Renato Imbroisi: No encontro de hoje, faremos uma verdadeira viagem pelo artesanato do Brasil, acompanhando a experiência de cada uma das artesãs aqui presentes. Para começar, vamos ouvir a artesã Terezinha Soares, do Rio Grande do Sul, falando dos Favos do Sul. Ela vai nos contar um pouco de sua história e de seu trabalho.
Artesã: Teresinha Soares
Local de atuação: Associação Favos do Sul, em São Borja, Rio Grande do Sul
Trabalho: Utiliza técnicas de costura e bordado para confeccionar peças inspiradas na bombacha, típica vestimenta gaúcha.
Terezinha: Sou do Rio Grande do Sul, de uma cidade bem distante, uma terra de gaúchos. Fazemos colchas, almofadas, cortinas, echarpes, cachecóis, lenços e outras peças, sempre inspiradas nas bombachas, roupas típicas dos gaúchos. Utilizamos algodão industrializado (100% algodão), geralmente em vermelho, branco e preto (por serem as cores mais comuns nas vestimentas gaúchas).
Somos ao todo 20 mulheres e desenvolvemos nosso trabalho em parceria com o Renato Imbroisi. No nosso grupo, o trabalho é todo dividido: temos costureiras, bordadeiras e crocheteiras. Eu, por exemplo, sou costureira e ensinei o que faço para outras mulheres, de modo que, quando é necessário, passo a elas parte do trabalho.
Nós nos reunimos na associação comercial às segundas-feiras. Todas as artesãs comparecem e, então, vemos os trabalhos, supervisionamos as peças, fazemos um controle de qualidade e distribuímos novas tarefas para elas. Feito isso, cada uma vai para sua casa, onde realiza os trabalhos. Na semana seguinte, elas voltam para mostrar o que fizeram e assim por diante.
Renato: É muito emocionante ver essas mulheres trabalhando. Durante o trabalho, a Terezinha canta para as artesãs. Ela canta muito bem, é bonito de se ver.
Terezinha: Nosso grupo está trabalhando junto há cerca de um ano e meio. Nossas peças têm sido muito bem aceitas em São Paulo e isso é muito gratificante para nós. A comercialização dos produtos começou recentemente.
Renato: Depois de quase dois anos de trabalho, a comercialização realmente está começando agora. O primeiro teste de mercado foi realizado em São Borja, a cidade delas, que fica a 9h de Porto Alegre. Terezinha, eu gostaria inclusive que você contasse um pouco como foi essa exposição para lançar os Favos do Sul em São Borja.
Terezinha: Fizemos uma exposição para mostrar nossos produtos. Não faríamos vendas; era apenas uma mostra fechada e restrita, para depois desenvolvermos as peças. Nossa experiência foi um sucesso. As pessoas se surpreenderam ao ver como nossos produtos, inspirados em bombachas, eram bonitos. Ninguém esperava que seria possível tirar peças tão bonitas a partir das bombachas. Os trabalhos são bem elaborados – fazemos parte à máquina e parte à mão; uma echarpe, por exemplo, pode levar de dez a quinze dias para ficar pronta.
Artesã: Sueli Silva Menezes
Local de atuação: Associação das Bordadeiras de Taguatinga, Distrito Federal
Trabalho: Recuperação de pontos tradicionais do bordado, tendo como motivo as flores do cerrado.
Sueli: Antes de me apresentar, gostaria de agradecer o apoio do Sebrae e o incentivo de Renato Imbroisi.
Sou de Brasília e desenvolvo trabalhos de bordado com cerca de vinte mulheres. Nossas atividades começaram em setembro de 2001, quando o Sebrae contratou uma professora de Minas Gerais para nos ensinar alguns pontos. Em visitas posteriores, a mesma pessoa fez reciclagens com a gente e nos ensinou técnicas de bordado com linhas de diferentes espessuras (trabalhamos muito com renda em bolsa e, para isso, usamos linhas bem grossas).
Em 2002, com o apoio técnico e gerencial do Sebrae, fundamos a Associação das Bordadeiras de Taguatinga. Temos uma sede em Brasília, ainda pequena, pois somos poucas e a maioria de baixa renda. O grupo, de qualquer forma, é bem diversificado: temos advogados, professores e também mulheres com baixo poder aquisitivo.
Nosso trabalho é todo dividido entre as artesãs. Eu, por exemplo, sou a desenhista do grupo – apesar de não ter bastante técnica, tenho muito dom e facilidade para o artesanato. Tenho rascunhadas cerca de 400 flores do cerrado e já fiz um livro que está na segunda edição, passando para terceira. Depois de desenhar, passo os traços para o pano. Temos ainda cortadeiras, responsáveis por cortar os tecidos, um grupo de bordadeiras, costureiras e o controle de qualidade. Mas estamos ainda engatinhando nisso.
Além do trabalho manual, todos da equipe têm outras atividades. Uma artesã é presidente, outra é secretária, eu sou a tesoureira, temos as vices e assim por diante. Somos organizadas e nos entendemos muito bem. Quando passo uma flor para o pano, entrego para secretária, que repassa para as bordadeiras. Uma semana depois, elas entregam os bordados prontos e pegam mais material para trabalhar. Depois de prontas, as peças são lavadas, passadas, vão para o controle de qualidade e então para a costureira. Quando o trabalho não está bom, não passa pelo controle de qualidade.
Nosso trabalho é muito gostoso e, desde que começamos, já melhoramos muito. Desde 2001 o Renato nos ajuda, atuando como designer. Ele dá suas sugestões e eu desenho o que ele pede.
Renato: Queríamos muito colocar as flores do cerrado em alguns produtos e eu não sei desenhar. Sendo assim, a Sueli vai para o cerrado, observa as flores, desenha-as e transfere os traços para o tecido.
Sueli: Primeiramente, o Renato nos orientou na confecção de colchas e almofadas de vários tamanhos. Em princípio achamos a idéia da colcha absurda, pois elas são trabalhosas e caras, mas no final das contas deu certo. Gastamos 700 reais para fazer uma unidade e vendemos para os lojistas a 990 reais. A associação fica apenas com pouco mais de 100 reais. As peças são confeccionadas com tricoline 200 (um tecido que pode ser posto na máquina de lavar) e fibra acrílica no enchimento. Além desses produtos, hoje também fazemos toalhas de banho e de mesa, paninhos para mesa, jogos americanos e guardanapos.
Pergunta: Como é feita a comercialização dos produtos?
Nosso meio de comercialização são as feiras e, em geral, temos uma semana de prazo para entregar uma colcha. Participamos de quase todas as feiras do Sul, de Belo Horizonte, São Paulo e Maceió. Já conseguimos alugar também stands na Gift Fair de Minas Gerais e de São Paulo. Mas ainda vou batalhar e quero que o Renato me oriente para conquistar novos objetivos – nós queremos exportar para Europa...
Renato: Um aspecto interessante de apontar é que as vendas dessas mulheres cresceram tanto, que elas tiveram que terceirizar a mão-de-obra e aumentar a produção.
Sueli: Realmente estamos crescendo muito – para se ter uma idéia, nosso faturamento em 2003 ficou entre 120 e 130 mil. Para dar conta de todo trabalho, as vinte bordadeiras da associação contam com outras 80 mulheres terceirizadas. Em uma colcha, as bordadeiras ganham 4 reais por flor. Se quiserem terceirizar, fornecem a linha para as colaboradoras, dão as orientações devidas e lhes pagam R$ 1,50 por flor. Se acontecer de a pessoa terceirizada danificar o tecido, a bordadeira banca o prejuízo.
Eu também terceirizo meu trabalho de passar o desenho das flores para o pano. Conforme combinamos na associação, encaminho meu serviço para filhos adolescentes das bordadeiras e repasso para eles parte do dinheiro que recebo. Se eu não tiver número suficiente de filhos de bordadeiras, pego gente de fora.
Pergunta: Quanto as bordadeiras ganham em média?
Sueli: O salário depende da produção de cada uma. Elas podem receber 700 reais em uma semana ou até menos de dez – é muito relativo. Tem uma família em que a associada é uma bordadeira, mas o marido está desempregado há muitos anos e ela passa o serviço para ele. Ele borda e o trabalho dele é melhor do que os nossos, mas ele se esconde. No dia de receber, em vez de ir ao centro de artesanato, ele vai bem cedinho em uma loja de artesanato que eu tenho... Além do marido e da mulher, eles têm um filho de 18 anos que também borda.
Finalizando, gostaria de dizer que ficamos em Taguatinga (uma cidade satélite de Brasília) e que seria um prazer receber a visita de vocês em nosso centro.
Artesã: Maria do Carmo Maciel
Local de atuação: Bairro Mato Dentro, no município de Soledade, em Minas Gerais (entre São Lourenço e Caxambu)
Trabalho: Cestaria com palha de milho e taboa
Mariazinha: Meu nome é Maria do Carmo, mas todos me chamam de Mariazinha. Tenho cinco filhas, três netos e faço cestaria desde criança. Sou bastante batalhadora. Além de fazer cestaria, trabalho em um posto de saúde, onde sou auxiliar da dentista e secretária da médica. Nas horas vagas, ainda ajudo na igreja, fazendo festas e forrós para arrecadar dinheiro.
Trabalho com o Renato desde que nos conhecemos, em 1986. Naquele dia, eu estava a pé com uma filha pequena, vindo de São Lourenço para minha casa em Mato Dentro. O Renato nos viu e me ofereceu carona. Chegando em casa, ele viu minhas bolsas, quis saber como eram feitas e, daí em diante, começamos a trabalhar juntos.
Pergunta: Como é a parceria entre vocês?
Mariazinha: O Renato cria as bolsas, escolhe as cores, me explica o que quer, fornece as tintas para o tingimento e, com a palha de milho, eu confecciono as peças. Atualmente, onze pessoas trabalham para mim, entre mulheres, homens e crianças (já cheguei a estar com 46 pessoas).
Renato: Foi a Mariazinha quem optou por trabalhar com menos mulheres. De qualquer forma, há muitas artesãs produzindo cestaria de palha de milho em São Lourenço, Caxambu e imediações. Elas desenvolvem peças por conta própria e vendem para turistas da região ou para outras cidades (como Rio de Janeiro, São Paulo, etc.). Na própria casa da Mariazinha, são realizadas vendas.
Inicialmente, as artesãs praticamente não pintavam a palha de milho: ela era crua e trazia poucas listas coloridas. Quando comecei a trabalhar com elas, queria que pintassem a palha inteira e isso gerou em Mato Dentro um forte núcleo de produção com palha colorida, característica quase exclusiva nas imediações. Por esse diferencial e pelo fato de as bolsas serem muito grandes, o trabalho dessas mulheres chama muita atenção.
Pergunta: Vocês trabalham apenas com a palha de milho? Esse material é durável?
Mariazinha: Além da palha de milho, trabalhamos com taboa, sisal e palha de trigo. Dessas matérias-primas, a única que dá bicho com o passar do tempo é a taboa. Já a palha do milho conserva-se por muito tempo, contanto que seja colhida no tempo certo, quando já estiver seca (plantamos a maior parte da matéria-prima – o que falta, a gente compra).
Pergunta: Como são feitas as bolsas? Quanto tempo leva a confecção?
Mariazinha: A preparação da palha e o tingimento de uma bolsa são feitos em cerca de dois dias (um produto desses sai por 20 reais). No processo, pegamos uma fôrma do tamanho da bolsa, forramos com prego, encordoamos com palha torcida e, então, tecemos com a palha aberta molhada.
Renato: Cada bolsa é tecida a partir de uma fôrma e o acabamento (a alça de couro de um dos modelos) é colocado em São Paulo. Há dois anos, quando a produção era muito grande, chegamos a trabalhar com 500 fôrmas. Isso porque é necessário tecer com a palha molhada e aguardar um dia para ela secar e poder ser retirada das fôrmas (sem esse cuidado, a bolsa ficaria toda torta).
Mariazinha: Na época das chuvas, é complicado atender os pedidos. Já chegamos a trabalhar noite e dia, secando a bolsa no forno. E a palha tem de ser tingida antes de tecer, já que tecemos com a palha molhada – inclusive, sempre nos sujamos com as tintas. Depois de seca, a tinta não sai mais (com exceção da azul, que solta um pouco). Para tingir a palha, colocamos a tinta com água em um caldeirão, fervemos a água e mergulhamos a palha (que deve estar dentro de um saco de cebola). Deixamos ferver um pouco e tiramos. As palhas mais claras levam tintas claras; as mais escuras levam tintas mais escuras. Quando fazemos baús, tingimos diretamente nas fôrmas.
Uma vez o Renato nos pediu 4000 caixinhas – era uma encomenda para Nestlé. Eu dizia: “Renato, não vou dar conta...” e ele respondia: “Se vira” (risos). E eu me virei. Trabalhei noite e dia, as peças secaram nos fornos de várias artesãs e conseguimos entregar o pedido no prazo. Deu certo.
Renato: A Mariazinha já trabalha com isso há 18 anos e tem vários clientes (não sou o único a comercializar seus produtos). Hoje estamos fazendo juntos apenas essas bolsas, mas já fizemos mais de cinqüenta, cem itens, entre cestas, caixas, baús, tapetes, jogos americanos, cestos de lixo, moisés, etc. Nessa porção de Minas, os clientes chegam muito facilmente e os produtos da Mariazinha e das outras artesãs vendem sempre, elas vendem tudo.
Mariazinha: Às vezes, penso: “Agora eu fazer um estoque” – mas nunca consigo, pois quando estou fazendo uma peça já chega alguém para comprar. Especialmente as bolsas têm uma saída muito grande, não vencem. São vendidas muito rapidamente, vale mais a pena do que fazer peças maiores, como tapetes grandes e baús (apesar de que, com o Renato, já vendemos muitos baús de 1,05 m). O mercado é tão bom para gente, que até minhas filhas, hoje com 8 e 13 anos, fazem cestaria e têm seus fregueses. A única diferença dos produtos delas é que são feitos sempre com a palha crua, já que elas não podem ir para escola com as mãos sujas de tinta.
Renato: Na comunidade, as crianças ficam grudadas nas mães e querem começar logo a fazer artesanato. Desde pequenininhas elas querem ajudar as mães. Quando Mariazinha me contou que suas filhas já tinham fregueses, eu me assustei ao ver crianças tão pequenininhas já trabalhando. Mas é assim, na região toda é assim. Prova disso é a Edilaine, filha da Mariazinha...
Edilaine: Eu tenho oito anos e faço bolsa desde pequenininha. Ajudo minha mãe a fazer bolsa.
Artesã: Roze Mendes
Local de atuação: Grupo de Produção Flor do Cerrado, Brasília, DF
Trabalho: elaboração de flores artesanais, utilizando folhas do cerrado como matéria-prima
Roze: Meu nome é Roze e sou moradora e filha de Brasília. Tenho quatro irmãs e quatro irmãos e, de todos, sou a única artesã. Minha habilidade de artesã é um dom. Comecei a fazer artesanato ainda na escola, onde só tinha olhos para arte. Minha mãe dizia: “Roze, eu não entendo, você só tem dez em arte e no resto não tem nota nenhuma! Você vai viver de arte?”. Sim, eu vivo de arte.
Eu me casei muito nova e hoje, aos 42 anos, tenho três filhos e dois netos. Meu marido é uma pessoa maravilhosa e sempre me incentivou, me deu oportunidades que poucas mulheres têm. Ele me deu a liberdade de fazer cursos e buscar o que eu sabia fazer de melhor. No Sesi, então, fiz curso de florista, com especialidade em flores de tecido. Ansiosa para pôr em prática o que aprendia, quando estava em casa eu montava muitas flores – sempre à mão, já que não tinha condições de comprar as ferramentas.
Até que um dia os negócios que meu marido tinha com a família não deram certo. Então, decidi que iria trabalhar. Ele me perguntou o que eu faria e eu respondi que seria florista. Na época, comecei a ir diariamente ao centro de Taguatinga, para ver o classificado de empregos do jornal. Um dia, me deparei com o anúncio: “Precisa-se de florista com especialidade em flores de tecido”. Despenquei para o Lago Sul (nunca tinha ido para lá) e, quando cheguei no local, encontrei todas as pessoas que tinham feito o curso comigo. Em uma caixinha, levei uma porção de flores que tinha feito em casa – contei que tinha montado-as sem nenhuma ferramenta e consegui o emprego. Para que eu pudesse organizar minha vida, a pessoa que me contratou me adiantou o salário de um mês. Cheguei em casa com o emprego e com dinheiro para pagar as contas.
Desde que comecei a trabalhar, sempre acompanhei os programas do Distrito Federal relacionados ao artesanato, chegando até a fazer parte do parte do Conselho Consultivo do Artesanato. Sempre gostei disso. Pensava que muitas mulheres poderiam estar na mesma situação em que estive um dia e que o artesanato poderia melhorar muito a vida delas. Fui trabalhar como voluntária na Pastoral da Criança, procurando inserir as mães em um programa de geração de renda. Em nossa comunidade, a ajuda do governo costuma deixar as pessoas reféns: é o pão, uma cesta, um leite, etc. E eu pensei: “essas mulheres não precisam disso, elas podem ter um meio de gerar renda na comunidade”.
Em 2000, buscamos nossa primeira experiência com design, na qual conhecemos o Renato. Até então, eu tinha um problema com as mulheres da Pastoral: elas faziam flores, panos de prato, etc., mas não tínhamos mercado para venda. Com a chegada do Renato, esse cenário foi modificado. Hoje, os programas têm gerado renda para as comunidades de Brasília, ajudando a resgatar a auto-estima e a dignidade das artesãs.
No primeiro trabalho que fizemos com o Renato, achei as idéias dele muito grandiosas. Mas eu sabia que as artesãs tinham que mudar, sabia que precisávamos de algo novo. Mesmo transformando nosso trabalho, achei interessante o Renato ter feito questão de manter o que temos de nós no trabalho: nossa cultura, nosso jeito, nossa matéria-prima, nossa região... Isso é muito importante. Gosto de trabalhar com o cerrado porque nasci lá e acho a região muito linda.
Hoje, vejo como o Renato tem mudado a vida de nossa comunidade e a consciência de artesãs. Elas estão ficando mais preparadas para o mercado. Em agosto de 2003, tivemos a experiência de participar pela primeira vez da feira Paralela Gift. E eu pensava: “será que está acontecendo mesmo isso com a gente?”. Eu não acreditava, estava impressionada com tantos elogios que estava recebendo. Toda vez que eu passava no corredor da feira, eu andava como se estivesse no corredor da fama. Cheguei até a ouvir um homem dizer: “que mulher louca!”. Mas aquilo era realmente incrível para mim. Participamos mais tarde da Gift Fair e, com o sucesso obtido, pudemos melhorar as condições de trabalho. Agora temos um fogão e panelas adequadas para fazer nossos produtos.
Renato: Por conta de tantos esforços, em agosto de 2003 elas tiveram uma abertura enorme de mercado e venderam mais de 150 peças. Entre as peças confeccionadas, destacam-se painéis, cortinas, sachês, porta-guardanapos, árvores de Natal, etc. – tudo feito a partir de folhas do cerrado.
Roze: É isso mesmo: as folhas do cerrado são nossa matéria-prima. Colhemos, estocamos e esqueletizamos as folhas, em processo que consiste em deixá-las no fogão à lenha por um certo tempo (milhares delas), depois lavá-las e separá-las por tamanho para o uso. A esqueletização serve para que as folhas sejam preservadas secas, impossibilitando o desenvolvimento de fungos. Depois fazemos crochê com elas e montamos as flores. Juntando uma série de flores, formamos painéis. Vinte mulheres trabalham com a gente. Não somos uma associação, mas um “grupo de produção”. Acredito que melhoramos muito nossa produção porque descentralizamos e colocamos cada pessoa com uma função. Algumas tecem a tela, outras colhem as flores, outras fazem o acabamento e assim por diante.
Renato: A esqueletização torna as folhas delicadas, quebradiças e difíceis de serem crochetadas. É preciso ter uma mão muito delicada para trabalhar com elas e as mulheres dessa comunidade têm. Além disso, a Roze é muito guerreira. Ela tinha muita vontade de transformar sua vida e para isso não media esforços. Fazia oito anos que eu tentava fazer esse trabalho e não conseguia em nenhuma comunidade (com muito luta, já tinha tentado em dois lugares, sem sucesso). Com essas mulheres eu consegui e tinha certeza de que aquilo iria transformar a vida delas.
Roze: Costumo dizer que o Renato deu cara nova às flores do cerrado. Sempre trabalhei com essas flores misturadas com algo, nunca tinha visto elas sozinhas em um produto. A partir do momento em que colocamos várias delas juntas, uma pertinho da outra, pudemos ver a beleza que formam em conjunto. E as pessoas da nossa região também perceberam isso. É muito comum as pessoas olharem e dizerem: “nossa, isso aqui é de Brasília!”.
Hoje, buscamos tecnologia para agregar valores ao nosso produto. Fizemos testes e conseguimos impermeabilizar as folhas com silicone, sem atrapalhar a estética. Fora isso, testamos novos tipos de folhas, conseguindo boa qualidade e aceitação, e começamos a trabalhar com sobras de folhas. Recentemente, em um treinamento com o Sebrae, aprendemos a fazer tingimentos naturais com urucum, pau-brasil, macela e açafrão. Toda nossa técnica é sem dúvida uma arte. Para se ter uma idéia, levamos um mês para fazer uma cortina de 1,30 x 1,60 m.
Por essas e outras, temos um respeito muito grande por este trabalho. O melhor é que, quando o Renato veio trabalhar com nosso grupo, ele percebeu rapidamente o cliente que poderia receber nosso trabalho. Quando visitamos pela primeira vez o Projeto Terra (uma das lojas que comercializa nossos produtos), pude ver a fantástica aceitação de nosso trabalho em São Paulo e fiquei até emocionada.
Renato: É muito importante elas terem contato com a comercialização, conhecerem as lojas e os lojistas. Porque os lojistas também dão dicas para elas do que é bom fazer. Se o produto deu certo, se não deu, quais são os problemas, os pontos fortes e assim por diante. Por exemplo, no final do ano elas fizeram uns porta-guardanapos direto para o Projeto Terra, para atender uma demanda que eles tinham; eles pediram árvores de Natal também – tudo direto para elas. Enfim, acho importante cada vez mais trazê-las para comercialização.
Roze: Só posso dizer que esse trabalho tem sido realmente muito bom para gente. Mudou não só a vida da minha família toda, mas também da comunidade. Todas as mulheres que trabalham comigo têm carteira de artesã e nós emitimos notas fiscais avulsas para elas. Eu incentivo, oriento, saliento que elas são artesãs e não donas de casa. Muitas vezes junto um grupo na paróquia onde trabalho, na creche, levo-as na Secretaria do Trabalho, elas desenvolvem um bordado, uma flor ou um crochê e tiram a carteira de artesã.
Renato: É importante para as artesãs este cuidado em cadastrá-las. E do modo como anda este grupo, a Roze está hoje caminhando para se tornar uma micro-empresária. Desde o início ela não quis abrir uma associação, cooperativa ou algo do gênero (como acontece em muitas comunidades), já que não era esse o perfil do grupo.
Roze: De fato, começamos a trabalhar como artesãs e, quando vimos, estávamos tendo que atuar com empresas e como empresas, usando fax, site, e-mail, etc. Não posso ficar sem atender essa demanda. Ainda assim, nossa produção é pequena, pois temos que ter consciência ambiental, retirando as folhas com parcimônia para não prejudicar a natureza. Não temos interesse de colocar nossas peças em tudo quanto é lugar. Temos que ter consciência do limite da nossa produção e não negociar grandes produções.
Renato: A Roze trouxe com ela a filha Samanta, que há pouco tempo está trabalhando com ela. Você gostaria de dar uma palavrinha sobre o trabalho de vocês, Samanta?
Samanta: Esse trabalho realmente transformou a vida da nossa família. Eu estudo Administração de Empresas, estava fazendo um estágio para ajudar a pagar meu curso e, um belo dia, minha mãe disse que estava precisando muito de mim. Pedi demissão do trabalho, voltei para casa e no mesmo dia comecei a fazer planilhas, cronogramas, catalogar a produção de flores.... Minha mãe colocou tudo na minha mão, foi muito mágico.
Cuido hoje da parte administrativa do negócio, dos clientes... O trabalho é bastante grande, eu não imaginava que seria tanto... Em nossa casa, não existe mais sala nem copa. Fizemos ateliê, escritório. Já tínhamos fax, computador e nos organizamos. Conseguimos comprar carro, pagar a minha faculdade e a do meu irmão e ficar bem. Foi maravilhoso. Em nossa família, temos funcionários públicos que ganham muito bem e que sempre disseram: “Coitada da Rozélia, fazendo artesanato...”. Mas o que eu sinto é orgulho de tudo o que aconteceu. Eu vibro quando vejo minha mãe nas revistas ou mesmo dando esta palestra aqui. É uma coisa boa que passa pra gente, um ensinamento maravilhoso. Pensar que o dom da mão de uma pessoa transforma, transforma muita coisa...
Artesã: Anita Garibaldi de Sousa
Local de atuação: Campina Grande, Paraíba
Trabalho: Confecção de bonecas de pano
Renato: A Anita é uma artesã que eu descobri há menos de um ano, fazendo um trabalho com o Governo do Estado da Paraíba, no programa “Paraíba em suas Mãos”. É uma pessoa que me emocionou muitíssimo pelo trabalho e pela criatividade que extrapola qualquer designer. Ela tem o cuidado de fazer cada peça única. Trabalha sozinha e está começando agora a dar aulas e formar grupos. Ela trabalha também com o algodão colorido da Paraíba, um algodão desenvolvido pelo Estado da Paraíba e que será espalhado para o país inteiro e para o mundo. A Paraíba é uma diversidade imensa de trabalhos artesanais, uma criatividade única que está muito escondida e desabrochando de maneira espetacular.
Anita: Nasci no sertão da Paraíba, na última cidade do sertão. Nem cidade é, pois não está no mapa... Chama-se Distrito Federal e somente as pessoas que trabalhavam no Dnocs – Departamento Nacional de Obras Contra Seca – moravam lá. As casas são todas pintadas de amarelo. E lá eu brincava de casinha, fazendo bonecas. Aprendi olhando minhas primas. Minhas duas avós também fazem bonecas e minha mãe é costureira. A gente sentava então embaixo da máquina e ficava pegando os retalhos que caíam e fazendo nossas bonecas.
A gente fazia casinhas de boneca e brincava como se fosse nossa família. Tinha o pai, a mãe, os irmãos, as tias, a gente criava histórias... Onde a gente vivia, morria muito bebê novinho e, como as bonecas imitavam as situações vistas, a gente fazia até enterros com os nenês. Existiam vários personagens. Fazíamos, por exemplo, a tia que viajava e, quando chegava, trazia uma mala de roupas. E a gente costurava as roupas que a tia trazia... E isso era real para nós, pois eu tinha uma tia que morava no Rio de Janeiro e chegava de lá com uma mala de roupa.
Os mais velhos brincavam de verdade. Os meninos queriam fazer amor debaixo dos pés de manga, queriam brincar de ser o pai. Os garotos mais novos faziam os brinquedos dos homens. Meu irmão fazia caminhões e carros para a família viajar. Quando os meninos (na brincadeira) tinham que ir para escola, a gente fazia as fardas; para irem para igreja ou festas, fazíamos roupas apropriadas.
Mas um dia a gente teve que ir embora do sertão para Campina Grande. Minhas primas foram procurar um jeito de ganhar a vida. Algumas vieram para São Paulo e foram trabalhar em fábricas de roupas. Nenhuma quis continuar fazendo bonecas. Uma delas inclusive morreu em São Paulo (e daí eu fiquei com medo de vir para cá). Fui a única que continuou fazendo bonecas. E eu ia fazendo, sem saber que um dia venderia bonecas, viveria disso.
Eu fazia e dava bonecas. Se tinha uma festa de aniversário e a pessoa não sabia o que dar, eu logo fazia uma boneca para ela dar de presente. Eu não levava fé que aquela boneca estava boa. Até que um dia uma pessoa me perguntou: “Se eu encomendar uma boneca você faz para eu comprar?”. Eu disse que fazia e pensei que pela primeira vez iria vender uma boneca. A pessoa me perguntou quanto era... E eu lá sabia quanto era? Então disse: “Me dê qualquer coisa aí”.
Daí em diante, a história das bonecas foi passando para um amigo, para outro, outro, até que todo mundo começou a querer bonecas. E eu sozinha fazendo.... Até que um dia eu falei: “Diga lá que eu não estou mais fazendo bonecas para ninguém!”. Quando eu era criança, queria bonecas de plástico. De um tempo para cá, todo mundo quer boneca de pano. E a roupa fica melhor no tecido. Tem uma boneca que eu faço que vem com uma mochilinha nas costas com roupa para trocar. Tem gente que gosta muito.
Quando alguém me pede “Faça aí dez Emílias”, eu logo digo: “Está pensando que eu sou uma fábrica de fazer Emília?”. Na minha cidade não tem fábrica, tudo o que as pessoas faziam era manual (por isso, demorava). Então, se alguém dizia “Eu quero trinta bonecas para o dia 15”, eu respondia: “Tu vai esperando, que eu estou já fazendo” (risos).
Faço muitos personagens. Às vezes, vou dormir e penso em uma boneca; no dia seguinte, crio. Só que às vezes uma pessoa me encomenda uma boneca e eu não tenho vontade de parar para fazer o pedido. Mas agora eu até já faço isso, porque sei que preciso daquele dinheiro, sei que dependo dele para comprar alguma coisa. Mas acontece de alguém pedir uma bailarina, por exemplo, e quando eu vou fazer a encomenda acaba saindo outra boneca.
Às vezes, vejo uns personagens em livros ou filmes e gosto daquelas roupas. Vi um filme “cheio de coisinhas”, chamado “Adeus minha Concubina”... Eu fiz um boneco daqueles, de um personagem que canta. Aquele filme tem tanta coisa que eu queria fazer, tanta coisa! Em um livro de História também vi coisas que gostei. Esse povo do Egito eu acho bem bonito. Mas aí, nesse programa de artesanato da Paraíba, dizem que eu tenho que fazer gente com características do povo nordestino. Às vezes eu faço, mas às vezes não sei fazer isso. E eles só querem que eu trabalhe com algodão natural... Mas aí eu conheci o Renato e ele disse: “Pode misturar tudo, não precisa fazer só com algodão”. Então, decidi desobedecer ao povo de lá e obedecer ao Renato!
Renato: A preocupação do Programa do Artesanato da Paraíba é gerar renda, melhorar o artesanato da região, mas o fato é que as bonecas da Anita são bonecas únicas. Eu falo: “Anita, se você conseguir, você tem que tentar separar, fazer com que alguma coisa que você ensine gere renda para outras mulheres que têm essa necessidade; mas no seu universo todo, você faz o que quiser. Cada um é o seu personagem”.
Anita: Um dia, o Renato pediu que eu fizesse um Papai Noel de um dia para o outro. Eu não sei o que tem esse homem.... Para outra pessoa eu não teria feito, mas para ele eu corri e fui fazer o Papai Noel. Fiz o boneco, coloquei uma espingarda na mão dele e expliquei para o Renato que eu tinha trauma de Papai Noel.
Os bonecos trazem alguma história da pessoa. Quando eu era criança, o passeio de fim de ano era para ver as fábricas com enfeites de Natal. Todas as famílias pegavam o ônibus e iam ver as fábricas enfeitadas. Um dia, deu no rádio que Papai Noel ia chegar no aeroporto e que os pais deveriam ir para o aeroporto, porque ele daria presentes, bombons, etc. A gente morava longe e o Papai Noel chegaria às 9h da manhã. A gente se arrumou e foi bem cedinho a pé, porque não tínhamos dinheiro para o ônibus. Chegando lá, esperamos, esperamos, esperamos... Todas as outras famílias tinham ido de carro, só a gente a pé – e eu já comecei a ficar com raiva daquele negócio! O Papai Noel chegou só por volta de meio-dia, desceu do avião e passou longe da gente. Quando veio, deu umas balas; depois voltou, entregou uns bombons para as crianças e me pulou. Aí eu fiquei com raiva daquele Papai Noel! Quando terminou, era hora de irmos embora. Nossa família ia voltando a pé, enquanto os carros passavam a toda velocidade. Eu fiquei com tanto ódio do Papai Noel, pensei que ele era uma praga! Por isso, quando o Renato me pediu um Papai Noel, fiz um Papai Noel ladrão. Eu não podia fazer um modelo diferente do que conheci...
Renato: Achei interessante também uma vez que a Anita me falou que gostava de fazer gente corcunda, defeituosa, etc. Em João Pessoa, há três ceguinhas cantadoras – e é impressionante o que elas cantam. Elas ficam no centro de Campina Grande cantando. E a Anita fez bonecas delas. Resumindo: a Anita faz o que ela quer. Outro dia, ele me contou que tinha feito uma boneca de uma atriz de cinema que não sabia quem era: era Sophia Loren.
Por isso tudo eu trouxe a Anita aqui. Queria mostrar um pouco que tem uma artesã que é única. Ela necessita criar o tempo inteiro e a gente tem que aceitar isso e não tentar enquadrá-la em um esquema de produção em série. Ela está até fazendo algo do gênero para ajudar alguns grupos da Paraíba e ter uma remuneração. Mas conversei muito com ela, que ela jamais deve perder esse lado criativo.
O trabalho que estou fazendo na Paraíba não tem nada a ver com bonecas e nem com a Anita (na verdade, estou fazendo é um trabalho com as rendas do Cariri, no sertão paraibano). No entanto, como conheci a Anita, achei que vocês deveriam conhecê-la também. Por volta de 1999 vi pela primeira vez algumas de suas bonecas em São Paulo, quando fui comprar um presente para minha filha em uma galeria (Galeria Brasiliana). A Anita dizia que suas bonecas viajavam para São Paulo, estavam sempre aqui e ela nem conhecia a cidade. Eu disse que um dia ela viria para cá e ela nem acreditava. Até que eu a convidei para essa palestra.
Anita: Até hoje, eu nunca tinha viajado ainda de avião – só meus bonecos (para vocês verem a importância deles!).
Renato: Antes de finalizar, eu queria que a Anita mostrasse o outro lado dela. Além das bonecas, ela faz outras coisas.
Anita: Tem muitas coisas que eu fazia quando era criança sem saber que tinham valor e, agora que sou adulta, as pessoas valorizam. Na nossa infância, saíamos com meu pai para tomar banho no açude e, no caminho, brincávamos de tocar pente. A gente tirava o pente do bolso dele, usava umas folhinhas e fazia aquilo virar música.
Há pouco tempo, tivemos a idéia de fazer uma banda do pente. Eu também gosto de fazer literatura em cordel. Fiz um cordel da guerra que aconteceu com Sadam Hussein, no Iraque. Só que no meu cordel a guerra começa no Iraque e termina em Campina Grande. Quando chega em Campina Grande a guerra se acaba, porque o jacaré do açude engole a bomba e a guerra termina! O lançamento foi “O Cordel na Guerra”, a exposição das bonecas e a banda de pente. O nome da banda? Eu sugeri São Gonçalo Jazz Pent. As pessoas com cultura foram pesquisar e viram que São Gonçalo era um santo um pouco profano, era o santo casamenteiro das prostitutas. E essa dança é agitada, quando toca todo mundo começa a dançar. Por isso, o padre não quis que nossa banda tocasse na Igreja...
Antes de eu vir para cá, o Renato disse para eu trazer o pente e tocar pente. Mas como vou tocar sem a banda? Não tem valor nenhum. Mas vou fazer uma demonstração, com vocês batendo palmas e eu tocando pente.