alta do Tocantins. Só consegui chegar entre a segunda e a terceira chuva, o que significou encontrar as hastes de capim dourado já escuras, ou pelo menos, no processo de escurecimento que começa logo após a primeira chuva. Além disso, os coletores de capim já tinham visitado quase todos os campos úmidos. Nesta busca, passei por várias áreas queimadas e percebi que ali residia o foco daquela viagem: o fogo, a terra quente, as árvores e folhas torradas, enfim um cenário cinzento.
A minha estada em Ponte Alta foi marcada por fotografar áreas queimadas e devastadas por incêndios oriundos dos manejos dos solos. E por esperar algum carro que me levasse a Mateiros do Jalapão.
“... a paisagem jalapoeira tem muito acento, tem personalidade, é forte, é incisiva, é delicada, é suave, é feminina ,,,”[4]
Nessa viagem, o cerrado se apresentou como um ser vivo que sofrera uma ação violenta.
Contudo, ainda pude encontrar alguma resistência naqueles solos febris. Caminhando pela terra, mesmo calçada, pude sentir a alta temperatura e o calor emitido não só da superfície, mas também do seu interior. A sensação era de angústia e tristeza. A vontade era de parar de fotografar e ir embora. É praticamente impossível ficar no interior de uma queimada, mesmo com o término do fogo, por muito tempo. A terra, segundo os biólogos, após a terceira queimada parece morrer, a reconstituição é um processo longo e difícil.
Apesar da impressão de dor, pude notar a presença de alguma vida em meio à devastação: alguns brotos de plantas despontavam nos solos queimados. A resistência do cerrado era visível, mesmo com a superfície da terra coberta por cinzas, era possível observar pequenas hastes e folhinhas verdes no chão. Posteriormente, fui informada de que os brotinhos são a comida preferida do gado e que nascem após aproximadamente duas semanas depois das queimadas.
A ideia de que a distância não existe – Longe é um lugar que não existe (1976), romance de Richard Bach (1936) que marcou uma geração nos anos 80 – literalmente é equivocada: ela não só existe como pode representar um momento infeliz. Contudo, pode servir como reflexão e exercício de conhecimento.
Depois de longos quatro dias, finalmente, consegui ir a Mateiros.
Como o esperado, a estrada se apresentou como uma provação: difícil e esburacada.
Consegui chegar, mas conseguiria sair? Ir e voltar faz parte de uma mesma viagem.
“Quem gosta de viajar goza das melhores e mais suaves das sensações: além do sabor, tem também a consciência do efêmero de todas as alegrias. Não perde tempo a procurar o que perdeu. Nem pretende lançar raízes em cada lugar onde, um dia, se sentiu bem” (HESSE, 1980, p. 178).
Além das fotografias dos campos úmidos, a Viagem de Aprofundamento também indicava outra etapa do trabalho: a identificação das imagens editadas e produzidas nas viagens anteriores.
O exame de qualificação (primeiro semestre de 2010) marcou a primeira grande organização do material imagético e das anotações realizadas. Este corte foi fundamental para entender as fotografias e enxergar as diversas direções apontadas.
Ainda nessa viagem pude sentir, além do silêncio do próprio cerrado, a solidão do Fervedouro.
Aquele poço de água e seu entorno líquido representou um oásis no meio da devastação. E, além disso, um momento de contato estreito com a essência poética, uma sensação quase espiritual e intuitiva, e, talvez, necessária ao trabalho em artes.
Não tive anteriormente a oportunidade de estar sozinha naquele Fervedouro. Já havia sentido o potencial do lugar para a realização de um trabalho fotográfico com uma fatura diferenciada: não me interessava o registro documental do espaço, mas imagens que revelassem minuciosamente – diferentes detalhes – cada parte que o compõe. Como fragmentos que desvelam para além do aparente e superficial. Procurava ali uma essência. Aliás, o aparente não interessava naquele momento. Tinha consciência de que o trabalho pedia outro tipo de fotografia. Ele já havia apontado outra direção plástica. Assim, tomei o Fervedouro como espaço de criação e descobri os elementos como peças vivas que indicam caminhos e possibilidades.
A permanência em Mateiros na Viagem do Aprofundamento foi rápida; no mesmo ritmo saí.
Tratei de arranjar uma carona o mais breve possível. Do contrário, não conseguiria pegar o avião na data marcada.
Nessa viagem vivi um sonho intercalado por momentos de pesadelos e por um de contentamento.
A quarta e última – a Viagem do Refinamento – aconteceu em janeiro de 2011. Esta viagem não estava no cronograma inicial. A ideia começou a se esboçar logo após o terceiro deslocamento, pois percebi que ainda faltava algo, não estava certa de que já tinha o material para a finalização do trabalho poético. De fato, a pesquisa apresentava sinais para um possível fechamento, pelo menos desta fase: o doutorado. De qualquer forma, passei a intuir sua realização por volta de novembro, com dois meses de antecedência.
De todas as viagens, a Viagem do Refinamento foi construída a partir de uma dificuldade real: a distância entre a cidade de São Paulo e Mateiros do Jalapão que conta com aproximadamente 2.500 km. A proposta era dirigir até lá. A viagem só teria sentido se fosse realizada por terra.
O interesse era sentir a estrada de fato e não apenas a TO-255, a rodovia estadual que corta o cerrado. A intenção era sentir o distanciamento como um elemento da construção poética.
Contudo, algumas questões práticas foram colocadas: primeiro, não sou uma motorista de longa distância; segundo, não tenho um carro off-road; terceiro, ir sozinha? Diante destas indagações, o que resolver?
A ideia da viagem como lugar de criação poética e experiência estética foi mais persistente do que todas as dúvidas colocadas. A concretude do deslocamento era real e este dado me fascinava. Como das duas últimas viagens, contatei os profissionais do Parque Estadual do Jalapão, especialmente, Cassiana Solange Moreira, a bióloga, na possibilidade de contar com alguém de Mateiros para fazer a viagem comigo. Não necessariamente de São Paulo, mas pelo menos no Estado do Tocantins. E a presença de alguém no percurso da TO-255 era fundamental.
Por mais que desejasse a experiência, não poderia adentrar o cerrado sozinha. Neste momento, constatei que a minha coragem não era suficiente para tal empreitada.
Finalmente, depois de muitas mensagens eletrônicas e ligações telefônicas, consegui estruturar a viagem não só logisticamente, mas especialmente, poderia contar com Delmar Camilo Soares, poeta e escritor, residente em Mateiros e também com Cassiana Solange Moreira, a bióloga, no longo percurso que se desenhava. Estas companhias foram fundamentais na realização da viagem e, principalmente, como apoios diante de qualquer emergência, dificuldade e surpresa indesejável.
A viagem de São Paulo a Mateiros do Jalapão levou quatro dias e meio, quase cinco conforme o programado. Diante das dúvidas e dos medos apresentados, posso considerá-la uma viagem bem sucedida: nenhum problema com a mecânica do automóvel, nenhum acidente, apenas duas rodas entortadas, três calotas e a placa do carro perdidos ao cruzar um rio, o protetor do cárter amassado, nenhum tipo de coação, nenhuma dificuldade com as estradas, além do que é previsível, nem da chuva que se manteve até a Chapada dos Veadeiros no norte do Estado de Goiás, o sol só apareceu no Tocantins, e todos nós comemoramos. Enfim, conseguimos chegar a Mateiros sem nenhum “arranhão profundo”.
Apesar do sucesso da viagem, das companhias, me mantive apreensiva durante o percurso até Ponte Alta do Tocantins, o trabalho poético não fruiu da forma com que esperava. Tenho a impressão de que precisava de mais tempo na própria estrada, certo alargamento, para dar vazão ao instante criativo tão desejado. Praticamente o que valeu nesta etapa foram o próprio deslocamento e a experiência da paisagem, contudo poucas imagens foram produzidas.
A Viagem do Refinamento representou um grande desafio: o reconhecimento dos limites e da necessidade de compartilhar. Podemos ir além do esforço delimitado pelo corpo físico? Qual é o sentido de uma experiência se não temos com quem partilhá-la? Na obra cinematográfica “Na Natureza Selvagem” (2007), o protagonista chega à conclusão de que “a felicidade só existe se é compartilhada”. O homem em certa medida busca o desafio, tem atração pelo risco que faz parte da sua essência, e precisa lidar com os seus medos, justamente para se conhecer. Desta forma, essa viagem, a intuição desse refinamento, representou a finalização de uma busca, de uma procura que partiu de um encantamento pela paisagem para a descoberta de um “devir”, um retorno à memória e às coisas do esquecimento; e o reconhecimento do medo como significado de um lugar de passagem (praticamente o que se desconhece) que anteriormente não havia sentido.
O processo de fruição só ocorreu quando adentrei a TO-255 que corta o cerrado e alcança a cidade de Mateiros. Neste percurso, finalmente pude respeitar o meu tempo, sentir a respiração e abrir espaço para a criação. A pesquisa se objetivava a partir da própria viagem, ir e vir, os registros fotográficos como resultado do percurso poético, e o reconhecimento do projeto como um trabalho processual, como um “work in process”.
A deriva enquanto caminhada não existe no Jalapão. O território não permite a movimentação física dos homens. É quase impossível com aquela temperatura e o calor intensos. E os animais podem representar uma ameaça. A arte de flanar, se transportarmos o hábito cultural francês para o interior do cerrado, não é indicada. O melhor é ter um meio de locomoção: um cavalo ou um carro.
Cortei o cerrado jalapoeiro e parei inúmeras vezes para fotografar, e fazer anotações de pensamentos que ocorriam como flashes:
• A estrada representa um deslocamento e ao mesmo tempo uma oposição: o conhecido e o desconhecido;
• O encantamento inicial é fruto do desconhecido e da curiosidade em conhecer;
• A distância não existe? Longe é mesmo o lugar que não existe?
• O desejo de “sair por aí sem destino”;
• O cerrado como um mar de imensidão; como uma viagem interna; um percurso desencadeado por uma sensação de “solidão reflexiva” (SUBIRATS, 1986);
• A natureza – a paisagem – como revisão da própria história;
• As montanhas como obstáculos no horizonte ou outro desenho para o horizonte;
• O silêncio como ruído; o barulho do silêncio; a inexistência do silêncio;
• A sensação do nada; do vazio;
• O tempo do relógio, da intensidade da luz natural, do velocímetro que indica os quilômetros percorridos;
• A temperatura e a cor são duas marcas do cerrado: o calor e o colorido; os tons quentes estão presentes em toda a extensão daquele oceano;
• O cerrado como lugar para pensar o mundo e a construção desse mundo;
• A estrada como lugar do pensar/refletir e fazer/criar;
Levei praticamente um dia para percorrer 173 km. No final da tarde daquela quinta-feira, o cansaço estava presente: podia senti-lo no corpo e nos olhos. Felizmente, o reflexo não estava adormecido, o que impediu uma picada de uma jararaca no banheiro. Já tinha tomado banho no brejo ouvindo a sinfonia dos sapos à noite, mas a presença de uma cobra venenosa foi a primeira vez.
O Jalapão deixou de ser apenas o lugar de pesquisa, onde o estudioso tradicionalmente coleta informação e analisa posteriormente para tornar-se o espaço da criação como um atelier de artista. A estrada, a viagem e o capim foram tratados como elementos de reflexão e de fazer artístico. Em Mateiros, refiz algumas edições, organizei alguns arquivos digitais, registrei outras fotografias, construí uma primeira narrativa a partir das “coleções de imagens” e, especialmente, dos conteúdos visuais aliados à experiência e à percepção do cerrado, afinal contava com quatro viagens singulares.
As referências visuais – as influências dos artistas – não estavam apenas no território delimitado pela fotografia, contei também com obras pictóricas no decorrer do processo de criação. A pintura de Mark Rothko (1903/70) e Mira Schendel (1919/88), bem como as fotografias do pintor Cy Twombly (1928) foram referências para as imagens desenvolvidas no Jalapão.
Como a cor é um elemento visual e informação preponderante no cerrado, busquei influências em outros campos da arte.
“A cor e a pintura como arte da cor dão aos homens o mundo em sua verdade sensível e vivente. Na cor encontra-se o que a geometria não alcança, a carne do mundo, que é o lugar mesmo da manifestação da sua essência” (BESSE, 2006, p. 54).
A ideia era fugir da noção de “table book”, aquele tipo de livro fotográfico com belas imagens que decora as mesas das salas de visitas ou mesmo as fotografias de natureza e de animais que ressaltam a coragem dos seus autores ao estilo National Geographic. Apesar da fotografia digital como instrumental para construção imagética desta pesquisa, a pintura como obra da cor indicou uma possibilidade para a composição fotográfica.
Obras fotográficas tais como as fachadas das casas no interior do nordeste brasileiro de Anna Mariani (1935)[8], as florestas fechadas de Thomas Struth (1954)[9], as naturezas construídas de Caio Reisewitz (1967)[10] também foram referências para o projeto Estrada, Paisagem e Capim.
A ideia de “fotografia expandida”, uma fotografia que dialoga mais com outros territórios da arte, para além do seu lugar conquistado no século passado, foi tomada como norte do processo poético. Apesar disso, se analisarmos o material bruto encontraremos muitos registros que lembram certa documentação social – paisagens e retratos, os dois gêneros mais produzidos ao longo da história da fotografia. Um estilo fotográfico no qual o índice e o referente são marcas enquanto informação e conteúdo. Simultaneamente, encontraremos fotografias com tendências expressivas e abstratas.
Ao longo das últimas duas décadas, a fotografia analógica perdeu espaço para a digital. Essa fotografia digital representa uma alternativa tanto se considerarmos a economia do processo (o laboratorista digital é o próprio fotógrafo), quanto à contaminação dos rios e, consequentemente, da natureza. Vale lembrar que o procedimento de revelação de um filme fotográfico depende de substâncias químicas extremamente poluentes, além dos litros de água gastos na lavagem da película. E, ainda, reconhecer que esta pesquisa tem não só uma dimensão artística, mas também uma dimensão ambiental. Esses fatores foram preponderantes para a opção técnica da fotografia digital neste trabalho.
Busquei coerência quando optei pela fotografia digital – economia e natureza -, mas não só isso colaborou com esta proposição técnica: a própria imagem digital como expressão e possibilidade do fazer poético. A alternativa em registrar e ver o que fora realizado quase simultaneamente tornase uma ferramenta de seleção e reflexão sobre o fazer.
O fazer fotográfico na dimensão da construção poética realizou-se com as viagens, com as análises dos arquivos digitais, com as referências visuais e teóricas, com as conversas com a comunidade local, com os questionamentos e reflexões levantados, e, especialmente, com o contato com o cerrado e todas as viagens interiores que foram proporcionadas pelo Jalapão.
Uma pesquisa em arte representa uma busca pela expressividade – a partir da intuição, do instante, da percepção – e também uma investigação que conta com certa racionalidade – a razão também faz parte do processo. A soma do conhecimento sensível e do conhecimento racional edifica um saber que é próprio do território da arte. No processo da pesquisa poética – da busca, da investigação e da descoberta – identificamos os sentidos no e do fazer artístico. Arte também é conhecimento: da matéria ao objeto encontramos pensamentos, questionamentos, reflexões, elaborações, transformações, entre outros, que estruturam um processo poético. Portanto, a arte e o fazer são intrínsecos do trabalho processual.
Em Estrada, Paisagem e Capim, a fotografia é o processo e o resultado da obra. A partir do material fotográfico bruto e do descobrimento do Jalapão construí uma narrativa imagética, mas outras narrativas poderiam ser elaboradas. O trabalho em arte não se limita a um fechamento exclusivo, ao contrário, como um objeto polissêmico, permite uma infinidade de outras leituras e construções. O percurso desenhado contou com uma edição de imagens não linear, isto é, não seguiu o cronograma das viagens, ao contrário, a partir de cada deslocamento foram selecionadas fotografias que depois foram costurando um discurso elaborado no processo de desvelamento do cerrado jalapoeiro.
“A tarefa do pintor – escreve ele – não se funda na exposição fiel do ar, da água, dos rochedos e árvores, mas em tudo isso devem se refletir sua alma e seus sentimentos. Reconhecer o espírito da natureza, penetrar nele, assumi-lo e expressá-lo com todo o coração e com todo o ânimo, eis a tarefa da obra de arte”, segundo o pintor Caspar David Friedrich (SUBIRATS, 1986, p. 49)
A Viagem do Refinamento evidenciou uma busca por compreender o processo poético iniciado a partir do encantamento pelo Jalapão. Entender não só os registros fotográficos realizados até então, mas especialmente o desencadeamento de sentimentos e de sensações localizados na memória, no lugar do esquecimento, e constatados no percurso do descobrimento e do fazer artístico no cerrado. A natureza foi tratada como espaço da criação e a intuição como matéria poética. Ambas apareceram na maior parte da pesquisa e nortearam reflexões intrínsecas ao processo poético.
O retorno da Viagem do Refinamento foi mais tranquilo do que a ida, mas continuei contando com o Mapão do Brasil [11].
As viagens – Encantamento, Desenvolvimento, Aprofundamento e Refinamento – marcam a construção do trabalho poético Estrada, Paisagem e Capim – Fotografias e Relatos no Jalapão.
Os deslocamentos foram as quatro etapas realizadas entre os anos de 2006 e 2011. Cada uma delas contribuiu intensamente para o descobrimento e compreensão do bioma cerrado, e também para reconhecer que a arte pode tratar a natureza como matéria e discussão na sociedade e na arte contemporânea.
Leia aqui a Tese na integra
NOTAS:
1 Anotações dos cadernos de pesquisas/2010.
2 Anotações dos cadernos de pesquisas/2010.
3 Anotações dos cadernos de pesquisas/2010.
4 Anotações dos cadernos de pesquisas/2010.
5 CLEARWATER, 2008, p. 99.
6 DIAS, 2009, p. 152.
7 TWOMBLY, 2008, Plate 70.
8 Anna Mariani Pinturas e Platibandas – Exposição – São Paulo: Instituto Moreira Salles, Junho/2010.
9 COTTON, 2004, p. 105.
10 REISEWITZ, 2010.
11 Mapão do Brasil 2010 – 6309 Destinos – As principais estradas do país; Polícia rodoviária; Pedágios; Postos de abastecimento; Quadro de distâncias. São Paulo: Abril/Guia Quatro Rodas, 2010.
Fonte: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000833328&opt=1