ENTREVISTA
LUJÁN CAMBARIERE
Publicado por A CASA em 11 de Outubro de 2013
Por
Daniel Douek
e
Ivan Vieira

Tamanho da letra
“A comunicação é um modo de se desenhar com palavras”
Luján Cambariere é jornalista especializada em design e criadora do SATORILAB.
Você é uma jornalista especializada em design de destaque tanto na Argentina como no cenário internacional, tendo ganhando, inclusive, bastante projeção aqui no Brasil. Conte brevemente um pouco da sua trajetória, desde sua formação até o atual momento da sua carreira como especialista em design. Quais são os pontos fundamentais que marcaram a sua trajetória?
Estudei Comunicação Social com especialização em Jornalismo durante cinco anos na Argentina. Após esse processo comecei a trabalhar em revistas e jornais de diversos tipos, até que me tornei editora da revista ELLE Decoração (ELLE Decor) – que tem aqui no Brasil também. Paralelamente, me dediquei mais ao jornalismo ligado a área social. Questões e temáticas sociais sempre foram áreas que me interessaram. Depois, há doze anos, comecei a editar o m² – um suplemento que vem no Página|12, um dos jornais mais importantes da Argentina.
Assim, há doze anos, comecei a escrever em todos os sábados sobre design, mas sempre a partir de um aspecto bastante especial. O que me interessa no design é o seu aspecto social. Vejo o design como uma ferramenta. E, por que isso aconteceu? Um pouco porque esse trabalho reúne minhas duas especialidades em jornalismo: o design e as temáticas sociais. Além disso, considero que a comunicação é um modo de se desenhar com as palavras.
Eu sempre conto que tive por muito tempo um espaço na rádio que se chamava “Solidariedade ao Dia”, em que eu falava sobre diversas temáticas sociais, ONGs e pessoas que colaboravam com essa problemática. As pessoas que me escutavam na rádio e depois liam o jornal diziam “Ah, você escreve sobre design com temáticas sociais? O que você, como uma jornalista séria que aborda questões sociais, está escrevendo sobre design?”. Para essas pessoas o design é sempre considerado como algo muito frívolo. Portanto, eu sempre explico que eu me dediquei ao design social, a unir esses dois mundos. Eu compreendo o design como uma ferramenta. No hemisfério Sul nós ainda vemos o design como algo frívolo. Como nós (Argentina, Brasil, Chile, entre outros) não temos grandes tecnologias, nossas possibilidades são limitadas. Dessa forma, o design junto com o artesanato e com a realidade social pode ser a nossa oportunidade de nos diferenciar dos outros.
E, como eu gosto muito da minha profissão de jornalista, não dá só para fazer notas do design de Milão. Eu gosto de exercer a minha profissão e de entrevistar pessoas. Então, não daria para escrever num jornal temáticas que estão distantes dos meus interesses.
Com os anos, outro projeto que mexeu com o meu coração e que me deu muito trabalho foi o SATORILAB. Nesse projeto eu tenho o meu parceiro, Alejandro Sarmiento, que é designer industrial. Nós sempre falamos que temos profissões diferentes, mas nossos olhares para o design e a vida são muito semelhantes.
Então, nos eventos de design que nós nos encontrávamos, em diferentes circunstâncias, sempre tínhamos um olhar comum e víamos que muitas coisas que se diziam sobre design não aconteciam. Ouvíamos que design é experimentação, é pensar com as mãos, é agir em harmonia com um ambiente multidisciplinar. Mas, depois, víamos que um designer industrial nunca estava de acordo com um designer gráfico, por exemplo. Observávamos que esses impasses aconteciam, pelo menos, com os estudantes argentinos. Então, começamos a pensar de forma conjunta num projeto pessoal que proporia a efetivação prática de todas essas coisas que não aconteciam. Dessa forma, em 2005, nasceu o SATORILAB. O projeto, basicamente, possui três pilares: o trabalho coletivo, o trabalho com estudantes de todas as disciplinas de design e, o mais importante de todos: o trabalho com valores da vida. Para nós, esses valores são: o amor, os vínculos, a juventude, a infância, a celebração, a ecosofia (que tem a ver com amar a natureza; ser parte dela e não somente protegê-la). E o objetivo do projeto é trabalhar com descartes e outros materiais da natureza que temos à nossa volta. E, a partir desses três pilares, é possível dar um impulso criativo para os estudantes tomarem consciência do material que eles manejam e de como é possível conceber um produto. Para nós isso é um impulso bastante criativo e, para as pessoas, penso que as mostras também geram uma consciência da enorme quantidade de coisas que descartamos e que possuem potencial para ser matéria-prima novamente.
Depois de 2005 o projeto cresceu muito e agora temos um subprojeto, a marca Cárcel, onde confeccionamos alguns produtos com mulheres da Argentina que estejam em cárcere. Temos também outro projeto que se chama “Estar Limpo”, que é realizado com jovens que estão se recuperando do uso de drogas. Assim, o projeto SATORILAB foi se ampliando. Começamos também a trabalhar com empresas. Tivemos uma parceria há quatro anos, por exemplo, com a Melissa aqui do Brasil num projeto muito lindo chamado “O Caminho dos Sonhos”, onde trabalhamos sobre o valor de sonhar, justamente.
E, como alguns dizem, na Argentina muitas pessoas brincam comigo dizendo que sou mais uma jornalista brasileira do que argentina. Mas eu gosto muito! Sempre tenho a possibilidade, pelo SATORILAB, de viajar para cá e gosto muito do que os brasileiros fazem – e sempre trato de difundir isso! E a verdade é que no meu país e no mundo, em geral, há poucos jornalistas especializados em design. Portanto, todos nós acabamos nos conhecendo e tratamos de difundir o que vemos.
Como a Adélia Borges é um exemplo disso aqui no Brasil.
Total! Eu conheci a Adélia há muito tempo. Esqueci de contar que, além de ser editora do jornal m², eu também faço a edição de uma revista chamada Bárzon. Em ambas edito design. No ano passado eu fiz uma matéria para o dia das mães. O texto foi dedicado as “minhas mães” do design no Brasil: Lina Bo Bardi, Adélia Borges e Delia Berú (que é uma designer argentina que mora aqui no Brasil).
Eu conheci a Adélia quando era muito jovem. Viajei aqui para São Paulo e já tinha começado a investigar essa questão do design social. Quando eu encontrei a Adélia, falei para ela: “Você pensa que é uma loucura eu me especializar e dedicar a isso?”. E ela, na verdade, me mostrou um livro do Artesol e compartilhou uma série de experiências. Para mim, momentos da vida como esse são transcendentais. Sempre digo que sou uma pessoa que aprendeu a amar o Brasil e a vê-lo como um lugar muito especial. E, a verdade, é que parece que eu falo tudo isso da boca pra fora. Mas ontem, na abertura da exposição, vieram alguns amigos designers aqui do Brasil (inclusive a Adélia). Dessa forma, você sente que realmente está em casa e com os amigos. A família do mundo do design é muito linda.
Acho que você levantou diversos pontos interessantes para a gente discutir. Antes de partir para algumas questões propriamente ditas, o que significa e qual é a origem do nome SATORILAB?
SATORILAB é um termo do budismo que significa iluminação; significa despertar, mas com a companhia do outro. Nós pensamos que no budismo e no Oriente existem muitas palavras que não tem uma definição precisa. Não é como nós, ocidentais, que tentamos por em palavras todas as nossas experiências. E, na realidade, esse termo do budismo me agrada muito porque eu creio que ele define o que acontece nas oficinas. É um despertar, é perceber um monte de coisas, é achar mais lindo brincar quando se está desenhando, que é mais lindo compartilhar uma ideia, que é mais lindo contar com os outros e dedicar tempo para algo. Então, creio que tudo isso define muito bem o que são as nossas experiências.
Você é budista?
Não sou. Agradar-me-ia muito ser, na realidade, mas sou originalmente católica de nascimento – assim como a grande maioria dos argentinos. Mas me identifico muito com o budismo. Penso que seria outra pessoa se tivesse nascido no Oriente.
Creio que no Ocidente muitas palavras são vazias e para nós, jornalistas, as palavras nos definem e têm muito peso. Inúmeras palavras que são negativas para nós, ocidentais, para eles são positivas. Para nós o vazio é angustiante (pelo menos em espanhol), mas para eles o vazio representa uma possibilidade. Isso me parece muito interessante. E creio que no SATORILAB nós sempre aplicamos isso.
Quando você fala do design social, aqui no Brasil a gente associa muito também com o artesanato. Até no próprio museu A CASA nós vemos muito essa integração entre design e artesanato, achando que, se essas duas coisas conversassem mais, estivessem mais juntas, haveria possibilidade de desenvolver projetos sociais mais interessantes. Eu queria saber se você também tem, e se existe na Argentina, essa ligação com o artesanato, com os projetos de artesãos. Como você enxerga o encontro entre design e artesanato?
Na Argentina, na realidade, nós não temos a mesma experiência que se tem aqui no Brasil. O design argentino é muito bom, mas os projetos de arte e design não possuem muita experiência porque não existe o apoio de lugares como SESC ou outras instituições que geram projetos de bons designers.
Particularmente, eu levo a bandeira desses temas e falo da questão do artesanato e design em muitas das palestras que eu ministro. Eu também percebo que existem muitos designers que se sentem desorientados por não entender qual é a relação dele com o artesanato.
Eu creio que em países que não possuem grandes tecnologias, nem materiais para experimentar (como plástico injetado, por exemplo) a relação entre o designer e o artesão pode ser muito grande.
No Brasil, provavelmente, é um pouco diferente, mas na Argentina o desenho industrial quase não existe porque não temos indústrias. Então, ter relação com os artesãos é uma grande possibilidade para o designer. E, atuando nessa área, eu não vejo o designer como alguém que faz um favor para o artesão. Creio que é ao contrário. Penso que o artesão, com sua tecnologia, está fazendo um favor ao designer para que ele possa desenvolver algo. Portanto, esses cruzamentos são cada vez mais interessantes.
Muitas pessoas tendem a pensar as relações de maneira separada: o artesão com seu trabalho e o designer com seu mundo de projeto. Mas eu creio que, se cada um quiser, a intervenção é possível. Nós, com o SATORILAB, temos feito oficinas com artesãos. Um dos nossos mais importantes trabalhos foi feito com estudantes de desenho. O que nós procuramos fazer com os artesãos e com populações vulneráveis (como pessoas encarceradas e comunidades com viciados em recuperação) é transferir-lhes tecnologias. Alejandro tem um trabalho de reciclagem de garrafas PET, por exemplo. A partir disso, nós começamos a trabalhar com essas pessoas, passamos a tecnologia e a transferimos aos produtos. Isso é o que nós mais fazemos. E mais do que trabalhar com o artesão, nós também trabalhamos com essas populações vulneráveis – que não são, necessariamente, artesãos ou pessoas que sabem trabalhar com as mãos.
E vocês têm resultados desse projeto? Alguma coisa que você poderia contar daquilo que aconteceu depois?
Sim. Na realidade, tanto a marca Cárcel quanto o projeto Estar Limpo atuam nessa transferência do design e da tecnologia de reciclagem. O PET, por exemplo, é muito fascinante porque é uma ferramenta muito simples. E essas pessoas, em ambos os casos, realmente não possuem conhecimento sobre o trabalho manual. No caso dos viciados há uma problemática de que, por causa das drogas, as pessoas têm muita ansiedade. Dessa forma, consequentemente, esses indivíduos não têm uma motricidade muito precisa, mas o importante é como o design é muito atrativo e muito fascinante a ponto de envolver essas pessoas. Exercer um trabalho manual é sempre importante para a mente e o intelecto.
No SATORILAB, por mais que trabalhamos com descartes, nós tratamos e temos cuidado para que os produtos sejam realmente bem confeccionados. E eu creio que acontece isso. E vale dizer que inúmeras pessoas que trabalham com descartes pensam que, por já trabalharem com esse tipo de material, já estão agindo de forma correta. Nós, no SATORILAB, não consideramos que isso seja suficiente. Os produtos devem funcionar e precisam ser belos esteticamente. Então, creio que isso é também um aspecto importante a ser levado em consideração.
Os produtos são belos e precisam ser assim. É preciso ter cuidados para o produto funcionar. Todos os brinquedos da mostra “A Infância em Jogo” funcionam, por exemplo. E, em sua grande maioria, são protótipos, são resultados dos workshops que utilizam baixa tecnologia (como tesoura e furadeira). Nós não usamos nada mais tecnológico do que isso.
Interessante. Uma das questões que iríamos abordar fala justamente do uso do lixo. Existem alguns profissionais e designers que são contra esse tipo de ação por achar que nós não devemos reaproveitar o lixo já que, na verdade, o ideal é que nós paremos de produzi-lo. Nós não temos que criar objetos com a caixinha do McDonald’s, mas devemos abandonar a produção e o descarte dessas caixinhas – temos que parar com esse tipo de produção.
Eu creio que não há como ter esse tipo de pensamento atualmente. As pessoas pensam que se alguém se dedica à reciclagem não pode usar celular, por exemplo. Vivemos num mundo onde podemos fazer pequenas ações para tomarmos consciência do que acontece ao nosso redor. É ridículo pensar que o mundo vai parar de fazer caixinhas do McDonald’s. Esse é um processo que nunca vai se efetivar, é uma utopia. Se nós não criarmos coisas por causa de atitudes como essa, ficamos de braços cruzados. Eu não penso que é assim. Nós vemos o descarte e os demais elementos da natureza como um material desprovido de prejuízos. Para nós, trabalhar com a reciclagem é uma oportunidade. Dessa forma, nosso trabalho é experimentar para ver o que é interessante. Não só falar, mas também fazer. Através da experiência, por exemplo, nós estamos desenvolvendo uma iniciativa de trabalho com viciados em drogas, onde utilizamos madeira de pallets e, também, sempre necessitamos de inúmeras ferramentas que normalmente são custosas e difíceis de conseguir. Mas, trabalhando com o lixo, podemos fazer um monte de coisas. Então, temos que ver esse trabalho como uma oportunidade de contar com um material a mais. Simplesmente com isso. Não devem existir mais leituras além do que isso.
Aproveitando a oportunidade de utilizar o “olhar de fora” que o estrangeiro possui sobre o nosso país, como você enxerga o papel do design brasileiro no cenário mundial? Como você enxerga essa leva de novos designers e os tipos de trabalho que eles desenvolvem? Quais são os caminhos mais interessantes para o design brasileiro considerando o contexto do país (sua natureza, matérias-primas e variedade de culturas e materiais)?
Eu gosto muito. Primeiro, tenho que dizer que eu gosto muito do Brasil. Sempre digo que, se eu não morasse na Argentina, gostaria muito de morar aqui. Gosto muito dos brasileiros e não falo isso da boca pra fora. Eu sempre venho me energizar aqui no Brasil porque as pessoas são muito interessantes e muito abertas. E, provavelmente, talvez vocês reclamem de terem o clichê de ser um povo alegre, mas é muito importante ser assim – pelo menos para o argentino, que é tão melancólico (o tango é um reflexo disso). E creio que isso se transmite no design. Imagino que isso vale para toda a latino-américa, não? Para todos os designers. Creio que nós temos que focar em trabalhar no que temos e no que somos. Não temos que ficar sempre buscando outro mundo, outra realidade. Eu tive a oportunidade nesse ano (2013), pelo SATORILAB, de ir a Bienal Internacional do Design de Saint-Etienne, na França, e depois fui a Paris, Amsterdam e Berlim. De tudo que eu vi, realmente, não há ideias novas. Há muito mais marketing. Existem muitas galerias que são lindas, mas não vi coisas interessantes.
E nós, com os materiais que temos – como as madeiras que existem na Argentina e no Brasil, as fibras exóticas, as cores, as sementes – possuímos uma oportunidade enorme. Eu gosto dos designers brasileiros que trabalham nessa área e que procuram reproduzir o que eles realmente são. Aqui, temos o exemplo do Ronaldo Fraga – sempre digo que comecei a amar e conhecer o Brasil através do seu desenho. Com isso, também comecei a amar a música e os escritores brasileiros. Conheço Fernanda Takai por causa do Ronaldo Fraga. Portanto, acho que isso é um exemplo de ser um bom designer que representa o país. E essa representação não é politica, mas sim uma maneira inteligente de trabalhar com o que se tem de disponível no lugar ou país onde se vive. E digo isso não no sentido de que devemos competir com uma cadeira de plástico injetado de Milão. Isso seria muito difícil. Mas, se mostramos a riqueza dos nossos países e das nossas pessoas, creio que abrimos a porta para uma série de oportunidades. E o Brasil tem uma oportunidade incrível porque várias pessoas do mundo querem estar aqui. Então, creio que os designers tem a oportunidade de se mostrar no cenário internacional.
É sempre interessante ouvir coisas assim. Nós entrevistamos, há dois meses, o Frederico Duarte, um crítico de design português. Ele se especializou no Brasil e tinha visões muito diferentes daquelas que nós vemos aqui. Pelo fato de ser português, ele tem um “olhar de fora”, uma visão de como algum estrangeiro recebe a nossa produção. É interessante.
Sim. E eu gosto muito dos trabalhos que relacionam o artesanato com o design, particularmente de tudo o que acontece aqui no museu A CASA e no Museu da Casa Brasileira. Sempre creio que isso é importante. Por aí há uma oportunidade enorme de mostrar-se ao mundo.
O termo sustentável tem sido utilizado em larga escala e, muitas vezes, sem critério. Muitos afirmam que, por conta disso, esse termo já está desgastado, esvaziado de significado, sem que tenhamos conseguido atingir uma produção realmente sustentável. O seu nome é bastante associado ao design sustentável. Então, gostaríamos que você falasse o que é sustentabilidade para você e para o SATORILAB. Como vocês enxergam a sustentabilidade no real sentido do termo?
Como jornalista, as palavras sempre têm um peso importante para mim. Portanto, quando vejo que os significados estão desgastados, tenho uma preocupação. Identidade e sustentabilidade são palavras que, no SATORILAB, quase não queremos usar ultimamente porque estão associadas com muitas outras coisas que não tem relação alguma com o que tentamos fazer. Eu gosto, ultimamente, de usar a palavra “transmutado”, mais do que reciclado (e estamos escrevendo o livro do SATORILAB, que espero que saia o quanto antes para termos tudo documentado). Gosto dessa palavra porque ela tem a ver com a questão química. Eu não falo mais em reciclar, mas falo em transmutar porque, na realidade, as transmutações químicas consistem em usar um material ordinário para dar origem a coisas preciosas e belas. O que queremos é usar materiais comuns, temas comuns – não só os materiais, mas também os valores que são importantes – para transformar tudo em questões belas.
Preocupa-me muito a ignorância com que se trata a sustentabilidade, como algo que é apenas o ato de trabalhar com materiais descartados ou com lixo. Na minha visão, sustentável significa trabalhar com o objetivo de se fazer um bom produto e que ele perdure por toda uma vida. Isso é mais sustentável do que trabalhar só com lixo. Então, não é tão simples. Creio que, mais uma vez, é necessário ter equilíbrio e consciência em tudo o que se faz na vida. Em geral, acho que há pouca coerência em grande parte das ações que se dizem sustentáveis. E, infelizmente, inúmeras vezes a sustentabilidade acaba sendo utilizada apenas como uma questão de marketing das empresas.
Na Argentina, tudo é sustentável. Todos os designs são sustentáveis. Mas tenho as minhas preocupações porque acredito que isso pode ser uma moda. Desse jeito, amanhã vão criar outro tema e a sustentabilidade deixará de ter a centralidade que possui atualmente. Mas não é possível pensar assim. Acredito que – em referência ao jornalismo – não há jornalismo social porque o jornalismo precisa ser social. Do mesmo modo, não deve haver design sustentável porque o design tem que ser sustentável: este deve ser um dos seus atributos, não é uma coisa à parte.
Acho que os designers devem continuar trabalhando nas empresas, mas cuidando para ter consciência crítica. No dia a dia, muitas vezes, é difícil, não é? É difícil trabalhar na Nokia e querer que não criem a cada cinco meses um novo desenho porque essa é a política de obsolescência programada com que eles precisam lidar. Mas acho que, aos poucos, é melhor estar no mundo, produzindo as mudanças, do que ficar fora, apenas criticando.
Historicamente, o design está atrelado ao consumo e à criação de desejo nos consumidores. Quando olhamos para uma cadeira, por exemplo, temos vontade de tê-la, se desperta uma vontade de consumo. Quando se criam produtos de design sustentável, por um lado, são sustentáveis, mas por outro, as pessoas são estimuladas a consumi-los. Como você enxerga esse paradoxo, ou esse equilíbrio, de estímulo ao consumo e de defesa de uma consciência sustentável? Em um mundo em que a preocupação ambiental é o tema da vez, é possível pensar em um design que desestimule o consumo desenfreado?
Eu gosto do mundo material e acredito que ele pode impactar positivamente a vida das pessoas. Quando fazemos as oficinas nas prisões ou com os viciados nós mudamos a visão estética desses indivíduos, alteramos a maneira com a qual eles olham o mundo. Isso faz com que essas pessoas queiram estar em um ambiente mais bonito e mais belo. Então, eu não renego o mundo material. Penso que os produtos têm alma. Portanto, concebo o mundo material a partir deste ponto de vista. Não me parece mal consumir a partir desses critérios que eu mencionei, mas é claro que eu não concordo com o consumo desmedido. Eu prefiro ter poucas coisas, mas que sejam de qualidade, que me acompanhem e que tenham alma. Eu acredito que isso é sustentabilidade também: amar um objeto e querer que perdure uma vida, e não descartá-lo sem necessidade. Deste ponto de vista, e de novo, consumir um produto que foi feito com uma matéria-prima que era lixo pode ganhar uma vida nova. Isso me parece positivo, não é? Pois esse lixo existe, não existem maneiras de fazê-lo desaparecer complemente. Uma garrafa PET demora cem anos para se decompor na natureza. Portanto, é melhor que esse material se transforme em outros produtos, que nos sirvam ou que alegrem o nosso mundo.
Médicos e nutricionistas costumam alertar para um risco comum entre consumidores de alimentos light: por se tratar de produtos de baixas calorias, muitas vezes, consome-se muito mais do que se consumiria um produto não light, o que pode gerar um efeito inverso ao desejado pelo consumidor que quer emagrecer. Estabelecendo uma analogia com objetos ecologicamente corretos, poderia haver o risco de um consumo despreocupado e exagerado, já que sabemos tratar-se de produtos menos agressores ao meio ambiente?
O que acontece é que, pelo menos para o SATORILAB (não posso falar de outras pessoas), nós cuidamos para que nossos produtos sejam feitos com baixa tecnologia. Nós utilizamos lixo, mas depois aplicamos questões maiores de reciclagem. E também não faz sentido gastar muita energia na reciclagem. Se envolvemos muitos matérias no processo, ou se temos que pintar e fazer uma série de outras coisas, ocorre uma falta de coerência nessa ação de reciclagem. O ato de reciclar, acredito, deve ser feito com coerência, com baixa tecnologia, sem usar muitos materiais que não provenham do descarte. Isso sempre é um bom recurso. Se o material descartado não for reutilizado, ele estará nos aterros ou lixões. Portanto, se alguém simplesmente descarta uma garrafa PET, esse objeto não desaparece. O que acontece em nossas cidades é que as pessoas pensam que, ao mandarem um material para o lixo, ele deixa de existir. Não é desse jeito que as coisas funcionam.
De que modo o desenvolvimento tecnológico pode contribuir com o design? A tecnologia é mais uma arma a mais a ser utilizada pelo designer? Como vocês veem essa relação entre design e tecnologia?
Para mim, particularmente como jornalista, essa relação parece extremamente interessante. Sempre digo que gostaria, em meu país, que os designers fossem mais dedicados a trabalhar com medicina e outras questões que são extremamente necessárias. Meu filho, quando era pequeno, passou por uma intervenção cirúrgica no coração. Hoje ele está fantástico, tem 13 anos e está enorme, mas quando era pequeno tinha que usar dois controladores de coração. Mas, na Argentina, não existia esse aparelho para as crianças. O nome desse controlador é holter, que monitora o coração durante 24 horas. Era um aparato com uma mochila enorme. Como ele só tinha 1 ano e meio de idade na época, não deu muito certo. Hoje ele está bem, mas ainda existem crianças que precisam disso. E, se pensarmos um pouco, talvez esse problema possa ser solucionado através de uma questão de desenho, de interface.
Uma das definições mais interessantes do design é que ele também é interface. Em geral, essas questões de intermediação de necessidades e formato material do objeto podem ser resolvidas por um designer especializado. Então, nesses casos, acredito que o design é fundamental e necessário. Ou seja, estamos muito necessitados do design. Portanto, aplicar qualquer tipo de tecnologia por meio da interface do design me parece sumamente necessário. Os cientistas criam um monte de tecnologias, os engenheiros também, mas se não há a interface do design que as transmuta para torná-las acessíveis às pessoas, é como se tudo isso não existisse. Dessa forma, designers são necessários na odontologia, na medicina, nos aeroportos, nas rodovias. No meu país, muitas pessoas morrem em acidentes de estradas. O design, acredito, tem de estar presente nessas questões. Nas favelas argentinas as ambulâncias não chegam porque muitas ruas não têm nome. As placas nas favelas é uma questão para o design. Entretanto, essas são questões que também são difíceis para esse profissional. Não há como cuidar destas coisas sem nenhum auxílio. Portanto, não acredito que seja o caso de culpar os designers. Eles estão interessados, mas, às vezes, as indústrias ou governos não os contratam para fazer essas coisas.
Na sua visão, como o projeto SATORILAB contribui na formação dos estudantes que participam dos laboratórios?
Eu gosto de pensar que contribui muito. Sempre digo que o SATORILAB e outros trabalhos são muito emocionantes. É lindo compartilhar essa experiência. E o que acontece é que os estudantes nos escrevem anos depois, quando ganharam um prêmio, quando participaram de uma mostra ou quando conseguiram qualquer coisa, dizendo que empreenderam um projeto pessoal por meio do que viveram no SATORILAB. Temos na Argentina e em outros países grupos de designers que se conheceram através do SATORILAB e, depois, realizaram projetos juntos. E muitos desses estudantes, por exemplo, estão agora em Milão, mas todo o seu portfólio partiu do que eles fizeram nas oficinas. Isso, para Alejandro e para mim, de algum modo, é o maior orgulho que temos. De alguma forma, o nosso trabalho colocou uma semente n o coração de cada um desses estudantes. Essa parte do SATORILAB que não se vê, para nós, é a mais bonita, definitivamente.
O que os brasileiros podem esperar da exposição SATORILAB “A Infância em Jogo”, sediada em A CASA museu do objeto brasileiro? Qual é o diferencial dos objetos expostos? Qual o significado e sentido que eles procuram transmitir para o público?
“A Infância em Jogo” foi uma oficina que começamos a fazer em 2007, depois de termos feito a primeira, chamada “Amor Líquido”. A oficina do Amor Líquido tinha a ver com os vínculos e como as novas tecnologias e o consumo influem nas relações humanas. Para essa oficina trabalhamos muito com os textos de sociólogo Zigmunt Bauman. Antes de começarmos todo o trabalho, recebemos um convite para fazer uma amostra de brinquedos para o mês da infância. Então, começamos a falar com o Alejandro. A primeira coisa que ele me disse foi que não queria trabalhar com artigos de algum autor específico, porque nós já tínhamos o tema do jogo sempre presente nos nossos próprios textos. Foi aí que escrevi o manifesto que falava de jogar com o mínimo possível e extrair o máximo através da imaginação, jogar com outros, jogar com o que temos, jogar sem jogar (que, na verdade, acaba sendo o melhor jogo de todos). A ideia me surgiu de forma bem espontânea, dirigindo o carro, quase que instantaneamente. Eu gosto muito desse manifesto porque acredito que ele resume perfeitamente nossa maneira de ver o ato de jogar. Acredito que para além do design, é um manifesto que, na verdade, cabe a todas as pessoas e às todas as profissões. A questão é lembrar que seguir com a vida é seguir jogando, que se deve ser espontâneo, que se deve celebrar a troca com os avós, com os irmãos e com as outras pessoas próximas e que se deve desfrutar a natureza. O manifesto inclui todas essas questões. Então, acredito que isso comove todas as pessoas: a infância é o tesouro psíquico de cada um, é o acervo de qualquer indivíduo. Se você pensa em sua vida, acredito que verá como a infância influencia em diversas coisas. Eu, quando era pequena, lia e escrevia muito e isso não é muito diferente do que faço hoje, ou do que mais gosto de fazer hoje em dia.
Particularmente, esses brinquedos foram recuperados de algumas oficinas. Foram os estudantes que participaram das oficinas que fizeram os objetos. E, já faz algum tempo, comecei a escolher alguns brinquedos feitos por estudantes da Colômbia, do Chile, da Argentina, entre outros, pensando em algum momento fazer uma mostra. Quando recebi o convite da Renata, perguntando se já tínhamos pensando em fazer uma exposição, respondemos que seria fantástico. A gente sempre faz a oficina e depois uma mostra ao final do processo. Esta é a primeira vez que acontece só a mostra. Então, pareceu-me lindo! Acredito que cada um dos joguinhos e dos brinquedos mostram isso. Tem borrachudos, há vermes, mas todos tem alma. Isso é o mais bonito que posso falar do projeto: o trabalho com as mãos feito de maneira coletiva. Os joguinhos e os brinquedos têm alma, por isso que acredito que tanto adultos como crianças gostem na mostra. Esse é, mais ou menos, o meu convite para todos. É possível fazer muitas coisas se colocamos o coração no nosso trabalho.
Eu acredito que, na vida, nos tornamos adultos e esquecemos da infância, que é uma das melhoras etapas de toda a nossa trajetória. Não é possível voltar a ser criança, lamentavelmente, mas podemos ser adultos que tenham um olhar especial para a infância. Acredito que é isso que esta exposição procura mostrar: não só os brinquedos, mas que é possível olhar a vida, em geral, como uma criança.
Tem mais alguma coisa que você queria destacar? Algo que a gente não abordou na entrevista?
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a hospitalidade e a todas as pessoas que tornaram possível a exposição. Alejandro e eu valoramos muito o fato de vocês, brasileiros, sempre estarem abertos a receber e escutar. Acredito que, dessa maneira, se aprende muito.
Do ponto de vista do jornalismo, acredito que argentinos, brasileiros, chilenos, uruguaios e os demais países da América Latina devem se unir ainda mais para mostrar ao mundo o que fazemos. Acredito que o mundo, o tempo todo, vem vendendo o que o Primeiro Mundo faz. Estou terminando meu livro sobre o aspecto social do design cujo título é Meu norte é o Sul, e essa é uma das questões que mais me interessam. Não é uma questão de orgulho, mas justamente de validar, de mostrar o nosso design e nosso artesanato.